Opinião

Arquitetura

Concursos e o uso de precedentes arquitetônicos

Thais Saboia Martins*, especial para HAUS
24/08/2021 14:24
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Espaço Cultural da Marinha, no Rio de Janeiro, que realizou concurso público de arquitetura recente para a criação do prédio para o Museu Marítimo do Brasil.

Quando o casal Bardi abandonou a direção da Revista Habitat em 1954, eles escreveram em sua carta de demissão formal: “Nenhum trabalho verdadeiramente apaixonado pode continuar ad infinitum, especialmente no campo da arte, cujo exercício sério pressupõe a polêmica.” Deixaram documentado ali que todo trabalho ou crítica de arte gerava controvérsias [1].
Hoje em dia, a sensação que temos é de uma ausência de discordâncias no campo da crítica de arquitetura, ressalva seja feita para o tema de restauro ou preservação de edifícios históricos. Os artigos destinados ao público não acadêmico são quase sempre descritivos, prospectivos, elogiosos e/ou publicitários. Quando o tema é sobre o resultado de concursos de arquitetura, simplesmente nos deparamos com reproduções dos pareceres de júri justificando a escolha dos premiados, pouco mais que isso.
Mas precisa necessariamente ser assim? Por que no campo da arquitetura ainda temos receio de trazer à tona temas polêmicos?  Ou ao menos de fazê-lo publicamente e por escrito? Todo debate de ideias (e isto implica divergência) deveria ser bem-vindo e motivo de entusiasmo, principalmente entre os jovens que estão amadurecendo e colocando à prova os seus valores. Ou será que no mundo do print-screen não se pode mais ter opinião sob o risco do bullying digital?
Na primeira foto, fachada e corte da primeira versão para a Casa Juscelino Kubitschek (1940-1943), por Oscar Niemeyer. Na imagem dois: cortes longitudinal e transversal do projeto não-realizado para a Casa Errazuriz no Chile (1930), por Le Corbusier.
Na primeira foto, fachada e corte da primeira versão para a Casa Juscelino Kubitschek (1940-1943), por Oscar Niemeyer. Na imagem dois: cortes longitudinal e transversal do projeto não-realizado para a Casa Errazuriz no Chile (1930), por Le Corbusier.
Recentemente o resultado de um concurso de arquitetura gerou um grande rebuliço “silencioso” no meio arquitetônico. Repúdios críticos existiram, alguns manifestados entre amigos em mensagens privadas de WhatsApp, outros posts de figuras públicas e outras não tão públicas, mas posteriormente apagados... Comprovando que a divergência existe e está bem viva, mas o problema realmente está em por qual canal manifestá-la ou de que modo fazê-la.
Tomaremos então o cuidado de não ferir ânimos porque realmente o que nos motiva é o debate de ideias, o pensar a respeito, e mostrar como todos – vencedores ou vencidos – estamos carregados de dúvidas. E vamos ao ponto que nos interessa, aquele que gerou a atual e tão famigerada discordância ao projeto vencedor no concurso em questão, porque consideramos um assunto de grande relevância para a profissão e para o ensino: o uso de precedentes em projetos de arquitetura.
Segundo fórmula latina Ex nihilo nihil fit (ou o nada provém do nada) sabemos que, arquitetos ou não, vivemos num mundo que nos alimenta constantemente de referências, sendo o conceito de originalidade por si mesmo quase uma falácia, ou uma impossibilidade. O próprio ensino de arquitetura se baseia na maior parte das vezes no estudo de referentes [2], sendo a história da arquitetura um imenso arsenal de experiências da qual é possível extrair ou traçar linhagens de influências ou confluências de pensamentos, estratégias e formas. É com base mesmo nos precedentes de arquitetura que entendemos a própria noção de “tempo não linear” da arquiteta Lina Bo Bardi: “...é um maravilhoso emaranhado onde, a qualquer instante, podem ser escolhidos pontos e inventadas soluções, sem começo nem fim.” A influência e o influenciar-se, no campo da arte, não estão restritos à noção do tempo linear ocidental, ainda que persista simultaneamente o conceito de transferência de saberes de mestre para aprendiz, de arquiteto para estagiário, de professor para aluno, etc.
