Adeus ao gigante

Arquitetura

Paulo Mendes da Rocha: um legado que vive na cidade

Sharon Abdalla
24/05/2021 16:33
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Para Hugo Segawa, doação de acervos de brasileiros para instituição de Portugal foi um erro. | Fernando Zequinão/Gazeta do Povo

A arquitetura brasileira amanheceu órfã nesta segunda-feira (24). Último de seus heroicos representantes, Paulo Mendes da Rocha, 92, faleceu no último domingo (23) deixando um legado que, assim como ele, será eterno e uma contribuição para o Brasil que vai muito além do concreto armado.
Capixaba radicado na capital econômica do país, Paulo era um dos ícones da chamada Escola Paulista e, ao lado de outros nomes de peso, como João Batista Vilanova Artigas e Ruy Ohtake, inaugurou uma nova forma de se fazer e pensar a arquitetura brasileira, com todas as inovações e estranhezas (à época) que até hoje caracterizam a corrente modernista.
"Morreu Paulo Mendes da Rocha. Sua estrela brilhará forte como sua arquitetura generosa com a cidade, seu espírito de liberdade e amplidão", destacou Raquel Rolnik, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), onde Rocha lecionou.
Fotos do arquiteto Paulo Mendes da Rocha durante a entrevista e Retrato após para a Revista HAUS. Na foto: Paulo Mendes Rocha, 86. Arquiteto. Local: Museu Oscar Niemeyer
Fotos do arquiteto Paulo Mendes da Rocha durante a entrevista e Retrato após para a Revista HAUS. Na foto: Paulo Mendes Rocha, 86. Arquiteto. Local: Museu Oscar Niemeyer
"O Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil manifesta imenso pesar pelo falecimento do arquiteto e urbanista Paulo Mendes da Rocha, um dos mais destacados e premiados nomes internacionais da profissão nas últimas décadas. Deixa um legado de obras-primas, resultado de uma prática profissional marcada pela ousadia e apuro tecnológico. Paulo Mendes da Rocha foi um educador generoso, não apenas como professor, mas também na convivência diária com os colegas com quem trabalhou em projetos e em obras. Expressamos nossos sentimentos aos familiares, aos amigos, aos colegas e à sociedade brasileira como um todo, que perdeu um humanista que expressava com vigor o compromisso social da Arquitetura e Urbanismo”, enfatizou Nadia Somekh, presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (CAU), em nota.
Entre suas "obras-primas" estão prédios emblemáticos, como o Museu da Língua Portuguesa (2006), o Museu Brasileiro de Escultura (1988) e a reforma da Pinacoteca do Estado de São Paulo (1993), cuja obra fez com que seu nome ganhasse projeção internacional e passasse a ser revisitado, analisado e estudado na Europa, o que culminou com seu reconhecimento por distintas instituições e premiações que estão entre as mais importantes do mundo.
Paulo Mendes da Rocha acompanhava o também inesquecível Oscar Niemeyer como os dois únicos brasileiros premiados pelo Pritzker, tido como o Oscar da arquitetura mundial, recebido em 2006 em reconhecimento à sua produção. Dez anos mais tarde, foi a vez da Bienal de Veneza reconhecer o trabalho do brasileiro, concedendo a Paulo o Leão de Ouro e fazendo dele o primeiro brasileiro a receber tal distinção.
Pinacoteca de São Paulo.
Pinacoteca de São Paulo.
"A cidade de São Paulo, o Brasil e o mundo perderam hoje uma das suas principais referências arquitetônicas e urbanísticas com a passagem de Paulo Mendes da Rocha. Ao longo de sua vida, o mestre desenvolveu vários projetos reconhecidos pela comunidade internacional. Grande parte de sua obra está na capital paulista, muitas da quais tombadas pelo patrimônio histórico. A Pinacoteca do Estado, o MuBE [Museu Brasileiro de Escultura e Ecologia], a remodelação e a cobertura metálica da praça do Patriarca e, mais recentemente, o projeto do Sesc 24 de Maio são alguns poucos exemplos do legado de Paulo Mendes da Rocha. À família, parentes e amigos os meus sinceros e profundos sentimentos", elencou em nota Ricardo Nunes, prefeito de São Paulo.
"A Pina Luz, como a conhecemos hoje, é fruto do trabalho de Paulo e sua equipe, que nos anos 1990 reformou e atualizou as partes internas do edifício histórico de Ramos de Azevedo para receber com dignidade as obras da coleção, as exposições temporárias e claro, o público. Em nome de todos os funcionários da Pinacoteca de São Paulo, nos solidarizamos com a família por esta enorme perda. Paulo Mendes da Rocha fará falta para a cultura e para arte do Brasil", enfatizou a Pinacoteca do Estado de São Paulo em sua conta oficial no Instagram.
No início deste mês de maio, foi a vez da União Internacional dos Arquitetos (UIA) valorar a produção de Paulo Mendes da Rocha, premiando-o com a medalha de ouro por sua "ousadia e virtuosismo técnico", como ressaltou o júri. “A Medalha de Ouro UIA de Paulo Mendes da Rocha exemplifica uma vida de realizações ao longo de sete décadas que enfatizou a arquitetura como um ato público”, acrescentou a UIA em comunicado sobre o prêmio. Além disso, Paulo Mendes da Rocha era presidente do Comitê de Honra do 27º Congresso Mundial de Arquitetos (UIA2021) e seria um dos palestrantes do evento, com agenda para julho deste ano, no Rio de Janeiro.

