Arquitetura

Arquitetura ou revolução: as casas de Frida Kahlo e os 90 anos do movimento funcionalista

Monique Portela
04/11/2019 19:13
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Wikimedia Commons

Formas geométricas, paredes de concreto armado aparente, instalações elétricas à vista, grandes janelas que priorizam luz e ventilação naturais, jardins que prezam por plantas autóctones. As primeiras construções do arquiteto mexicano Juan O’Gorman, construídas entre 1929 e 1932, trazem uma estética que pode ser vista nos dias atuais, mas na realidade são a pura expressão de uma das correntes do movimento modernista do século 20, o funcionalismo.
Inspirado pelos conceitos do célebre arquiteto francês Le Corbusier, que em 1923 lançou um livro-manifesto no qual propôs a busca por uma arquitetura ao espírito da época, industrial e maquinista, O’Gorman se entusiasmou e viu nesta proposta disruptiva uma solução arquitetônica para o México dos anos 1920. Após a Revolução Mexicana, a reconstrução do país era a palavra de ordem. Ou, como disse Le Corbusier em Vers une architecture, eram tempos nos quais se fazia necessário escolher entre “Arquitetura ou Revolução” — sendo que a revolução “pode ser evitada”.
A ideia era criar uma linguagem universal que permitisse construir elementos em série, assim como se faz com a produção de um carro, explica a especialista Cláudia Virginia Stinco, professora de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie. “Eles imaginavam que as casas também pudessem ser feitas em fábricas e depois montadas. Isso ajudaria a sanar os graves problemas não apenas de falta de moradia, mas de habitação eficiente e moralmente decente”.
Foto: Claudia Beatriz Aguilar/Wikimedia Commons
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Surge então uma arquitetura que se pretendia muito mais engenharia do que arte. A preocupação com as formas foi deixada de lado, pelo menos em teoria, para priorizar uma casa eficiente que usasse a menor quantidade de recursos possíveis, fossem eles materiais, financeiros ou humanos, com o máximo de resultados. “Os racionalistas radicais, uma ala mais jovem, da qual O’Gorman fazia parte, diziam que [a discussão sobre as formas] era uma discussão que não se podia ter naquele momento, porque os problemas no México eram mais veementes: havia pouco dinheiro para resolver muitas coisas mais importantes”, explica Stinco. Junto à xará Cláudia Costa Cabral, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com pesquisas na área da arquitetura moderna, afirma: não é possível reduzir o funcionalismo à categoria de estilo. Ele é uma forma de enxergar a arquitetura, que preza pela eficiência a baixo custo, entendendo que a casa é uma “máquina de morar”.

As casas para Cecil, Diego y Frida

Em um terreno afastado do centro da Cidade do México, O’Gorman, aos 24 anos, decide construir uma casa-estúdio para seu pai, o engenheiro Cecil O’Gorman. Surge assim a primeira construção funcionalista da América Latina, que hoje completa 90 anos. “A gente tende a acreditar que este jovem arquiteto acaba fazendo uma arquitetura funcionalista de verdade, nas casas de Cecil, Frida e Diego, antes do próprio Le Corbusier”, aponta Stinco. O presente para o pai, que nunca chegou a morar lá, era apenas um pretexto para construir sua primeira casa-manifesto, que logo foi encomendada pelo famoso artista Diego Rivera. Ao lado da primeira casa foram então erguidas outras duas, uma para Diego e outra para Frida Kahlo, unidas por uma ponte. “Essa encomenda dupla dá a oportunidade para que O’Gorman faça coisas que Le Corbusier não tinha feito ainda”, pontua Cláudia Cabral.
Enriquesrz/Wikimedia Commons
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Dos projetos já existentes de Le Corbusier veio a inspiração para a grande escada externa em espiral com corrimão de concreto, o destaque para o estúdio dos artistas, com janelas amplas e pé-direito duplo, além do telhado em forma de serra. Mas O’Gorman, com foco nas necessidades do México, não poderia deixar de considerar a cultura local. Ao invés das paredes com tons de branco e cinza, uma das máximas da arquitetura moderna, suas casas apresentavam cores vibrantes, como alusão à cultura pré-colombiana. O vermelho da casa de Rivera, por exemplo, tem como referência a cor utilizada para pintar os templos astecas. Para a massa das paredes, agregados locais de solo vulcânico, abundantes e resistentes. Nos jardins, apenas plantas típicas, que não necessitam de cuidados especiais para sobreviver — autóctones, já estão habituadas ao clima e ao solo da região. Ao redor das casas, nada de muros, mas sim uma cerca viva, de cactos. Sob as casas, finos pilotis.“Construir sobre pilotis significa que o solo lá embaixo é livre, pensando que todo o solo é público, é comum”, aponta Stinco.

Reconstruindo um país

Além de moradias, O’Gorman projetou outras edificações, como vilas operárias e escolas. Ao assumir o Departamento de Escolas e a Secretaria de Educação Pública do México, se viu frente ao desafio de ajudar a resolver a situação no país a partir de uma perspectiva arquitetônica. Um de seus projetos mais célebres foram as “Escolas do Milhão”(Escuelas del Millón) na qual, visando o máximo de eficiência com o mínimo de recursos, propôs a construção de 20 escolas, a reforma de outras 20 e a ampliação de oito com um gasto total de um milhão de pesos, aponta Stinco. Esta havia sido a mesma quantidade de dinheiro que foi investido para construir uma única escola primária, a Benito Juárez.
Divulgação
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As estruturas seguiam a mesma ideia de suas primeiras casas: o uso de concreto armado e instalações à vista. Para a circulação do ar, tubos de barro nas paredes. Para a funcionalidade integral e vitalícia das escolas, um planejamento que previa ampliações, caso necessário. Estas escolas apontavam para a racionalização máxima da arquitetura, em função das necessidades de um país.

Perspectivas contemporâneas

O que foi visto como solução arquitetônica para o México pós-revolução surge como saída também para os tempos atuais. A criação de elementos em série que permitem a montagem de casas em massa, com o envolvimento da própria comunidade na construção, é o que norteia várias propostas contemporâneas que têm como base princípios funcionalistas: otimizar espaços e custos buscando o máximo de eficácia. Com os avanços tecnológicos, casas modulares pré-construídas se tornaram uma realidade possível. Somados a demandas sociais globais, como sustentabilidade e moradia digna, elas se tornam também desejáveis. Por trás da ideia, um propósito que não é estético, apesar de também abarcá-lo, e sim funcional — pensar soluções para problemas reais.
Jaime Navarro/Divulgação/Zoller & Moller
Jaime Navarro/Divulgação/Zoller & Moller
Um exemplo é o projeto do escritório mexicano Zeller & Moye. Como estratégia para a habitação rural no país, eles desenvolveram casas modulares feitas de concreto e tijolo de barro, cujo design pode variar de acordo com os desejos e orçamento das famílias. A base é um bloco de 90 metros quadrados com dois quartos, sala, cozinha e banheiro. De acordo com nota publicada pelos arquitetos, as moradias são baseadas “na análise das tradições e das atuais condições de vida da população local, traduzidas para uma forma contemporânea”.
Na arquitetura tradicional do dia a dia, não é difícil encontrar construções que tragam elementos deste movimento arquitetônico dos anos 1920, ainda que ele não seja um estilo.“Há questões estilísticas ali também, que reúnem estas obras. Você vê hoje construções que se parecem com aquelas, então acho que sim, há uma espécie de reabilitação desta arquitetura”, aponta Cabral. “Essa tradição moderna, ela ainda é viva para os arquitetos.
*Especial para a Gazeta do Povo.

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