Arquitetura

Exclusivo: revelados primeiros detalhes do Museu da Bíblia concebido por Niemeyer para Brasília

Aléxia Saraiva
17/01/2020 23:56
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Museu da Bíblia, coatoria de Oscar Niemeyer e Paulo Sérgio Niemeyer, funcionará como complexo cultural. Estrutura é "síntese da obra de Niemeyer". Imagem: reprodução/Instituto Niemeyer

A meca da arquitetura moderna brasileira promete entregar, até 2022, mais uma obra para compor seu acervo: o Museu da Bíblia. A promessa a Brasília, feita pelo governador do Distrito Federal Ibaneis Rocha (MDB), faz renascer uma ideia de 1987, desenvolvida por Oscar Niemeyer. À época, o arquiteto elaborou croquis e um estudo preliminar para o projeto de um memorial destinado à cidade, e o chamado “Memorial da Bíblia” ganhou, através da lei nº 900/1995, o direito a um terreno de 15 mil m² no Eixo Monumental.
Em 2019, Rocha retomou a ideia do projeto e assinou, em outubro, um termo de compromisso para aplicar recursos de emendas parlamentares na construção do memorial, em uma reivindicação conjunta da Frente Parlamentar Evangélica da Câmara dos Deputados. Segundo o Governo do Distrito Federal (GDF), a previsão é de que R$ 2,6 milhões sejam investidos na obra.
Imagem: reprodução/Instituto Niemeyer
Imagem: reprodução/Instituto Niemeyer
Os croquis de Niemeyer passaram a ganhar corpo através de seu bisneto, o arquiteto Paulo Sérgio Niemeyer, presidente do Instituto Niemeyer e coautor do projeto. É ele o responsável pelo detalhamento dos projetos básico e executivo, que possibilitam a execução da obra.
“O Museu da Bíblia é uma síntese de um trabalho do Oscar Niemeyer em termos de arquitetura e de estrutura”, define Paulo Niemeyer, em entrevista exclusiva à HAUS. “Como ele mesmo descreve no croqui original, ele queria que [a construção] surgisse do chão como algo que viesse da natureza”.

Referências à Oca, Catedral de Brasília e Le Havre

Segundo o arquiteto, o projeto tem elementos que fazem referências a múltiplos trabalhos de Niemeyer. Um exemplo é um recorte na parte superior do edifício que prevê a entrada de luz, visível em um dos croquis. “Eu vejo uma relação com a catedral de Brasília, onde existe a ideia de a pessoa chegar e ver que o céu entra pelo teto — que representa o contato com Deus”, explica Paulo.
Croqui de Niemeyer de 1987 prevê uma abertura para entrada de luz na sala expositiva principal. Imagem: divulgação/GDF
Croqui de Niemeyer de 1987 prevê uma abertura para entrada de luz na sala expositiva principal. Imagem: divulgação/GDF
Outro elemento é a repetição de aberturas para entrada de luz que remetem a portais presentes na arquitetura colonial portuguesa, cuja estética remete à Oca, em São Paulo. “Ele traz uma referência estética da arquitetura colonial para uma modernidade da arquitetura concreta moderna”. Já a praça na qual se encontra o edifício, rebaixada entre quatro e cinco metros com relação ao chão, cria um pavimento semienterrado — solução para diminuir o impacto dos ventos vista na Bibliothèque Oscar Niemeyer (em Le Havre, França).
O bisneto de Niemeyer também desmente que o projeto tenha sido inspirado em uma bíblia aberta ou no Museu da Bíblia de Washington (EUA), inaugurado em 2017 — ambas supostas referências do projeto.
O museu a ser erguido em Brasília terá 3.690 m² de área construída, com capacidade para 4,5 mil pessoas. Além das salas expositivas destinadas ao livro sagrado, o complexo cultural prevê um teatro com capacidade para 548 pessoas, quatro salas de cinema, biblioteca e praça de alimentação.
Imagem: reprodução/Instituto Niemeyer
Imagem: reprodução/Instituto Niemeyer