Um homem político

A harmonia entre a arquitetura e a natureza era uma das principais premissas do trabalho de Paulo Mendes da Rocha, que dava igual importância ao compromisso social de suas construções.
Homem político, Paulo era atuante na agenda pública e não desperdiçava oportunidades para declarar sua visão de mundo, exaltar os problemas enfrentados pela sociedade e combater aquilo que acreditava ir contra o bem comum e o interesse social.
Em 2018, por exemplo, em entrevista à Folha de São Paulo por ocasião da exposição de sua obra no Itaú Cultural, mostrava-se preocupado com a "política feita via celular", afirmando que ela "rouba das pessoas algo fundamental", que é o olho no olho.
No mesmo ano, integrou o grupo de arquitetos que lançou o canal no Youtube “Arquitetxs pela Democracia”, que se posicionava contrário ao então candidato e hoje presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Além de Paulo Mendes da Rocha, nomes como Marcelo Rosenbaum, Angelo Bucci e Guto Requena participaram da iniciativa.
"Nesses dias tristes, onde todos nós perdemos algum familiar ou amigo para a Covid-19, o Brasil perde também Paulo Mendes da Rocha, um dos maiores arquitetos do país. Ele deixou um legado humanista muito além das suas criações em cidades do Brasil e do mundo. Meus sentimentos aos familiares, amigos, alunos e admiradores de Paulo Mendes da Rocha", publicou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em sua conta oficial no Twitter.
"É com muita tristeza que recebi a notícia do falecimento do arquiteto Paulo Mendes da Rocha. Aos 92 anos, o maior arquiteto brasileiro da atualidade adquiriu posição de destaque no panorama internacional. Em 2019, tivemos a grande honra, na presidência do Supremo Tribunal Federal, de contratar o escritório de Paulo Mendes da Rocha para a elaboração do projeto arquitetônico de expansão do Museu do STF, no edifício-sede da Corte. Infelizmente e com grande pesar, não teremos a presença física do arquiteto na inauguração de um dos seus últimos grandes projetos. Mas a memória de Paulo Mendes da Rocha e seus grandes feitos se tornarão eternos na história e na arquitetura do prédio símbolo do STF. Nossa profunda solidariedade aos familiares, à equipe e aos amigos do grande arquiteto", destacou Dias Toffoli, ministro do Supremo Tribunal Federal.
O Palácio do Planalto não se manifestou sobre a morte de Paulo Mendes da Rocha.

Legado

Em 2020, Paulo doou todo o seu acervo profissional à Casa da Arquitectura, instituição portuguesa de Matosinhos dedicada à divulgação internacional da arquitetura, como HAUS noticiou em primeira mão em setembro daquele ano. O material engloba toda a produção intelectual do arquiteto durante os cerca de 70 anos de sua atuação profissional e soma quase nove mil itens (entre desenhos, projetos, fotografias, maquetes e publicações), fato que fez com que sua saída do país gerasse protestos entre a classe arquitetônica.
Museu Nacional dos Coches, em Portugal.
Museu Nacional dos Coches, em Portugal.
“Antes de mais nada, gostaria que vissem a doação que fiz como uma manifestação da liberdade que tenho de fazer o que eu quiser”, disse o arquiteto, em entrevista também à Folha de São Paulo. "Compreendo muito bem quem acha que eu fiz mal. Como disse, eu respeito a liberdade — a minha e a de todos.”, completou na ocasião.
Outros profissionais, porém, saíram em defesa da decisão de Paulo Mendes da Rocha, apontando que essa seria uma maneira de salvaguardar sua obra e de apresentar resistência contra "o desmonte da cultura no Brasil", como anunciaram em carta aberta.
A entrega do acervo a Portugal pode sim ser entendida como uma perda para a pesquisa, a evolução e a história da arquitetura nacional, mas não como do legado de Paulo Mendes da Rocha. Afinal, a sua obra, o seu modo de fazer arquitetônico e o seu pensamento estão vivos e disponíveis para qualquer interessado em se aprofundar e experienciar uma arquitetura que é para ser vivida.
Da cadeira Paulistano, um dos ícones do design nacional assinada pelo arquiteto, ao Sesc 24 de Maio, em São Paulo, passando pelo Museu Nacional dos Coches, em Portugal. Da Pinacoteca (SP) ao Cais das Artes, ainda inacabado em Vitória (ES), Paulo Mendes da Rocha vive. Para senti-lo, basta apurar o olhar e se deixar levar pela poesia impressa em concreto armado, pelo pertencimento e pelo lugar de ser humano em relação à cidade -- no âmbito individual e coletivo, como lugar de encontro --, ela que tinha se tornado sua mais recente paixão.
"A riqueza do homem é a cidade, que tem virtudes incontáveis. Uma delas é amparar a imprevisibilidade da vida", disse em entrevista exclusiva à HAUS.
"Paulo amava a cidade, a considerava a sua morada e por isso ela deveria receber todos com generosidade. Seu legado é este, muito simples: arquitetos, amem e cuidem das suas cidades", resume Elisabete França, coordenadora do Comitê Científico do UIA2021RIO, em nota publicada no site do evento.

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