Arquitetura

Por desuso, igrejas na Holanda viram cafés, museus e até bares

Aléxia Saraiva
01/09/2019 20:45
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Em Utretch, Holanda, igreja gótica foi transformada em cervejaria belga. Foto: divulgação/Belgian Beer Café Olivier | LevendEcht

Mansões que viram cafés, fábricas que se transformam em espaços de eventos. Cada vez mais, espaços obsoletos ganham novos usos e aos poucos reconfiguram cidades inteiras. Na Holanda, esse conceito ganhou novas proporções: com a queda do número de pessoas religiosas no país, igrejas católicas e protestantes têm se reconfigurado para abrigar novos estabelecimentos, de cafés a cervejarias.
É o caso da livraria Selexyz Dominicanen, na cidade de Maastricht, que funciona dentro de uma igreja dominicana do século 13. O projeto, realizado pelo escritório Merkx + Girod, mantém a arquitetura gótica ao mesmo tempo em que trouxe elementos contemporâneos para compor a livraria. Um café também funciona no local em que ficava o altar — que traz uma mesa em formato de cruz, para aprofundar o diálogo entre os dois tipos de arquitetura.
Livraria Selexyz Dominicanen, em Maastricht, Holanda. Foto: divulgação
Livraria Selexyz Dominicanen, em Maastricht, Holanda. Foto: divulgação
Outro exemplo é Mesquita de Fatih, em Amsterdã. A igreja que em séculos anteriores era da congregação jesuíta foi desativada em 1971. Dez anos depois, foi comprada e reformada pela Fundação Islâmica Fatih, que preservou a maior parte da arquitetura original. As mudanças mais significativas são relacionadas à própria religião muçulmana: as cruzes foram substituídas por meias-luas, e o culto é feito virado para a porta, em vez de para o altar.
Foto: divulgação
Foto: divulgação

Uma igreja fechada por semana

A mudança de usos pode causar estranhamento para quem entende as igrejas como espaços sagrados, mas peculiaridades da história e da cultura da Holanda ajudam a compreender essa dinâmica. Quem explica é Adriano Godoy, doutorando em antropologia social pela Unicamp e pesquisador visitante da Utrecht University, na Holanda.
“A Holanda era domínio do império espanhol e católico, e a sua independência se dá justamente pela religião, com a reforma protestante e o calvinismo que inspiram a revolta iconoclasta”, explica. “Assim, as igrejas mais antigas — as grandes catedrais — foram inicialmente construídas como católicas e, depois da independência, passaram a ser usadas pelos protestantes que as transformaram dentro das suas regras”.
Oude Kerk, mais antiga igreja de Amsterdã, construída em 1213, atualmente funciona como museu. Foto: Alex Mark
Oude Kerk, mais antiga igreja de Amsterdã, construída em 1213, atualmente funciona como museu. Foto: Alex Mark
A partir do século 16, os católicos tiveram o direito de crença garantido, mas foram proibidos de construir novas igrejas. Com as antigas igrejas usadas pelos protestantes, eles passaram a ter cultos em igrejas escondidas — as chamadas schuilkerk. A permissão só foi concedida novamente no século 19 — quando ouve uma explosão de novas igrejas católicas.
“Logo depois, no século 20, a Holanda começa a presenciar uma grande queda no número de pessoas religiosas. As primeiras a fechar as portas para cerimônias religiosas são justamente as do século 19″, analisa. “Elas não despertam o mesmo interesse público [das catedrais góticas] e acabam fechando por falta de verba. O número é quase inacreditável: a média em 2018 foi de uma igreja fechada por semana no país“.
Um dos usos mais comuns atribuídos às "ex-igrejas" são museus de arte moderna e contemporênea, como na Oude Kerk. Foto: Hijme Stoffels
Um dos usos mais comuns atribuídos às "ex-igrejas" são museus de arte moderna e contemporênea, como na Oude Kerk. Foto: Hijme Stoffels
Em números: 50% da população holandesa se dizia sem religião, segundo pesquisa de 2015 da Statistics Netherlands. O Brasil, em comparação, tem apenas 8% da população que se declara sem religião, de acordo com o IBGE.

E pode?

Godoy explica que o entendimento do espaço de culto varia de acordo com a religião. Enquanto os católicos veem a igreja como um espaço consagrado, os protestantes a entendem como um local de encontros. “Se entre brasileiros católicos isso soa herético e errado, justamente por essa tradição religiosa forte, é diferente para os holandeses protestantes que veem com mais naturalidade”, aponta.
No entanto, as igrejas não são vendidas sem um rito. A desconsagração é uma prática comum entre os católicos holandeses, e consiste, basicamente, em uma missa de despedida. E, apesar do número minguante de católicos, isso não acontece sem dor para a comunidade. “Os vínculos das pessoas com a igreja envolvem muitas lembranças e afetos, como se fosse uma casa na qual se morou a vida inteira. O valor comunitário para as famílias do bairro é inquestionável”, acrescenta Godoy.
Rito de desconsagração em igreja Sint Jacobuskerk, em Utrech. Foto: Daan Beekers/Religious Matters
Rito de desconsagração em igreja Sint Jacobuskerk, em Utrech. Foto: Daan Beekers/Religious Matters
Por isso, a cerimônia acaba não sendo uma simples missa. Na Igreja de Sint Jacobuskerk, em Utrech, a comunidade adicionou ao rito uma procissão simbólica em direção ao novo local de culto: uma igreja protestante, que vai dividir o espaço entre as duas religiões.
Procissão saída da Sint Jacobuskerk, em direção à Protestant Bethel Church, que vai abrigar os ritos da comunidade. Foto: Daan Beekers/Religious Matters
Procissão saída da Sint Jacobuskerk, em direção à Protestant Bethel Church, que vai abrigar os ritos da comunidade. Foto: Daan Beekers/Religious Matters
“Ao meu ver a religião é uma coisa viva, em constante transformação, e assim também são os prédios, as arquiteturas, que vão se adequando ao tempo e a história. Penso que em um país com uma queda da religião como categoria definidora de hábitos comuns, da vida em comunidade, seria lógico que os prédios perdessem o seu uso original“, frisa o pesquisador.
“Esses novos usos refletem o nosso tempo, como é pensado o uso da cidade, e é interessante perceber como nessa dinâmica as atividades comerciais ocuparam o espaço das religiosas. A escolha de manter parte das suas características arquitetônicas gera uma nova dinâmica na cidade“.

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