Entrevista exclusiva

Design

Exposição no MON apresenta resgate do trabalho da designer Cláudia Moreira Salles

Sharon Abdalla
22/11/2021 14:08
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Cláudia Moreira Salles é uma das mais celebradas designers do país. | Marcelo Andrade

“Todo objeto de design pressupõe uma função”. E é a partir dela que a designer Cláudia Moreira Salles inicia o desenvolvimento de suas peças, produzidas há cerca de 40 anos e que fazem dela uma das profissionais mais reconhecidas e celebradas do país. O resgate desta produção, que tem a madeira como protagonista, é o que a exposição “Forma e Matéria” traz para a Sala 2 do Museu Oscar Niemeyer (MON). Aberta ao público no último dia 19 de novembro, a mostra apresenta 44 peças, entre móveis, luminárias e objetos, assinados pela designer desde os anos 1990 até os dias atuais.
Mais do que conhecê-las, os visitantes são convidados a mergulhar no processo criativo de Cláudia e a compreender as etapas que fazem com que uma ideia se materialize em peças que, depois, se tornam corriqueiras no nosso dia a dia. Isso porque, além delas, a exposição conta com croquis e fotos que ilustram o processo desde a prancheta até a fábrica e a execução artesanal do mobiliário e itens iluminação.
Representada pela Espasso, em Nova Iorque, Cláudia tem no Brasil o foco de seu reconhecimento e produção, tendo assinado peças para marcas consagradas, como Etel, Firma Casa e Dpot, para citar algumas. Em entrevista exclusiva a HAUS, realizada durante a montagem da exposição no MON, ela falou sobre a evolução de seu trabalho, do design brasileiro e de como ele pode ser uma ferramenta de transformação social. Confira!

Como recebeu o convite para expor no MON?  

Esta é a primeira vez que eu exponho no MON. A ideia de fazer uma exposição retrospectiva. O nome escolhido foi “Forma e Matéria” porque ela centra no trabalho do desenho e das matérias, das diversas matérias com as quais eu trabalho, sobretudo a madeira. Sempre a madeira contraposta ao cimento, à pedra, ao metal (um realça a qualidade formal e estética do outro), e sempre com um contraste muito grande entre as peças. A ideia é fazer uma exposição não cronológica, mas que mostre essa afinidade entre as peças, no material escolhido, na forma com que esses móveis e luminárias tomam.
Fiquei muito feliz com esse convite, pois é um espaço maravilhoso e um dos poucos museus brasileiros que faz com regularidade exposições de design e arquitetura. E é importante fazer isso em um espaço que cria esse diálogo. A ideia inicial foi mostrar essa série de peças (são 44 entre móveis, luminárias e objetos) e complementar essa exposição com o processo. Sempre que você olha uma peça, tem curiosidade de saber como ela foi feita, pensada, porque foi tomado aquele caminho de desenho, e não outro. O que procuramos aqui foi mostrar nas paredes um pouco do processo de criação e de produção. Então, há croquis, maquetes e várias imagens da produção das peças sendo executadas em várias das suas etapas. Privilegiamos algumas peças, alguns fazeres que pensamos serem mais expressivos, mais instigantes como imagem e como curiosidade de como é esse fazer. Fiquei satisfeita com esse conjunto porque era o que eu estava querendo passar. E é sempre bom quando você faz uma exposição, porque é uma forma de organizar as coisas e como você vê o seu trabalho. Você o organiza da forma como o vê, e isso vai mudando ao longo do tempo. Você vai percebendo relações entre peças que fez 20 anos antes e outra que fez agora, isso cria algo interessante não só para mim, mas para o público também.

Você atua no design há cerca de quatro décadas e acompanhou o desenvolvimento do setor. Como descreve o design brasileiro, sua evolução e o lugar que ele ocupa?   

De quando eu comecei a trabalhar com design para cá, a coisa evoluiu muito, sobretudo na parte de produção. É claro que aumentou o consumo, uma consciência de que o design é uma coisa importante, as pessoas se interessam mais, elas procuram peças de design para suas casas, querem saber quem fez, a questão da autoria passou a ser um valor. Mas eu acho que o que melhorou muito foi a indústria brasileira. E não só a parte artesanal mais organizada. A gente tem uma tradição de marcenaria devido à imigração, que trouxe o conhecimento das técnicas, e esse pessoal conseguiu se organizar melhor, se profissionalizar. Não adiante só você saber produzir. Você tem que se estruturar, e isso foi uma coisa que realmente aconteceu, essa troca entre o designer, o produtor e o lojista - este quase no sentido de um curador, porque as pessoas que têm as lojas fazem uma curadoria, procuram ter uma linguagem homogênea nas peças que elas escolhem. Então, você tem um conjunto entre produção, comercialização e criação que foi se afinando, evoluindo muito nos últimos tempos. Temos indústrias muito capazes, com máquinas muito sofisticadas e, ao mesmo tempo, capacidade de mão de obra artesanal para acabamentos mais delicados de algo que passa pela máquina, mas que precisa desse acabamento manual depois. Vamos mostrar alguns vídeos desses processos. Há uma peça, por exemplo, que passa por uma CNC e, depois, tem uma finalização muito artesanal, delicada.
A designer recebeu a equipe de HAUS para a entrevista durante a montagem da exposição.
A designer recebeu a equipe de HAUS para a entrevista durante a montagem da exposição.

