Arquitetura

Jovens arquitetos curitibanos colecionam prêmios pelo mundo com projeto de impacto social

Aléxia Saraiva
24/08/2018 10:30
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O escritório de arquitetura Aleph Zero foi fundado em 2012 pelos curitibanos Gustavo Utrabo e Pedro Duschenes. Desde então, eles têm arrematado uma sucessão de honrarias internacionais da área, chegando a uma das maiores do mundo: o prêmio RIBA de arquitetura emergente. Conheça os arquitetos que têm ganhado fama internacional por subverter a forma de pensar a arquitetura
Gustavo Utrabo e Pedro Duschenes. No último ano, esses nomes foram vistos incessantemente por diversas premiações da arquitetura: Saint-Gobain, Tomie Ohtake AkzoNobel e ArchDaily Building of the Year Awards. Todos eles homenagearam uma escola projetada para a Fundação Bradesco na Fazenda Canuanã, em Formoso do Araguaia (TO). A sensibilidade que os arquitetos tiveram em criar um espaço em parceria com as crianças e que ao mesmo tempo dialogasse com o contexto espacial da região chamaram a atenção — tanto que, em maio, seu escritório Aleph Zero foi eleito pelo Royal Institute of British Architects (RIBA) como o mais promissor nome da arquitetura emergente neste biênio.
Conheça a trajetória e os pilares que guiam o trabalho dos arquitetos curitibanos formados pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) que vislumbram um futuro promissor.
 Como vocês se conheceram? Quando começaram a trabalhar juntos e como surgiu o escritório?
Nos conhecemos na UFPR. Estávamos na mesma turma do curso de arquitetura e foi a partir do terceiro ano que uma parceria mais contínua teve início. Acreditamos que aí, muito inocentemente, surgiu o escritório, pois começamos a criar uma forma de trabalho nossa, com base em características individuais que se complementam até hoje. Rapidamente encontramos diversos interesses comuns, como a noção de natureza na arquitetura brasileira e o apreço pela arte e as leituras de filosofia que nos aproximaram intelectualmente.
Quando, como e por que escolheram cursar arquitetura?
Utrabo: Eu iniciei o curso de engenharia mecânica e entendi que não era isso que me interessava. Acabei mudando para arquitetura, meio sem saber o porquê. Pensando hoje, com certo distanciamento, acho que essa escolha está relacionada a três experiências. A primeira é estar em uma família de fotógrafos, na qual a construção da imagem era importante para comunicar uma ideia. A segunda, por ter realizado alguns cursos de história da arte enquanto cursava engenharia. A terceira, e talvez a mais ingênua, é uma memória afetiva de quando era criança e passava horas com meu pai montando aeromodelos em madeira balsa. Construíamos os pequenos aviões em cima de plantas e depois testávamos se eles voavam bem. Logicamente, a precisão do voo derivava da precisão da montagem.
Duschenes: Meu interesse inicial veio por influência da família, já que estudaram arquitetura meu pai, mãe, avô, tio-avô. Mesmo meu bisavô, que era um industrial do ramo de colchões vindo da Hungria, teve um grande contato com a arquitetura na década de 1950, contratando artistas e arquitetos modernistas, como Lina Bo Bardi, Giancarlo Palanti, Di Cavalcanti e Cândido Portinari. Essa influência trouxe um olhar arquitetônico para minha infância, pois de forma lúdica já se falava de perspectiva com um ou dois pontos de fuga, tipos de estruturas e os grandes feitos de arquitetos como Artigas e Niemeyer. Nesse sentido, a decisão pelo curso acabou ocorrendo de forma natural e sem pressão, já que meus interesses se encaminhavam nessa direção.
Ambos tiveram experiências internacionais na sua formação. Como Barcelona e Munique contribuíram, individualmente, para a visão que vocês têm da arquitetura?
Utrabo: Estudei na Universidad Barcelona em um curso de história da arte. Foi muito interessante, pois pude conviver com artistas de diferentes formações e ter um panorama mais amplo de como a história e o trabalho artístico estavam relacionados. Fora isso, me estimulou a própria vivência na cidade, pois era possível ter diferentes experiências espaciais: bastava perambular pela cidade que se entendia a presença medieval das densas muralhas no centro histórico até as finas e reluzentes camadas da arquitetura contemporânea internacional que deixou seu rastro em Barcelona.
Duschenes: Através de um convênio estabelecido pela UFPR tive a oportunidade de estudar na Technical University of Munich, uma universidade direcionada ao desenvolvimento da tecnologia construtiva. Acabei cursando a matéria do professor Hermann Kaufmann, um dos mais importantes arquitetos de edificações de madeira da Alemanha e Áustria. Visitando algumas de suas obras, além da precisão técnica, me marcou muito a importância dada à nobreza do material, utilizado da forma mais respeitosa possível, buscando expressar ao máximo suas características naturais.
