Brasília, 60 anos

Arquitetura

Delineando Brasília: entre o plano e a margem

Marina Oba e Emerson Vidigal*
21/04/2020 19:33
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Proposta vencedora no concurso para requalificação da orla do Lago Paranoá, em Brasília

Ao longo da história, rios, mares, lagos mostram-se decisivos à constituição e ao desenvolvimento de cidades, seja para abastecimento de água, defesa, transporte ou como fonte de energia. Se, em um primeiro momento, são responsáveis por moldar assentamentos urbanos, com o passar do tempo passam a ser objeto de modificações, distorções, e adaptações. O ambiente construído oferece um claro retrato da relação entre cidade e água, das questões colocadas e das prioridades assumidas. Preservar rios abertos ou canalizá-los? Aproximar ou afastar áreas edificadas das margens? Reduzir ou aumentar a densidade nessas áreas? Aterros, barragens, pontes, margens: como, quando, para quê ou para quem?
Vista do Lago Paranoá, em Brasília.
Vista do Lago Paranoá, em Brasília.
Durante
a década de 1950, tais perguntas permearam as discussões sobre a
nova capital brasileira, resultando numa das maiores concretizações
do Movimento Moderno: Brasília. Apesar de ter levado apenas quatro
anos para ser inaugurada, tanto a intenção de mover a capital para
o interior do país quanto o próprio lago são frutos de longos
processos de amadurecimento, anteriores a qualquer idealização
modernista.
A
intenção de interiorização da capital data originalmente do
século XVIII, mas ganhou vigor apenas depois da Proclamação da
República, em 1889, e do fortalecimento de elites políticas fora da
região Sudeste. O argumento assumido foi de que a Capital da
República deveria manter-se longe de agitações locais e de
preocupações internas, e dedicar-se exclusivamente à solução das
demandas nacionais.
Após
a determinação oficial do deslocamento da capital, foi organizada a
Missão Cruls (1892-94), que explorou, avaliou e demarcou a área no
Planalto Central em que deveria ser implantada da nova capital.
Durante a Expedição, Auguste Glaziou vislumbrou pela primeira vez a
construção de um lago artificial na várzea do Rio Paranoá. Mais
do que um elemento de abastecimento e navegação, o botânico
francês destacou a importância paisagística e de "aformoseamento”
do lago para a capital.
Ao
longo das décadas seguintes, não só a localização geográfica,
mas também o próprio deslocamento da capital foi colocado em
questão, por razões políticas, demográficas e geográficas. No
entanto, em 1955, com o endosso da empresa nova-iorquina Belcher and
Associates, foi aprovada a localização final da nova capital dentro
do Quadrilátero Cruls. Mais do que vantagens técnicas, como
acessibilidade, facilidade de desapropriação e abastecimento de
água, o Relatório Belcher evidenciava vantagens qualitativas do
sítio, como o potencial turístico e recreativo, e a diversidade
paisagística, que incluía a possibilidade de construção de
grandes parques vegetados ao longo de um lago projetado, com praias
artificiais e áreas para esportes náuticos.
Assim
que JK foi eleito e que a transferência da Capital foi sancionada,
foram encomendadas as provisões para a construção da barragem no
Rio Paranoá e para um Concurso Nacional do Plano Piloto. No edital
divulgado em 1957, poucas diretrizes de projeto guiavam o trabalho
dos participantes: o perímetro do Lago, a área destinada à
implantação ­da proposta, a localização do Palácio
Presidencial, de um hotel de luxo – ambos próximos ao lago e com
certa independência do Plano Piloto – e do aeroporto. No escopo
constava a organização de uma estrutura urbana capaz de abrigar
500.000 cidadãos em uma área de 5.000km2,
sem incluir projeto de edifícios, que seriam de responsabilidade de
Oscar Niemeyer. Tal brevidade em definições permitiu grande
discrepância entre as propostas e os produtos entregues, e motivou
discordâncias entre os membros do júri internacional.
Vinte e seis projetos foram submetidos das 62 inscrições iniciais. Os sete projetos selecionados como finalistas estabeleceram considerável proximidade entre o tecido urbano e o Lago, variando em termos de independência entre a geometria do plano e a linha d'água. Os usos propostos para a Orla variavam de residências a serviços públicos como universidades, hospitais ou parques. Eram unânimes, porém, na forma de ocupação: grandes áreas livres, de fruição pública, com edifícios esparsos – ambos sem desenho específico.
