Arquitetura

As obras e as ideias de Mario Cucinella, um mestre da arquitetura de baixo impacto

Fernanda Massarotto*
15/12/2019 11:19
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O projeto Casa 110K, de Cucinella, é uma moradia pré-fabricada, low cost, com zero emissão de Co², construída com materiais inovadores e fontes renováveis. Foto: Divulgação

Os palcos podem ter perdido um grande ator, mas o mundo da arquitetura ganhou um notável profissional. Mario Cucinella, um dos mais respeitados e requisitados arquitetos “sustentáveis”, chegou a titubear na infância quando lhe perguntavam o que seria quando crescesse. A ingenuidade lhe levava a proclamar sua paixão pela recitação. “O verdadeiro motivo era que assim poderia beijar lindas mulheres”, se desmancha em uma risada natural o italiano nascido em Palermo, criado em Gênova, e hoje estabelecido em Bolonha. Brincadeiras à parte, a beleza sonhada pelo arquiteto quando menino hoje se materializa em obras de sua autoria nos últimos 30 anos.
Os primeiros passos foram dados ao lado do mestre Renzo Piano; depois, alçou voo autonomamente. De lá para cá, três décadas se passaram e ele recebeu prêmios como o MIPIM Architectural Review Future Projects Awards, da revista inglesa Architectural Review. Seus projetos sustentáveis e de baixo impacto ambiental são encontrados pelo mundo todo, inclusive em regiões onde soluções práticas, baratas e eficazes são quase que obrigatórias, como um espaço de entretenimento para crianças no vilarejo de Umal Nasser, na Faixa de Gaza, construído com madeira em sacos de terra; ou um edifício urbano, na Argélia, que respeita a paisagem e os recursos naturais; ou, ainda, o protótipo de uma casa sustentável em argila impressa em 3D.
Foto: Giovanni Gastel
Foto: Giovanni Gastel
Entre viagens à China, aos Estados Unidos ou simplesmente pela Itália, Mario Cucinella encontrou um tempo em sua agenda para falar sobre arquitetura sustentável, design, pesquisa e Brasil em um bate-papo em seu escritório MC Architects, em Milão. Por mais de uma hora, o arquiteto discorreu sobre seu amor pela profissão e antecipou para a HAUS a conclusão da sede latino-americana da multinacional italiana Nice, em Limeira, no interior de São Paulo. “É o primeiro de muitos”, torce o italiano que assina a nova unidade do grupo empresarial que atua no mercado de automação de portões e segurança residencial e industrial. O edifício de 14 mil m² em um terreno de 40 mil m² às margens da Rodovia Anhanguera foi construído segundo os requisitos da Green Building Council Brasil, com certificação LEED (Leadership in Energy and Environmental Design).
Palermo, Piacenza e Gênova. Você nasceu na Sicília, passou alguns anos de sua infância em Piacenza e se transferiu ainda menino para Gênova, onde se formou. Qual das três cidades fez com que Mario Cucinella decidisse pela arquitetura?
Para ser sincero, nem eu mesmo sei (risos). De qualquer forma, costumo dizer que Piacenza, que fica na região da Emília Romanha, tenha de algum modo influenciado minha escolha. A escola onde frequentei o jardim da infância foi projetada por Giuseppe Vaccaro, um importante arquiteto do modernismo italiano. Acho que inconscientemente os traços daquele edifício ficaram na minha cabeça. A memória daquele tempo me inspirou a desenhar, em 2015, uma creche em Guastalla, a 90 km de Piacenza, um projeto que está na listados meus preferidos.
Já formado, o senhor foi trabalhar no escritório do renomado arquiteto Renzo Piano. Em uma entre-vista admitiu que, de certa forma,“lhe roubou um pouco da sua fama”. Estar ao lado de um personagem como Renzo Piano no dia adia mudou a sua visão sobre a arquitetura? 