Sobre Munique, me impressionou o planejamento urbano competente, com excelente sistema de transporte público e grande incentivo ao uso da bicicleta, relegando o carro a um papel secundário como meio de locomoção. O complexo de imensos parques urbanos e vias exclusivas para pedestres são também ótimos exemplos de estratégias para tornar as cidades mais acolhedoras.
Quando vocês inauguraram o escritório?
Nossa parceria começou durante a faculdade, mas o Aleph Zero foi inaugurado no fim de 2012. Logo em 2013, vencemos o concurso nacional para a Cobertura do Mercado Público de Florianópolis e fizemos o projeto para o novo palco da Pedreira Paulo Leminski. São experiências de projetos com caráter público que foram construídos, o que é raro — ainda mais para um escritório tão jovem na época. Inauguramos o escritório com estas felizes possibilidades.
Qual foi o primeiro projeto marcante das suas carreiras? Foram individuais ou já no Aleph Zero?
É muito difícil escolher somente um projeto, mas acreditamos que tenha sido a Cobertura do Mercado Público de Florianópolis. Além de ter sido um concurso nacional que vencemos, foi nossa primeira oportunidade de intervir em um local emblemático e projetar um novo espaço para a grande quantidade de pessoas que frequenta o mercado diariamente.
O nome Aleph Zero já contém uma simbologia que dialoga com as perspectivas que vocês seguem dentro da arquitetura. Como surgiu a ideia para o nome do escritório e o que ele significa?
A escolha de qualquer nome sempre é uma tarefa complexa. Não queríamos nada que tivesse nossos nomes fixados a ele, e também não queríamos que o nome do escritório fosse referenciado a um local único. Assim, com esta dupla condição, fomos conversando e chegamos em Aleph Zero, que é a união de três ideias.
A primeira é uma homenagem ao conto de Jorge Luis Borges, O Aleph. Nele o objeto Aleph contém todas as possiblidades dentro de si, objetos, acontecimentos do passado, presente e futuro, sob todas as perspectivas, observáveis através de um único ponto escondido no porão. É um lindo conto que fala do infinito contido em uma pequena parte e da bela possibilidade de vê-lo através desse pequeno objeto.
A segunda é o conceito criado pelo homem, o Zero, que é a idealização do vazio, a materialização do nada.
Por último, é a teoria de conjuntos do matemático Georg Cantor, na qual aleph-zero é o menor conjunto de números infinitos. Portanto, achamos interessante a união desses três elementos: a ideia poética de Borges, o rigor matemático de Cantor e a delimitação do vazio, como o próprio fazer arquitetônico.
Qual a principal premissa na arquitetura que vocês seguem com o Aleph Zero? Quais projetos do escritório mais representam essa visão?
A primeira e mais indiscutível premissa é melhorar a vida das pessoas — não só dos nossos clientes, mas do coletivo de uma forma ampla. Assim nos questionamos, frequentemente, como podemos impactar positivamente a vida das pessoas através da arquitetura. Lógico que este conceito pode ser bastante genérico e tomar vários caminhos. Mas gostamos de ter este ponto de partida para todos nossos projetos, independentemente de suas finalidades.
Também procuramos tratar o local de intervenção com extremo respeito, olhando com cuidado as condições pré-existentes, tanto materiais quanto sociais, para que o projeto apareça quase como se já estivesse no local há muito tempo.
Nas casas, como as de Amparo e Caiobá, por exemplo, o encontro entre os moradores e sua liberdade de modificar o espaço fluido conforme o tempo e a luz são muito importantes para nós, assim como criar a possibilidade de a natureza adentrar o interior da casa e estabelecer um diálogo interessante entre interior e exterior.
As Moradas Infantis, além de incorporarem todos os conceitos acima, trazem também a ideia de pré-fabricação de elementos naturais renováveis, como forma de construir grandes edifícios com o menor impacto ambiental possível.
Vocês já foram vencedores de diversos prêmios nacionais e internacionais, dentre os quais o RIBA, um dos maiores do mundo, com o projeto para a Fundação Bradesco. O que vocês guardaram de lição dessa experiência?
Nesse projeto, em parceria com o designer Marcelo Rosenbaum, todo o processo possibilitou o encontro com um outro Brasil.
Nas fases iniciais, através das viagens de imersão no local, tivemos contato com um lugar marcado por belezas locais, tradições indígenas e rurais e também por um senso de urgência, pois as complexidades do contato entre diferentes culturas e a velocidade da modernização convencional ameaçam diariamente a existência dessas ricas histórias.