Loteamento em Brasília. Imagem baseada no dados georreferenciados da SEGETH.
Loteamento em Brasília. Imagem baseada no dados georreferenciados da SEGETH.
O plano sintético e emblemático de Lucio Costa foi selecionado pelo júri como a proposta que melhor reunia os valores urbanos, simbólicos e cívicos para a nova Capital do país. Mas não foi uma escolha unânime, nem livre de críticas. A primeira das quatro objeções listadas pelo júri tratava da "demasiada quantidade indiscriminada de terra entre o centro governamental e o lago", sugestão incorporada ao projeto final. No entanto, a aproximação do conjunto em direção ao Lago, acabou eliminando a avenida beira-lago, gerando uma área ainda mais indiscriminada entre os lotes privados e a linha d’água, e contradizendo o próprio discurso de Costa, que rejeitava "a localização dos bairros residenciais na orla da lagoa, a fim de preservá-la intacta, tratada com boques e campo de feição naturalista e rustica para os passeios e amenidades bucólicas de toda a população urbana."
Brasília
foi inaugurada em 1960. Nos primeiros anos, a ocupação do
território foi desigual, e incluiu cidades satélites, que só
estavam previstas para a década de 1980, além de assentamentos
informais. Em 1987, Brasília tornou-se o primeiro conjunto urbano a
ser reconhecido como Patrimônio da Humanidade pela Unesco. Sua
candidatura foi embasada em um decreto local do mesmo ano, que
regulamentou a preservação do Plano Piloto em quatro escalas:
monumental, residencial, gregária e bucólica – esta última,
criada por Costa em 1961 para descrever as áreas livres que
permeavam a cidade e margeavam o Lago. Três anos depois, para
garantir que a cidade ainda seria construída de acordo com a
proposta original de Costa, o Plano Piloto foi tombado pelo IPHAN.
Tal
proteção foi endossada por uma legislação federal, segunda a qual
a "escala bucólica", caracterizada pela baixa densidade e
proporção de área permeável, seria garantida por parâmetros
específicos e pelos 30 metros de recuo obrigatório, livre de
edificações, em toda a borda do Lago. Entretanto, o que se nota,
hoje em dia, é uma realidade bastante distinta.
Apesar
da porção da Orla inscrita ao Plano Piloto não ser em sua maioria
residencial, 84% de seu perímetro tem acesso restrito. Lotes
oficiais e não-oficiais alcançam as águas do Paranoá com
piscinas, quadras de tênis, píeres, praias e outras amenidades
privadas que limitam o acesso direto do público em geral. Mesmo os
16% restantes do perímetro têm fruição comprometida devido à sua
fragmentação e falta de infraestrutura, densidade e desenho. Ou
seja, um terço de toda a orla do Paranoá está associada ao
paradoxo conceitual instaurado pelo Plano Piloto, de ser ao mesmo
tempo uma área ambiental e arquitetonicamente preservada,
conceitualmente aberta ao usufruto da população urbana em geral,
mas praticamente inacessível, devido à privatização da maior
parte de seu território.
O
mesmo resultado é observado fora do Plano Piloto, nos bairros
residenciais das penínsulas norte e sul, com mansões estendendo
seus quintais pelo território da Orla. O percurso circunscrito ao
Lago se assemelha a uma estrada rural, ou de uma via secundária, de
acesso de serviços: sem densidade ou identidade, sem visuais para o
Lago, sem permeabilidade, amenidades ou convites à Orla. Já o
percurso interno, de quem navega o Lago, é uma vitrine exclusiva,
que ostenta além de uma rica biodiversidade, iates, veleiros,
jet-skis, piscinas, jardins e suntuosas edificações.
Esta
é uma realidade construída ao longo de décadas, cujas incoerências
não são novidade aos gestores do território. Nos anos 1990, o
Projeto Orla foi a primeira iniciativa de planejamento dos espaços
livres públicos às margens do Lago Paranoá. Incluiu 11 polos de
atividade a serem conectados por passagens e ciclovias, visando
atrair lazer, urbanidade e vivacidade para a Orla. Apenas dois desses
polos foram implementados e consolidaram-se de fato como áreas de
usufruto público: o Parque das Garças e o Pontão do Lago Sul –
nenhum deles dentro da área tombada. Mais recentemente, intervenções
de pequena escala tem se mostrado mais efetivas em democratizar a
Orla. É o caso dos projetos do Deck Sul e da Prainha do Lago Norte
