Arquitetura

Patrimônio mundial, igreja da Pampulha reabre após restauro de R$ 1,07 milhão

Aléxia Saraiva
03/10/2019 21:46
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Igrejinha da Pampulha, em Belo Horizonte, é considerada a primeira grande obra autoral de Oscar Niemeyer. Foto: Reprodução/Mineiros na Estrada

Nos idos anos 1940, Belo Horizonte viu nascer um expoente modernista. O Conjunto Moderno da Pampulha, encomendado pelo então prefeito Juscelino Kubitschek, representa o nascimento da obra autoral de Oscar Niemeyer e a ascensão de Candido Portinari. Nesta sexta (4), a construção mais emblemática do conjunto — a Igreja São Francisco de Assis — reabre suas portas após uma obra de restauro que durou 16 meses e que recuperou a integridade de sua estrutura.
Por meio do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), o Governo Federal investiu R$ 1,07 milhão na obra. O restauro teve como principal objetivo consertar infiltrações profundas que ameaçavam a capela. “Removemos todo o forro existente, que foi restaurado em sua totalidade — incluindo todo o estudo de paginação original, pois todas as peças possuem dimensões diferentes entre si”, destaca Henrique Aidar, diretor de relações institucionais da Tecnibras, construtora responsável pela execução da obra.
Todo o forro da nave principal foi restaurado. Foto: divulgação/Tecnibras
Todo o forro da nave principal foi restaurado. Foto: divulgação/Tecnibras
Além do forro, a obra incluiu pintura, revitalização do piso, recuperação das pastilhas do exterior da capela, impermeabilização, modernização das instalações elétricas, entre outras manutenções. A igreja estava fechada desde junho de 2018.
Fotos: divulgação/Tecnibras
Fotos: divulgação/Tecnibras
O restauro integra um pacote de investimento do Governo Federal de R$ 40 milhões em Minas Gerais, que incluem sete obras já entregues e mais nove em execução. Para a capela, trabalharam em conjunto a Prefeitura Municipal de Belo Horizonte e o Centro de Conservação e Restauração de Bens Culturais da Universidade Federal de Minas Gerais, além de outras entidades envolvidas no processo: o Iphan, o Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais e a Mitra Arquidiocesana de Belo Horizonte.
Obras foram iniciadas em junho de 2018. Foto: divulgação/Tecnibras
Obras foram iniciadas em junho de 2018. Foto: divulgação/Tecnibras

Patrimônio mundial e marco modernista

A “igrejinha da Pampulha”, erguida entre 1942 e 1943, é apenas um dos quatro edifícios do conjunto arquitetônico assinado por Niemeyer. Ela foi encomendada por Kubitschek em meio a um processo de modernização de Belo Horizonte, que se expandia para a região da barragem da Pampulha.
Além da igrejinha, compõem o conjunto um Cassino — onde atualmente funciona o Museu da Pampulha —, a Casa do Baile — atual Centro de Referência em Urbanismo, Arquitetura e Design de Belo Horizonte — e o Iate Clube.
Em 2016, o Conjunto Moderno da Pampulha foi tombado como Patrimônio Mundial da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) — compromisso que ratifica a entrega do seu restauro.
Csa do Baile, em Pampulha. Foto: Iphan
Csa do Baile, em Pampulha. Foto: Iphan
Para o diretor do Departamento de Patrimônio Material e Fiscalização do Iphan, Andrey Rosenthal Schlee, a obra recuperada é um marco do ponto de vista da arquitetura e da preservação do patrimônio cultural do país. “A capela marca o início da carreira solo de Niemeyer. É a partir desse momento que se percebe que havia algo absolutamente inovador naquela arquitetura”, explica.
Além de um Niemeyer de apenas 36 anos de idade, a obra contou com um time de peso: murais de Candido Portinari, cálculo estrutural de Joaquim Cardozo, paisagismo de Burle Marx, escultura de Alfredo Ceschiatti e murais de Paulo Werneck.
Schlee ressalta que Pampulha representa o início da parceria entre Niemeyer e Kubitschek — dupla que, alguns anos mais tarde, em 1957, começa a criar Brasília.
Foto: divulgação/Tecnibras
Foto: divulgação/Tecnibras

Por ser ‘extravagante’, igreja levou 14 anos para inauguração

Tamanha inovação não foi bem recebida por todos à época. A consagração da igreja, momento que determina sua inauguração para funções religiosas, demorou 14 anos para ser realizada.
“Juscelino conta em seu livro de memórias que, quando as obras estavam quase concluídas, ele leva o arcebispo de Belo Horizonte para passear. Chegando na igrejinha, ele vê o painel de Portinari, com a imagem de um cachorro no altar, e fala: ‘Um cachorro? Isso é uma ofensa, um escárnio, não posso tolerar’, e recusa a consagrar a capela”, conta Paola Lins de Oliveira, doutora em antropologia social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, que realizou pesquisa de campo com financiamento público em Pampulha através da universidade.
Mas, na verdade, o cachorro foi só a gota d’água. Em entrevista, o arcebispo à época, Dom Antonio dos Santos Cabral, elencou dois motivos de desagrado: além da estética da capela, a construção era uma obra particular – feita sem acompanhamento da igreja e portanto sem cumprir pré-requisitos religiosos para um espaço sagrado.
Mural de Portinari atrás do altar: figura do cachorro teria incomodado arcebispo da época, que não realizou a consagração da capela. Foto: divulgação/Tecnibras
Mural de Portinari atrás do altar: figura do cachorro teria incomodado arcebispo da época, que não realizou a consagração da capela. Foto: divulgação/Tecnibras
“Ele fala que, se [a igreja] fosse uma torre de antena que se lança em direção ao céu, ela poderia sugerir tecnologia, mas a Pampulha parece perfurar o solo e buscar as trevas”, destaca a pesquisadora. Com relação à decoração, o arcebispo descreve como “tudo fantasia de artista: ótimos em um museu, mas não em um templo”.
“A decisão do arcebispo caiu como uma bomba porque, se a capela não é consagrada, ela fica fechada e vira ruína sem ser concluída. Isso gera um debate público: vários arquitetos se mobilizam para pressionar a autoridade religiosa. E, um ano depois da conclusão da capela, ela é tombada pelo Iphan”, explica Oliveira.
Foto: divulgação/Tecnibras
Foto: divulgação/Tecnibras
Tanto Oliveira como Schlee destacam a importância do papel do Iphan em tombar a igreja como patrimônio tão rapidamente. “O Iphan, criado em 1937, já em 1947 teve a coragem de tombar o primeiro bem modernista no mundo. Ou seja: mesmo sem a função de capela, ela já tinha seu valor de belas artes reconhecido“, acrescenta o diretor do Iphan.
A situação se resolve apenas em 1959, com a troca de arcebispos em Belo Horizonte. Assim que dom Resende Costa assume, ele decide pela consagração da igreja, sugerindo que o terreno e a obra fossem doados à Cúria Metropolitana — o que acontece na sequência.
Mas aí — vale lembrar —o contexto era outro: “Não é mais uma capela encomendada pelo prefeito a um arquiteto recém-formado com um artista que não se sabe para onde vai. Quatorze anos depois, você está recusando um dos maiores arquitetos do mundo que, junto do presidente, está construindo a capital do país, e um artista com painel exposto na ONU”, conclui Oliveira.

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