Opinião

Arquitetura

Em busca do otimismo perdido: “boa romaria faz, quem em sua casa fica em paz”

por Thais Saboia e Alexandre Ruiz*, especial para Haus
30/04/2020 15:52
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Projeto apresentado no Concurso Nacional de Habitação Social, em Brasília, pelo escritório Grifo.

Temos lembrado muito do avô da Thais nestes dias, principalmente de seus ditos. Quando, como arquitetos recém- -formados, morávamos na Espanha, volta e meia, ele do Brasil, nos dizia ao telefone: “Boa romaria faz, quem em sua casa fica em paz.” E ríamos juntos, nunca tínhamos levado isto realmente a sério. Até recentemente.
Seu avô foi um dos brasileiros sobreviventes à gripe espanhola, ele tinha menos de um ano de idade quando contraiu a doença. Um pouco mais de dez anos depois, novamente a família foi atingida em cheio, mas desta vez pelo crack da bolsa de valores de 1929. Em consequência de terem falido, o pai dele passou por um episódio de saúde que acabou lhe custando a vida. Mesmo com todas estas circunstâncias que lhe marcaram a infância – e todas as outras que enfrentaram aqueles que, como ele, viveram ao longo do século 20 –, seu avô sempre foi um otimista, alguém que vivia e trabalhava com responsabilidade e altruísmo. Só o vimos triste uma vez, quando estava no auge de seus 86 anos, com a saúde debilitada ou “esperando Godot”, como ele resmungava. Pois seu avô era um otimista, mas nunca um tolo, entendia sobre a inexorabilidade do tempo.
Hoje percebemos, como um casal de arquitetos e professores, que passamos boa parte de nossa vida, de certa maneira, incólumes às grandes catástrofes. Nem o terrorismo global alterou o nosso modo de vida inquieto, ou nosso modo de pensar a arquitetura, como a atual crise provocada pela Covid-19. Não que não houvesse outras coisas com o que se preocupar seriamente, sempre sobraram motivos, enfrentados talvez de forma excessivamente paliativa: doenças, acidentes, homicídio, pobreza... Mas nada que afetasse diretamente e emergencialmente nossa vida como comunidade e nação, nada que nos obrigasse literalmente a ficar em casa e parar para repensar o como ou para que vivíamos. Motivos para parar sobravam, apenas não nos forçavam a isso.
Nestes dias de confinamento, arquitetos ou não, já nos vemos todos repensando a essência do morar: quantos não alteraram o uso dos espaços da casa, abriram as janelas e garantiram seu banho de sol? E quantos não repensaram o sentido do viver em comunidade? Da vizinhança solidária dos grupos de WhatsApp às duas faces do mapeamento digital de dados: aquele que nos dá segurança em troca de nossa privacidade. Além daqueles menos privilegiados que sentiram na pele a urgência por projetos inovadores nas áreas de saúde, saneamento e habitação.
Em tempos de preocupação com micropartículas virais no ar que são melhor eliminadas em ambientes ventilados, podemos nos perguntar quando foi que considerável parte da arquitetura hospitalar renunciou à iluminação e ventilação natural em seus ambientes – como as das arquiteturas da rede Sarah Kubitscheck projetadas por João Filgueiras Lima – em troca da eficiência, rapidez e flexibilidade construtiva?
Esse tema é aprofundado no artigo “How hospitals went from airy temples to inhuman machines” (2017) da professora Jeanne S. Kysacky, da Universidade de Cornell, nos EUA. Valeria a pena dedicar tempo à pesquisa sobre o papel dos espaços da arquitetura hospitalar na propagação do coronavírus ou na recuperação dos pacientes, ainda que este tema traga dificuldades para ser levantado concomitantemente à crise. O emergencial é logicamente imediatista e, portanto, foca na necessidade de novos leitos e na quantidade e qualidade dos equipamentos de proteção e de respiração. Por isso, inclusive em Curitiba, vários arquitetos, designers e universidades que possuem impressora 3D já se dispuseram a produzir acessórios hospitalares como máscaras e válvulas para respiradores – iniciativa extremamente válida, sem dúvida. Mas já que estamos com tempo...
Num dos pronunciamentos do Ministério da Saúde a respeito da Covid-19 no Brasil, foi feito um alerta sobre as previsíveis consequências do nosso histórico descaso com saneamento e habitação. O problema habitacional não é algo novo no âmbito da arquitetura, tendo sido uma das bandeiras do movimento moderno em períodos de pós-guerra e sendo, desde então, foco de inúmeros trabalhos acadêmicos e profissionais. Lendo os textos de arquitetos que se dedicaram a essa causa no passado, vemos nas entrelinhas um grande otimismo e uma fé no futuro – fato que não os isentou de acertos e erros, próprios de seu tempo. Talvez, se nos mantivermos solidários e equilibrados como comunidade, neste caos sanitário e econômico vaticinado para os próximos meses, possamos como classe profissional de arquitetos tentar recuperar o otimismo perdido – com os pés no chão e atentos aos ensinamentos da história – e direcionar nosso esforço em prol destes 100 milhões de brasileiros sem coleta de esgoto e/ou os 35 milhões sem acesso à água potável – antes mesmo da Covid-19.
“Não pense já em construir uma nova Brasília, comece projetando a porteira do sítio de Piraquara”. Este foi outro dos ditos do avô da Thais, que não era arquiteto.
Às vezes repetimos isso para alguns alunos quando queremos que retornem à essência das coisas, sem afetações de grandiosidade, que entendam a natureza técnica da profissão e voltem seu olhar para o que existe ao nosso alcance – uma vez que vivemos num mundo de comunicabilidade excessiva e muita pouca reflexão.
E demos algumas risadas no nosso confinamento familiar quando percebemos que foram justamente nos concursos públicos para uma pretensa “Nova Brasília” – a periférica e sem recursos – onde recentemente vimos novas estratégias para se repensar a dinâmica social e urbana da arquitetura habitacional brasileira. Exemplo de iniciativa de concurso público da COHAB-DF que poderia muito bem ter sido seguida por outros lugares. Ainda há tempo.
Por último, ao refletirmos sobre as possíveis mudanças do modo de vida urbano previstas para um mundo pós--Covid – cada vez mais dependente de atividades remotas e a distância –, insistimos que soluções devem ser encontradas para o perigo representado atualmente pela aglomeração de pessoas (ver concurso proposto pela UCL: PostCovid Urban Structures). O lema do momento é: “distanciamento físico e solidariedade social”. Mas será que o mundo pós-Covid pode nos forçar a abrir mão da força gerada pelo encontro físico de pessoas, quando é justamente este encontro o que torna as cidades atrativas? Existem cidades sem pessoas? Vale lembrar que foram justamente nas discussões urbanas da civilização ocidental onde se formaram nossos conceitos democráticos de cidadania e de respeito ao próximo. Podemos abalar as bases, sem destruir a construção?
Neste momento de incertezas quanto ao futuro, como arquitetos e professores, não podemos ficar “esperando Godot”. Sentimos uma obrigação moral em manter o otimismo e continuar acreditando na força transformadora da arquitetura em nossas cidades - com projetos que se apoiem em realidades válidas, atentos às tecnologias e sensíveis às necessidades humanas - onde certamente não haverá mais lugar para o supérfluo.
*Thais Saboia e Alexandre Ruiz são professores universitários (UTFPR e UP) e sócios-fundadores opinião da Saboia + Ruiz Arquitetos

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