Eu diria que, mais do que mudar a minha visão, me deu a oportunidade de viver a arquitetura por inteiro. E, como sempre digo, um arquiteto, para aprender, tem de roubar o conhecimento de outro colega experiente. É uma carreira muito difícil, complicada, e os projetos a cada dia se tornam mais complexos. Ter passado alguns anos ao lado de Renzo Piano, e estamos falando de mais de 25 anos, é uma grande honra. Fazer parte de um grupo que produzia obras significativas me deu a dimensão de que nada era impossível nesta profissão. Claro que em um mundo real há barreiras e, por isso mesmo, é necessário um arquiteto para encontrar soluções. Em relação a Renzo Piano, eu o considero um “pai”, já que depois de ter passado pelos escritórios de Gênova e Paris e ter iniciado minha carreira “solo”, ele me ajudou muito. Além de atender meus clientes, eu trabalhava com ele como um colaborador part time – o que era importante economicamente para quem estava começando seu próprio negócio. Renzo me ensinou que é preciso conceber ideias claras e simples, pois muitas vezes o processo é complicado e o trabalho em equipe é fundamental. Ou seja, a arquitetura não é uma disciplina solitária.
Foto: Divulgação
Foto: Divulgação
Você deixou Gênova por Paris. Na capital francesa, em 1992, abriu seu próprio escritório e, sete anos depois, se estabeleceu em Bolonha. Atualmente, a MC Architects conta também com uma base em Nova York e uma filial em Milão, no bairro de Brera, no coração da cidade. Há planos de expandir? 
Não sou muito favorável à ideia de fincar raízes em vários lugares. A rede aumenta e perdemos o controle. O nosso quartel general é Bolonha. Há um ano, resolvemos entrar no mercado americano e,  há dois, estamos em Milão, onde temos, atualmente, 3 canteiros de obras e 4 em andamento: a Torre da seguradora Unipol, a nova unidade cirúrgica do Hospital San Raffaele, o Museu Etrusco e um projeto residencial nos arredores da cidade. O próximo passo seria a China, na cidade de Shenzhen, no Sul do país. Mas ainda não decidimos nada.
O seu nome é sinônimo de arquitetura sustentável. Pode nos explicar exatamente o que é um projeto sustentável e quais são os requisitos para que se possa realizar uma obra dessa maneira? 
É preciso esclarecer: qualquer construção, por enquanto, não é 100% sustentável. Até porque há materiais como o cimento e o aço, por exemplo, que são fundamentais e retirados da natureza. O conceito de arquitetura sustentável está muito mais ligado a conceber um “corpo” que não polua e que não consuma energia. O objetivo é reduzir o impacto ambiental. É claro que podemos reusar materiais – madeira, vidro, cerâmica e até mesmo o cimento – mas isso não quer dizer que edifícios sustentáveis não possam dialogar com o meio ambiente produzindo energia renovável e com emissão zero de CO². Um projeto bem feito não agride o meio ambiente.
Há ainda uma certa resistência de natureza econômica quando o assunto é construir seguindo a filosofia green. O custo é maior que uma obra tradicional? 
Faço uma provocação: um projeto sustentável e bem feito é um custo ou é um valor agregado? Uma obra tradicional – e é claro que construir um prédio é sempre caro – pode custar de 10% a 15% menos que um projeto sustentável certificado. Uma economia que se dissipa depois com as altas cifras em manutenção e contas de energia. Sem falar do ponto de vista ético e comercial, que valoriza o imóvel.
Foto: Moreno Maggi
Foto: Moreno Maggi
Quais são os países que mais se preocupam com a arquitetura sustentável?
Os países europeus em geral estão muito focados no tema da sustentabilidade. A comunidade europeia e os governos nacionais estabeleceram objetivos claros para orientar a política ambiental. A Itália, por exemplo, em 1978, após a crise do petróleo, aprovou uma lei de racionamento de energia. E, naquela época, pouco se falava sobre as ameaças ao meio ambiente. A Alemanha, com certeza, é o país que mais investe e fiscaliza. Até porque no parlamento alemão há muitos representantes do Partido Verde.