– a primeira dentro e a segunda fora do perímetro tombado.
A partir de 2009, o Plano Diretor de Ordenamento Territorial (PDOT) passou a regulamentar o desenvolvimento do território do Distrito Federal. Nele, o perímetro tombado coincide com a zona única de preservação do Plano Piloto. A diretriz específica para as áreas da Orla é de “consolidar a vocação de cultura, lazer, esporte e turismo no Lago Paranoá”. No entanto – mais uma vez –, as intenções escritas permanecem abstratas, sem estratégias específicas, críticas e práticas para manter a orla livre e viva.
Propriedades privadas ao longo do Lago Paranoá
Propriedades privadas ao longo do Lago Paranoá
Entre
2015 e 2019, com suporte de uma decisão judicial que determinou a
retirada de construções não autorizadas da Orla, o governo local
lançou uma série de ações de planejamento chamadas Projeto Orla
Livre. Depois de seis décadas desde a construção de Brasília, foi
o primeiro plano estruturante e sistêmico para o uso e ocupação do
Lago e da sua orla. Conjuntamente, foi lançado o concurso
internacional para o Masterplan da Orla do Lago Paranoá, com a
intenção de resgatar e destinar a uma apropriação mais
equilibrada espaços situados beira-Lago, e reabilitar do uso
territorial da Orla.
A proposta vencedora é de autoria do escritório de arquitetura curitibano Estúdio 41, e tem como objetivo principal democratizar o acesso à Orla do Paranoá, retomando os espaços públicos para oferecer aos cidadãos em geral a possibilidade de usufruir do Lago, de suas paisagens, enfim, da escala bucólica. Para isso, foram previstas infraestruturas de apoio aos usuários como passeios, ciclovias, estacionamentos, além de equipamentos de suporte como áreas comerciais e sanitários.
Proposta vencedora para requalificação da orla do Lago Paranoá
Proposta vencedora para requalificação da orla do Lago Paranoá
Em
termos de planejamento de uso e ocupação, o projeto constitui em
totalidade os aproximados 110km de extensão da orla do Lago. No
entanto, as maiores intervenções propostas, em termos de desenho
urbano, estão localizadas nos lagos Sul e Norte e somam menos de
10km. Nesses pontos, para além das diretrizes propostas no
Masterplan, foram realizados projetos de urbanização e paisagismo,
definindo uma escala de parque urbano para uso público.
Por força do parcelamento do solo, são previstas apenas ocupações pontuais nos interstícios dos lotes localizados no interior do perímetro tombado. Ou seja: pouco poder foi conferido ao Masterplan em relação à porção inscrita ao Plano Piloto, prevenindo o estabelecimento de uma estratégia mais global para a Orla.
Mesmo
assim, todas as iniciativas do Projeto Orla Livre e do Masterplan
foram interrompidas depois das eleições de 2018.
Atualmente,
grande parte da população de Brasília compreende e apoia a
preservação do Plano Piloto ao mesmo tempo que reivindica acesso e
usufruto da Orla. No entanto, forças políticas, endossadas pelos
privilegiados usufrutuários da Orla, incorporam os argumentos de
preservação arquitetônica e ambiental do Plano Piloto e da Orla
como uma manobra de proteger um status-quo
exclusivo e elitista. A falta de instrumentos legais e políticas
públicas capazes de efetivamente transformar e adaptar o território
às demandas contemporâneas de Brasília e de seus cidadãos, bem
como as escalas distintas adotadas nas frentes de planejamento e de
implementação, inibem futuros desenvolvimentos.
Brasília continua fazendo escolhas para o Lago Paranoá; e as questões e as posturas adotadas continuam sendo registradas no ambiente construído. O risco iminente contra a preservação do Plano Piloto, e a reabilitação da Orla e do Lago não partem de intenções arrojadas e transformadoras, mas da crença equivocada e recorrente de que manter “intacto” é a melhor forma de proteção.
* Marina Oba
Arquiteta e urbanista pela UFPR, doutora em História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo pela FAUUSP e professora de projeto de arquitetura na UFPR.
*Emerson Vidigal
Arquiteto e Urbanista pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) em 1997. Doutor em Projeto de Edificações pela USP em 2010. Professor de projeto de arquitetura na UFPR desde 2006. Atua como arquiteto no Estúdio 41 desde sua fundação.

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