Entrevista

Arquitetura

Pe. Júlio Lancellotti não permite que governantes esqueçam os problemas sociais, defende arquiteto da FAU-USP

Luan Galani
20/12/2021 12:22
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Professor titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP e ex-diretor do Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP, Hugo Segawa fala com exclusividade para HAUS durante evento de conclusão da exposição “Concurso como prática” no MON.

Um dos nomes mais respeitados da tradicional Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), o arquiteto e urbanista Hugo Segawa, 65 anos, esteve no último dia 10 de dezembro no Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba, para a conclusão da exposição "Concurso como prática: a presença da arquitetura paranaense", de autoria dos arquitetos Fábio Domingos Batista, Alexandre Ruiz Rosa e Marina Oba, com curadoria da arquiteta Elisabete França.
Antes de sua palestra, para a qual foi convidado, Segawa conversou com a redação de HAUS sobre diversos "temas quentes". Ele critica a pouca visibilidade que se dá ao trabalho dos arquitetos que não atuam com interiores e reprova a gestão municipal do agora governador João Doria (PSDB). "Todas as promessas do Doria de quatro anos atrás: não aconteceu nada. Não surtiu efeito. Não foram iniciativas consequentes. O problema continua", avalia Segawa.
Hugo Segawa tem como frentes de pesquisas a arquitetura da América Latina, a arquitetura contemporânea e a arquitetura das décadas de 1930 e 1940.
Hugo Segawa tem como frentes de pesquisas a arquitetura da América Latina, a arquitetura contemporânea e a arquitetura das décadas de 1930 e 1940.
O arquiteto, que leciona na USP, guarda a gentileza no bolso e não economiza críticas sobre a condução do patrimônio cultural no país. Ele ainda fala sobre concursos públicos de projeto de arquitetura e diz que a polêmica sobre o concurso do Museu Marítimo do Brasil não o incomodou. "É uma discussão menor. Há coisas mais importantes para discutir. Essa discussão morre como um registro de momento. Não é um tema transcendental", conclui. Confira a entrevista na íntegra com Hugo Segawa!

Você está escrevendo algum livro novo? Pode nos contar um pouco sobre as pesquisas que você está desenvolvendo neste momento?

Bom, na universidade de São Paulo estamos constantemente trabalhando com alunos e alunas de pós-graduação, pós-doutorado e até iniciação científica. Então, a gente opera em várias frentes de pesquisa, na qual cada pesquisador tem uma linha de trabalho. Vamos dizer que eu estou em um certo recorte com a América Latina, a arquitetura dos anos 1930 e 1940, e a arquitetura contemporânea. São vários recortes.

Poderia nos dar alguns exemplos?

A América Latina é um campo a explorar. Embora sejamos parte, é muito claro que temos uma América Latina portuguesa e uma América Latina espanhola. Num certo sentido, tomando uma metáfora que o paraguaio Augusto Roa Bastos fez a partir de Guimarães Rosa, a América Latina é como dois irmãos siameses que estão grudados pelas costas e cada um olhando para um lado. Então, é esse sentido de que as Américas não se conversam. Esse é um dos pontos para entender esses processos. Não que a América Latina seja um campo inexplorado, sobretudo na arquitetura.
Mas acho que, enfim, é um engajamento que há 40 anos venho incentivando meus alunos a buscarem essas relações de forma mais profunda. Sobretudo na época em que se dissolvem as fronteiras e no momento em que a globalização está posta em xeque. Aí estão os nacionalismos, problemas políticos no Afeganistão, o Brexit, e a América Latina. E surge a própria dúvida sobre o sentido da globalização. É uma constante necessidade de rever a noção dessa América Latina. Na arquitetura existe essa solidariedade entre arquitetos, mas precisamos investigar sem paixões.

A arquiteta Nadia Somekh, primeira mulher eleita para presidir o CAU, disse em entrevista para HAUS: "O Brasil precisa de arquiteto pé no chão". Você concorda?

Acho que pode ser uma generalização justa e injusta. Justa porque a imagem dos arquitetos, como categoria profissional, para um público mais amplo está no campo da decoração, que parece futilidade, mas implica sobretudo qualidade de vida. Agora, também temos arquitetos operando nas periferias, nas comunidades, favelas, em vários campos. A questão é que a visibilidade para o grande público não é clara. A Casa Cor, por exemplo, sem juízo de valor, dá visibilidade ao público. E parece que arquiteto só faz isso. Agora veja o Estúdio 41, que fez um projeto de uma base na Antártida, um edifício altamente científico. E a comunidade científica desconhece que precisa ter uma expertise. O Estúdio 41 é um dos poucos no mundo que pode projetar em ambientes frios. A questão é que não se projeta estação na Antártida toda semana. O acelerador de partículas em Campinas, projeto do Paulo Bruna, também da FAU-USP, é um projeto sofisticado do ponto de vista físico e tecnológico. Disto até trabalho de urbanização. O CAU deveria incentivar, fazer o público reconhecer isso. Conhecer, melhor dizendo.
Existem arquitetos batalhando por isso, preocupados com gênero na arquitetura, inclusive aqui na exposição dos concursos. As mulheres ganham relevância apenas nas décadas recentes. A questão é dar visibilidade a contribuições que arquitetos podem oferecer à sociedade. E fazer que isso alcance a sociedade em geral.

Na nossa última entrevista, em 2017, você avaliou como um desastre o que o Doria estava fazendo na Cracolândia, em São Paulo. Essa questão avançou, a figura do Júlio Lancellotti veio à tona e muito tem se debatido sobre a arquitetura hostil e a ocupação dos espaços públicos. Qual a sua opinião sobre isso?