Casa 100k, a moradia pré-fabricada, low cost, com emissão zero de CO², 100 m² com um custo total de 100 mil euros, construída com o uso de materiais inovadores e fontes renováveis. Por que o projeto, apresentado em 2007, nunca saiu do papel?
Espero sempre poder desengavetá-lo. É um projeto ambicioso. Na época em que foi proposto, havia o problema da superpopulação nas periferias das metrópoles e a necessidade de se construir casas populares. Nunca mais se falou no assunto. Em alguns anos, iremos nos deparar novamente com esse imbróglio. A ideia é oferecer uma moradia que possa ser vendida e comprada por um preço razoável, ou mesmo que tenha um aluguel módico. Mas que seja segura, bonita e sustentável.
Em 2015, o senhor fundou em Bolonha a SOS (School of Sustainability) para arquitetos e engenheiros. Quantos profissionais já passaram pela escola? 
Em seis anos formamos quase 100 profissionais de várias partes do mundo. Nosso objetivo é compartilhar a teoria e as competências técnicas para formar arquitetos e engenheiros habilitados a construir um mundo arquitetônico sustentável. As mudanças climáticas e ambientais e as dificuldades econômicas estão nos levando a procurar novas soluções de moradia. E nós precisaremos de pessoas qualificadas para resolver esses grandes problemas nos próximos 15, 20 anos.
Qual o futuro da arquitetura sustentável? 
Eu diria que o único futuro é a arquitetura sustentável. Não temos outra escolha. Hoje, temos 170 bilhões de metros quadrados de obras arquitetônicas construídas no planeta. E esse número tende a chegar a 230 bilhões no ano de 2060. Valores que mostram o quanto a arquitetura evoluiu. A nossa preocupação é que teremos belas casas e edifícios, mas talvez não tenhamos mais recursos naturais que produzam energia para nossa sobrevivência. A pergunta para todos esses problemas é feita há anos por muitos profissionais especializados em sustentabilidade. Apesar de leis e regulamentações, os arquitetos e engenheiros do futuro terão de se preocupar não só com a estética das novas construções, mas também com o seu impacto ambiental. Brasil, Índia e China têm de impor normas para que a arquitetura sustentável seja respeitada. São países com muitos recursos naturais e devem preservá-los. Isso não quer dizer que devam frear o progresso. Precisam se conscientizar sobre o impacto ambiental pós-construção.
Muitos arquitetos se aventuram no campo do design. Você desenhou uma luminária para a marca iGuzzini. Nunca pensou em se dedicar mais à carreira de designer?
Eu sou arquiteto. O design para mim é uma experiência criativa. Assim como concebo um edifício posso conceber um objeto, mas é claro que para um arquiteto é mais fácil desenhar um objeto do que para um designer realizar um edifício. De qualquer forma, me aventuro nesse segmento sem nenhum problema ou preconceito. No ano passado, desenhamos a coleção Building Objects, que trouxe peças de design inspiradas em projetos arquitetônicos de autoria do escritório. E devo dizer que foi um grande sucesso durante a Semana do Design, em abril deste ano. E me diverti muito. Obras arquitetônicas são complexas, objetos de design são menos complexos. O que não quer dizer que seja um trabalho fácil. Pelo contrário.
Um projeto de autoria de um colega que gostaria de ter concebido.
Na verdade, acho que estou satisfeito com o que concebi e tenho criado. Posso dizer, porém, que tenho uma profunda admiração pelos trabalhos do arquiteto japonês Kengo Kuma. Suas obras são uma referência. Acho interessante o modo como seus projetos fazem uso de materiais naturais e novas formas de pensar a relação da luz com o espaço.
*Especial para HAUS, de Milão

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