Autoria do projeto levanta polêmica

O Museu da Bíblia, no entanto, levantou um debate entre entidades da área com relação à autoria do projeto. Segundo nota publicada pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Distrito Federal (CAU/DF), ele não pode ter autoria de Oscar Niemeyer — falecido em 2012 — uma vez que não possui Registro de Responsabilidade Técnica (RRT), o qual não pode ser emitido postumamente.
Daniel Mangabeira, presidente do CAU/DF, explica que os croquis e o estudo preliminar deixados pelo arquiteto não são suficientes para a construção do edifício e, portanto, o desenvolvimento do projeto executivo não pode ser de sua autoria.
“Oscar Niemeyer, mais do que ninguém, detalhava muito bem os seus projetos. Para qualquer arquiteto, o croqui é o lançamento de uma ideia original. Um exemplo básico disso é o conhecido projeto do Palácio da Alvorada: até a realização final do projeto, Niemeyer fez muitas modificações. Então quem garante que o Museu da Bíblia, havendo apenas o estudo preliminar, não seria modificado por ele?”, questiona Mangabeira.
O presidente endossa que o posicionamento do CAU/DF não tem como objetivo ser contrário à iniciativa da construção do museu: “Nossa intenção foi principalmente esclarecer à sociedade que o projeto apresentado na mídia e desenvolvido pelo Paulo Sérgio não é desenvolvido pelo Oscar. Agora, se o governo quiser fazer um museu, faça um concurso. A gente apoia esse tipo de iniciativa. O que não pode é dizer que o projeto deste museu é de Oscar Niemeyer”.
Croqui de 1987. Imagem: divulgação/GDF
Croqui de 1987. Imagem: divulgação/GDF
Segundo Paulo Sérgio Niemeyer, os croquis originais contêm os detalhes e elementos necessários para se fazer a concepção do projeto, e afirma que sua experiência profissional junto de seu bisavô garante sua capacidade de detalhá-lo. “O que argumentam sobre a RRT é um absurdo ainda maior, pois para desenhar qualquer projeto não é obrigatório entregar ao cliente — ou a quem quer que seja — este documento. Ele é necessário apenas para efeitos de obra e registro de autoria e responsabilidade legal, fato que não chegou a ocorrer por não ter sido realizado na época, época inclusive em que não existia o CAU”, explica.
Outro organismo que questiona o desenvolvimento do Museu da Bíblia é a Fundação Oscar Niemeyer (FON), instituição que visa preservar a imagem e obra do arquiteto e que detém os direitos autorais de Niemeyer através de certidão pública.
Imagem: reprodução/Instituto Niemeyer
Imagem: reprodução/Instituto Niemeyer
Através de nota divulgada à imprensa, a FON aponta que “após o falecimento do arquiteto, ações oportunistas de apropriação de sua obra e imagem têm sido questionadas e combatidas” e que até o momento não foi procurada pelo GDF a respeito do Museu da Bíblia.
“A informação obtida através da mídia de que terceiros foram contratados para o desenvolvimento de um projeto a partir de croquis de Oscar Niemeyer nos surpreende e estamos solicitando esclarecimentos ao Governo do Distrito Federal para verificar a violação aos direitos autorais de Oscar Niemeyer”, afirma a nota (confira a nota completa ao final da matéria).
Procurada pela reportagem, a Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa do Distrito Federal (Secec) afirma não ter sido notificada oficialmente sobre contestações referentes à autoria do projeto.

Desenvolvimento do projeto

Imagem: reprodução/Instituto Niemeyer
Imagem: reprodução/Instituto Niemeyer
Paulo Sérgio afirma que, atualmente, o instituto está em fase de finalização do projeto básico, e que a expectativa é de iniciar as obras em março. Diversas etapas ainda são necessárias até o efetivo início da construção. Depois de protocolado pelo GDF, o projeto passa pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), uma vez que o conjunto urbanístico de Brasília é Patrimônio Mundial da Unesco desde 1987. A cidade projetada por Lúcio Costa conta com mais de 60 edifícios assinados por Oscar Niemeyer, entre os quais estão a Praça dos Três Poderes, os Ministérios, o Palácio do Itamaraty, a Catedral e o Teatro Nacional.
Paralelamente, a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Urbano e Habitação do Distrito Federal (Seduh) está elaborando o estudo para parcelamento do lote destinado ao Museu da Bíblia para uso cultural, a oeste do Eixo Monumental. Já a Sesec aguarda a finalização do processo de transferência do lote para iniciar a contratação do projeto executivo.

NOTA DA FUNDAÇÃO OSCAR NIEMEYER PARA A IMPRENSA:

Tendo em vista as questões que estão em evidência em relação a obra de Oscar Niemeyer e as últimas notícias publicadas na imprensa, a Fundação Oscar Niemeyer, por meio de sua assessoria de imprensa, vem a público comentar o seguinte.
Vale ressaltar:
A Fundação Oscar Niemeyer, criada em 1988, tem como principal objetivo a preservação da imagem e da obra do arquiteto. Para este fim, recebeu de Niemeyer, através de certidão pública, a cessão de direitos autorais.
Após o falecimento do arquiteto, ações oportunistas de apropriação de sua obra e imagem têm sido questionadas e combatidas pela Fundação Oscar Niemeyer, incluindo iniciativas de atribuir a Oscar Niemeyer a autoria de projetos de terceiros.
Entendemos, ainda, que a possibilidade de construções póstumas de obras de Oscar Niemeyer deve ser avaliada caso a caso, criteriosamente e, igualmente, colocamo-nos contrários a várias iniciativas desta natureza.
Com relação ao projeto do “Museu da Bíblia”, atualmente sendo noticiado como em processo de contratação, gostaríamos de esclarecer que a Fundação Oscar Niemeyer, proprietária da obra intelectual deixada por Niemeyer, em NENHUM momento foi procurada pelo Governo do Distrito Federal com este objetivo.
A informação obtida através da mídia de que terceiros foram contratados para o desenvolvimento de um projeto a partir de croquis de Oscar Niemeyer nos surpreende e estamos solicitando esclarecimentos ao Governo do Distrito Federal para verificar a violação aos direitos autorais de Oscar Niemeyer.

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