Padre Júlio Lancellotti tem a iniciativa de chamar atenção para o problema. Ele sozinho não vai resolver. Não é uma pessoa, mesmo com o prestigio dele, que vai resolver. Mas ele chama atenção para a questão na escala maior. Uma cobrança que deve ser feita para os governantes, de tomar atitudes. Todas as promessas do Doria de quatro anos atrás: não aconteceu nada. Não surtiu efeito. Não foram iniciativas consequentes. O problema continua. Mas se não se chama atenção, não acontece. A função social do padre é essa. Poderiam ser outras pessoas também. O CAU, por exemplo. Mas, veja. Voltamos à questão da visibilidade. As pessoas não veem o problema e infelizmente escondem. É muito conveniente esconder esse problema para alguns governantes.

E sobre o resultado do concurso do Museu Marítimo do Brasil? O que achou da discussão subsequente?

Eu acho que é uma discussão que os jovens que ganharam têm o direito de tomar partido de quem eles admiram. Não vejo problema, a princípio. Não é bobagem, mas é uma discussão menor. Igual discutir se Lelé [João Filgueiras Lima] plagiou Niemeyer. Há coisas mais importantes para discutir. Fica essa questão estética. A estética é muito importante, uma dimensão que se contrapõe nas comunidades em periferia. Pode até entrar, mas em geral não. É importante. Esses temas de periferias pressupõem uma sensibilidade. E sensibilidade vem pela estética. No sentido de que a estética e a sensibilidade são formas de sensibilizar para formas políticas e sociais. A arte tem esse potencial. Então, OK. Voltando ao concurso da Marinha, tem certo peso para estudantes de arquitetura e jovens profissionais, mas não diria, no meu ponto de vista, que é um tema transcendental. A discussão morre como uma notícia, um registro de um momento.
Projeto vencedor do concurso para o Museu Marítimo do Brasil.
Projeto vencedor do concurso para o Museu Marítimo do Brasil.

Há pouco tempo Paulo Mendes da Rocha e a família de Lúcio Costa doaram todos seus respectivos acervos para um instituto português. Qual a sua opinião?

Uma pena. Uma pena porque seria como se a Espanha exportasse definitivamente a Guernica. Isso é patrimônio brasileiro, esses desenhos do Paulo, do Lúcio, de Brasília, dos concursos. Então é como exportar como commodity, uma escultura do Aleijadinho. Esse é o valor deles.

Mas entre não ter alternativas aqui e ter um lugar em que os materiais ficarão protegidos. O que lhe parece melhor?

Mas quem garante que isso está bem guardado em Matosinhos? Não temos garantia.

Não houve notícias de goteiras e incêndios lá.

Portugal é menor que o estado de São Paulo. A economia também é menor que o estado de São Paulo. A instituição depende de recursos da municipalidade. Se mudar a câmara, o próximo conselho dará continuidade para financiar esse projeto? Ninguém garante. A questão é: como se ninguém consegue cuidar das estátuas do Aleijadinho, vamos mandar para a Itália. É a mesma coisa. O país não tem capacidade de estabelecer política de defesa do seu patrimônio. Ou o Abaporu, da Tarsila do Amaral, que está na Argentina. Estamos exportando desenhos de Paulo e Lúcio, é como exportar Abaporus. Estamos exportando outra pintura porque não sabemos cuidar do patrimônio.
Para Hugo Segawa, doação de acervos de brasileiros para instituição de Portugal foi um erro.
Para Hugo Segawa, doação de acervos de brasileiros para instituição de Portugal foi um erro.

O que falta para concursos de arquitetura serem mais comuns nas cidades brasileiras?

É uma decisão pública. O CAU pode ajudar, mas é uma questão de vontade política. É uma decisão pública dos governos, em todas as esferas, e também da iniciativa privada, como acontece nos Estados Unidos. Esse processo precisa de conscientização do sentido do concurso, da contribuição cultural. Na América Latina existem vários países que entendem isso.

Aqui em Curitiba o argumento da prefeitura é que o Ippuc tem ótimos arquitetos para projetar, o que acaba ignorando a contribuição que outros escritórios possam fazer.

Não sei muito bem como acontece aqui, mas é perfeitamente possível em organismos públicos que tem essa responsabilidade. Como o Centro de Estudos Unificados, repartição da prefeitura. O Affonso Reidy, que projetou o Pedregulho, era funcionário público, por exemplo. Um não elimina o outro. Existe mercado para todos. Especialmente em um país continental como o Brasil.

Ministério das Cidades faz falta?

Ministério das Cidades não está presente. O Brasil é um país urbano então é preciso ter ações consequentes sobre as cidades, assim como ações consequentes sobre a agricultura. É necessário, então. É uma crítica de natureza mais política. Os governos nunca deram a devida prioridade ao Ministério das Cidades como organismo de estabelecer diretrizes, ordenações melhorias, relações que melhorem a qualidade das nossas cidades. Se Ministério da Agricultura estabelece diretrizes e vai lutar por isso, deveria haver Ministério das Cidades para orientar nossas cidades, nossas áreas metropolitanas. Em algum momento houve implementação sem o Ministério das Cidades. Mas o Ministério das Cidades seria um organismo em que naturalmente as questões seriam discutidas de forma sistematizada e com diálogo com a sociedade, com o CAU, com o CREA, geógrafos, enfim. Infelizmente o Ministério das Cidades tem sido balcão de política e ocupado por políticos, e não arquitetos. De forma geral, o Ministério das Cidades tem sido um ministério omisso em suas atribuições.

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