Inferno colorido

Arquitetura

Cenários de Round 6 apostam em minimalismo cool e espaços de opressão

HAUS*
29/10/2021 16:48
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Escadaria labiríntica. Screenshot da série | Cortesia de Netflix

Atenção: contém spoilers
Cultura pop e uma trama repleta de metáforas sociais contribuem para o sucesso da série da Netflix mais vista de todos os tempos. Os cenários de Round 6 com seus ambientes hipnotizantes e coloridos também fazem com que a produção sul-coreana seja quase impossível de desviar os olhos.
Lançada em setembro, Round 6 (Squid Game) já é a maior série realizada em um idioma que não o inglês, segundo o co-CEO e Chefe de Conteúdo da plataforma de streaming, Ted Sarandos.
Escrito e dirigido por Hwang Dong-hyuk, o survival thriller narra a jornada de 456 pessoas mergulhadas em dívidas que competem por um generoso prêmio em dinheiro de 45.6 bilhões de wons – aproximadamente R$ 210 milhões. Isolados do mundo em uma complexa instalação de escala industrial à qual não fazem ideia de como chegaram – foram, todos, sedados no caminho –, os participantes devem superar seis desafios que envolvem jogos infantis populares na Coreia do Sul.
Jogadores ouvem as instruções sobre o jogo. Screenshot da série.
Jogadores ouvem as instruções sobre o jogo. Screenshot da série.
Cabo de guerra e bolinha de gude estão entre as brincadeiras, mas agora, à diferença da época de criança, os perdedores são brutalmente assassinados por fuzis ocultos nos cenários construídos especialmente para os jogos ou por capangas mascarados trajados em macacões cor-de-rosa.
Memórias de infância – muitas vezes felizes – podem salvar os competidores, dando-lhes certa vantagem nas provas, mas à medida que sobrevivem vendo outros morrerem, escapa-lhes a humanidade, afinal, apenas um competidor poderá levar o prêmio.
Capangas em macacões cor-de-rosa. Screenshot da série.
Capangas em macacões cor-de-rosa. Screenshot da série.

Arquitetura como ferramenta

Quase tão perturbador quanto o próprio jogo é o modo como a arquitetura é usada. Espaços limpos, minimalistas e friamente ordenados, quase sempre coloridos em tons que lembram decorações infantis, recebem as atividades envolvendo os jogadores e conferem uma desconcertante atmosfera de doçura e inocência às atrocidades cometidas pelos organizadores desta gincana macabra.
Por sua vez, espaços obscuros, ocultos e cavernosos dão lugar a atividades marginais, como o tráfico de órgãos esquematizado pelos próprios jagunços cor-de-rosa, a desdém d’O Líder por trás da competição.
Participantes fazem fila para um retrato antes de iniciar o jogo. Screenshot da série.
Participantes fazem fila para um retrato antes de iniciar o jogo. Screenshot da série.
A direção de arte, chefiada por Chae Kyung-sun, foi primorosa nos detalhes. Em entrevista à Netflix Korea, a designer comenta o desenho escalonado das camas metálicas onde dormem os jogadores. “A sociedade moderna é uma competição constante para escalar patamares, pensamos em retratar isso no desenho das camas.” Em vez de tratá-los como pessoas, o projeto de Chae faz pensar nos competidores como objetos quaisquer empilhados nas prateleiras de um galpão.
O elemento mais atraente do projeto cenográfico é, no entanto, a circulação vertical da gigantesca instalação subterrânea. Uma labiríntica escadaria em tons pastel de verde, azul e rosa, evidentemente inspirada na Muralha Vermelha de Ricardo Bofill, é a espinha dorsal do projeto, conectando ambientes em diferentes níveis e aproximando os espaços minimalistas daqueles cavernosos.
Escadaria labiríntica. Screenshot da série.
Escadaria labiríntica. Screenshot da série.
Labirintos instigam pela incerteza. Na contramão daquilo que muitos entendem como arquitetura, são espaços que têm como função primeira confundir e desorientar. A repetição de elementos e a esterilidade soft desta estrutura confundem não apenas o espectador, mas sobretudo o jogador que, em seu passo oprimido, sobe em fila cada degrau da escada como se fosse o último.

Inspirações para os cenários de Round 6

A Muralha de Bofill não é a única inspiração visual de Squid Game. Sequer é a mais relevante. A labiríntica estrutura tem flagrante referência nas famosas litografias do artista gráfico holandês Maurits Cornelis Escher (1898-1972), cuja obra apresenta “operações matemáticas que incluem objetos impossíveis, explorações do infinito, reflexão, simetria, perspectiva, poliedros truncados e geometrias hiperbólicas.”
Seu extenso trabalho e o projeto de Bofill convergem em alguns pontos e têm servido de referência visual a explorações no campo dos videogames, como o jogo Monument Valley, ou do design gráfico, visto, por exemplo, no trabalho do artista londrino Tishk Barzanji. Arquitetura, arte, games e cinema (e séries) encontram pontos de convergência que parecem se repetir, ao menos visualmente, causando a impressão de que já vimos isso antes.
 Jogo Monument Valley. Cortesia de Ustwo
Jogo Monument Valley. Cortesia de Ustwo
E vimos. Em 1745 o arquiteto e artista Giovanni Battista Piranesi (1720-1778) deu início a uma série de 16 gravuras a qual chamou de Carceri. Traduzida como Prisões, a obra retrata enormes arcadas subterrâneas, escadarias, passarelas e outros elementos arquitetônicos conformando, algumas vezes, geometrias impossíveis como as que Escher, dois séculos mais tarde, elaborou. Feitas a partir de um processo cumulativo de desenho e redesenho, as gravuras chamaram a atenção de Serguei Eisenstein que, eu seu texto Piranesi or the Fluidity of Forms (1946-47), chegou a dizer que na base da composição daqueles conjuntos arquitetônicos “encontra-se a mesma dança que está também na base da criação da música, pintura e montagem cinematográfica”, identificando uma visceral relação entre movimento, arquitetura e a arte do cinema.
Gravura da série Carceri, de Giovanni Battista Piranesi.
Gravura da série Carceri, de Giovanni Battista Piranesi.
As prisões de Piranesi oferecem percursos labirínticos a prisioneiros de um espaço impossível. Na confusão dessas geometrias, sabemos que podemos facilmente nos perder, mas mantemos a fé que em algum momento encontraremos uma saída – seja ela qual for. Seguindo os passos dos prisioneiros dos Carceri, os jogadores de Squid Game, na impossibilidade de suas próprias realidades pessoais, se voluntariam, com fé num futuro melhor, a uma prisão arquitetônica que tem como única saída o fim.
*Por Romullo Barato, de ArchDaily Brasil

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