A escola de Canuanã se encontra inserida nesse contexto. Devido à distância percorrida por dos muitos alunos, ela funciona em formato de internato.
Fazer o projeto para abrigar 540 dos jovens que estudam na escola nos trouxe um grande senso de responsabilidade, pois entendemos o impacto que essa obra poderia ter na vida desses estudantes e de toda a comunidade próxima. Por isso, o projeto buscou o diálogo cultural, o incentivo às técnicas construtivas locais, o reconhecimento dos saberes indígenas e o incentivo a uma noção de pertencimento, tão necessária ao desenvolvimento dos alunos.
O contexto construtivo se caracterizava pela autoconstrução: casas com estrutura de madeira e fechamento de palha ou de adobe, tijolos de barro secos ao sol. Projetamos sempre com este contexto em mente: um projeto simples de executar, mas diferente das demais edificações locais. Introduzimos um olhar contemporâneo do fazer da arquitetura, utilizando soluções industrializadas, porém com materiais naturais: a terra do próprio local e madeira, algo raro quando se pensa em processos em série.
Nesse processo, entendemos a grande importância de compreender os saberes locais e dialogar com eles no projeto, não como mera cópia formal, mas como inteligência construtiva para incentivar um olhar de futuro consciente. Foi uma experiência que nos possibilitou ver de muito perto como a arquitetura pode ter um enorme impacto positivo na vida das pessoas de modo amplo. Recebemos um retorno muito positivo da escola com relação à melhora da capacidade de aprendizado dos alunos e seu crescente senso de responsabilidade.
Vocês já deixaram marcas em Formoso do Araguaia, Caiobá, Florianópolis, Curitiba. Como se adaptar às características sociais e ambientais de cada região em cada projeto?
Tentamos fugir de uma arquitetura impositiva que é sempre repetida em seu uso e em sua estética. Temos reflexões e interesses que nos acompanham continuamente, mas buscamos ser muito cuidadosos quando nos aproximamos de um novo projeto, pois o terreno, as necessidades das pessoas e o material disponível para uso mudam em cada situação. Treinamos continuamente nosso olhar para poder compor com o pré-existente, com tudo aquilo que foi se fixando aos poucos no local, desde a vegetação até os saberes construtivos locais e a economia que influencia a região. Ao entendermos corretamente aquilo que o lugar é em sua essência é possível chegar a resultados coerentes e que servirão às necessidades de quem irá conviver com o novo edifício.
Tanto o RIBA, com seu prêmio de escritório de arquitetura emergente, como o Pritzker, com vencedores recentes que vão de Aravena a Balkrishna Doshi, têm dedicado suas atenções a uma pegada mais social na arquitetura. Vocês acham que a arquitetura tem seguido um rumo que foge um pouco da ideia dos “starchitects” e passa a ter mais engajamento com habitações sociais e questões locais?
A arquitetura é uma ferramenta muito potente de transformação do território e cuja aplicação e uso refletem a cultura de um determinado local e tempo. Em um mundo onde mais do que nunca tudo está conectado em maior ou menor grau, é necessário fazer escolhas com a consciência dos impactos gerados de forma global. Nesse contexto, a arquitetura precisa ser entendida como ferramenta de desenvolvimento econômico, e principalmente, social; são questionamentos atuais como podemos gerar habitações para todos usando racionalmente os recursos existentes e respeitando as condições locais.
Nos parece, portanto, que as premiações buscam destacar iniciativas que sejam condizentes com uma visão contemporânea dos problemas que precisamos resolver como sociedade.
Foto: Leonardo Finotti
Foto: Leonardo Finotti
Quais são as suas maiores referências na arquitetura nacional? E internacional?
Não cansamos de estudar e visitar as obras de alguns grandes mestres da arquitetura, pois a cada nova visita algo novo se aprende. Para nós, são esses os casos de Vilanova Artigas, Paulo Mendes da Rocha, Affonso Reidy, Lúcio Costa, Lina Bo Bardi e João Filgueiras Lima (Lelé).
Dos arquitetos internacionais é impossível fugir dos pensamentos críticos levantados por arquitetos como Rem Koolhaas, Herzog & de Meuron e das atmosferas do Peter Zumthor, assim como da arquitetura sensível de Francis Kéré.
Sobre o futuro: existe alguma lista de itens obrigatórios, algum tipo de projeto que vocês ainda queiram fazer ou alguma experiência específica da qual desejam participar?
A arquitetura é um campo vasto, e há muitas maneiras de impactar positivamente a vida das pessoas através da atividade de construção e planejamento. Assim, nossa lista é extensa e está sempre se modificando. O que se mantém constante é nosso objetivo de contribuir, de forma cada vez mais intensa, com a cidade e com a vida das pessoas.

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