Assumindo que sim, que o referente é um ponto quase inescapável no processo de projeto e que pode abarcar diversos campos ou etapas deste fazer, temos que nos perguntar se há algum limite no seu uso? E para este entendimento a própria história da arquitetura está repleta de exemplos, alguns declarados, outros iluminados por pesquisadores [3]: Oscar Niemeyer declarou em suas memórias a inspiração vinda da arquitetura da Casa-grande da Fazenda Colubandê como precedente para o Palácio do Alvorada – uma referência que só um olho treinado percebe a sutileza do artifício. No entanto, pouco confessou a filiação das duas versões da Casa Juscelino Kubitschek ao projeto não realizado de Le Corbusier para a Casa Errazuriz no Chile - sendo este último precedente muito mais evidente e menos distante no tempo. Poderíamos dar outros muitos exemplos, tanto de arquitetos brasileiros como estrangeiros...
Acima, fotografia do Palácio do Alvorada, projetado por Oscar Niemeyer (inaugurado em 1958). Abaixo: vista frontal da Casa-grande da Fazenda Colubandê.
Acima, fotografia do Palácio do Alvorada, projetado por Oscar Niemeyer (inaugurado em 1958). Abaixo: vista frontal da Casa-grande da Fazenda Colubandê.
Talvez o limite do uso do referente esteja mesmo na questão de sua evidência formal, no risco de imitar ao invés de apropriar-se de algo. T. S. Eliot já dizia em seu tempo: “Bad poets imitate, good poets steal”. O furto na arte implica subtrair algo de algo e, principalmente, em apossar-se, ou seja, transformar o objeto ao torná-lo seu. No campo da arquitetura o bom poeta (ou o bom ladrão) deve conseguir criar um novo projeto, ou seja, outro projeto diferente.
Sim, mas será que vemos estes limites de forma clara? Tememos que não, ou ao menos, não de forma unívoca na profissão. Limiares são difíceis de estabelecer e reconhecer. Fossem simples não precisaríamos ter regulamentado o conceito de plágio (cópia integral, parcial ou conceitual sem a permissão do autor), mas que num projeto arquitetônico em território brasileiro caracteriza-se pela “semelhança” em pelo menos duas entre três características estabelecidas: “reprodução do partido topológico e estrutural (1), distribuição funcional (2) e forma volumétrica ou espacial, interna ou externa (3)”(Resolução CAU/BR N.67). A palavra “semelhança” é traiçoeira, pois não sabemos se a interpretamos no sentido de igualdade ou de parentesco. Nem sempre é fácil identificar irmãos ou gêmeos não idênticos.
Mas então, se não houve plágio, se o uso do precedente é algo plenamente aceito e até incentivado no processo de aprendizagem ou na filiação a uma “escola” de arquitetura, qual foi o problema ou por que houve a tal polêmica “silenciosa” quanto ao resultado do julgamento de um concurso? Os defensores do projeto vencedor veem uma homenagem a um grande mestre recém falecido. Os detratores veem uma amostra do futuro da arquitetura neste mundo instagramável e líquido. Deixamos as opções em aberto para os leitores, não queremos ser conclusivos no tema.
Antes tínhamos um certo receio, agora é quase um anseio imaginar como seria o uso de uma inteligência artificial para trazer algum sopro de originalidade nos concursos de projeto de arquitetura. Por exemplo: escolhe-se um projeto qualquer, um precedente, e digita-se alguns comandos: partir ao meio, juntar os extremos, estender e repetir os ambientes internos, estreitar, converter elementos em estrutura metálica, reposicionar alguns apoios - num jogo formal alheio aos fatores originais geradores da forma emprestada. Claro que serão necessários alguns ajustes. Divertido, não? Sim, muito, mas será conveniente sempre avisar as regras aos demais participantes do certãmen. É óbvio que estamos brincando, do contrário seria muita frivolidade de nossa parte: um retorno às “remastigações dos estilos” utilizando, neste caso, conteúdo moderno-contemporâneo; e um esquecimento total do significado da palavra “contexto”. E não podemos esquecer que projeto de arquitetura é um exercício sério!
[1] Ver biografia de Lina Bo Bardi por Zeuler Lima.
[2] Ver escritos dos professores doutores Rogério de Castro Oliveira e de Edson da Cunha Mahfuz sobre o tema.
[3] A analogia entre a arquitetura Colubandê e o Palácio do Alvorada foi feita por Lucio Costa (1960), Paulo Ferreira Santos (1975) e depois pelo próprio Niemeyer (2000). Comparações entre a Casa Errazuriz e a Casa JK foram estabelecidas por Marcos Leite Almeida (2005), Danilo Matoso Macedo (2006) e Nicolás Valencia (2021).
*Thais Saboia Martins é professora DEAAU-UTFPR, sócia-fundadora do escritório Saboia+Ruiz Arquitetos e doutoranda PROPAR-UFRGS, onde desenvolve tese sobre o uso de precedentes históricos na obra de Lina Bo Bardi.
**O texto foi finalizado dia 21.08.21.

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