Como é o seu processo criativo? Como se deu essa evolução e como ele ocorre hoje? 

Todo objeto de design pressupõe uma função. Então, para fazer um projeto, você sempre parte de uma solicitação de alguém (uma loja, uma galeria) ou de você mesma. E, para mim, tudo isso passa por um caminho muito racional: o que eu quero fazer?; para quem estou fazendo?; que material vou usar?; quem vai produzir?; quais são os recursos dessas pessoas que irão produzir? Tem todo um caminho. É claro que quando você trabalha com isso há muito tempo ele acontece de uma forma mais fácil. Mas, para mim, tem que ter um caminho muito racional. É raro eu começar de uma forma, de um jato de desenho, eu tenho todo um processo que vai me conduzir a esse desenho. Daí, depois, eu desenho. Desenho à mão, faço vários croquis até chegar aonde eu quero, sempre eu acho que se pode fazer melhor. Há peças que você faz uma e percebe que, a partir daquela construção, pode-se criar uma família - uma poltrona, que vira uma cadeira, que pode virar uma mesa. O processo segue muito em função da maneira como você a processa todas aquelas informações já organizadas na sua cabeça. Depois entra toda uma parte de produção, que é sempre um pouco mais longa, quando se faz os protótipos (raramente se acerta de primeira). Isso é um processo legal, gostoso, essa troca de conhecimento com o artesão. A gente aprende muito e aprende muito estando na fábrica, também. Às vezes você está vendo o seu produto, mas ali tem uma coisa sendo feita que traz uma solução que talvez seja a solução para a peça que você está fazendo. Ou vê um material que está ali e que você nem pensou em usar, e ele passa a ser algo que você vai incorporar. Depois, tem a etapa de se colocar a peça no mercado e ter a volta, a resposta de se as pessoas gostam, qual é a saída que esse mobiliário vai ter.

A madeira é o carro-chefe do seu trabalho. Por que a opção por este material?  

Eu comecei a trabalhar com a madeira porque, como fazia pequenas produções, era um material mais fácil de encontrar – isso eu estou falando de final dos anos 1980, começo dos anos 1990. Tanto a mão de obra quanto o material, era o que tinha mais fácil. A madeira tem uma característica maravilhosa: você faz uma peça e, depois, faz a mesma peça, e cada uma é única. E a madeira é um material mais sustentável. Se ele é proveniente de um manejo sustentável ou de demolição, que eu acho que é um caminho mais interessante. Dá mais trabalho para beneficiar, às vezes ela vem cheia de pregos, de furos, mas eu acho que tem essa característica da maior sustentabilidade, que é muito importante. E ela é um material maravilhoso. A madeira é quente e contrasta. Quando você coloca a madeira com outros materiais, você valoriza os dois. O contraste do quente com o frio, do claro com o escuro, do liso com o áspero, tudo isso cria um interesse estético que só agrega valor ao trabalho.

Você pontuou a questão da sustentabilidade, que está em voga, mas muito se fala, também, em democratizar o design, por vezes de forma até superficial. Como você vê que o design pode efetivamente contribuir para a democratização e a sustentabilidade?   

Sustentabilidade, certamente, é a escolha da proveniência do material que você está utilizando, saber que vem de uma retirada responsável. E democratizar é uma questão de custo. Você tem que tentar fazer algo de boa qualidade, mas tentando baixar o custo. E como se baixa o custo? Há sempre uma queda de qualidade quando se baixa o custo, para isso não tem muita mágica. Mas é possível fazer um produto honesto, bem construído, em que você utilize o mínimo necessário do material e tenha um bom acabamento. E isso você consegue muito mais com uma produção industrial do que com a artesanal. A produção artesanal vai ser mais cara, é preciso pagar bem o artesão. Na produção industrial você tem uma máquina que consegue produzir uma quantidade maior de peças. O gatilho é tentar encontrar parceiros que produzam peças industrialmente, em que você consiga baixar o custo e que tenha uma execução de acabamento que satisfaça o designer.
A madeira é a matéria-prima principal do trabalho desenvolvido por Cláudia.
A madeira é a matéria-prima principal do trabalho desenvolvido por Cláudia.

Você destacou que o MON é um dos poucos museus brasileiros que frequentemente trazem exposições de design e arquitetura. Como você vê a relação entre arte e design?  

Design é uma coisa, arte é outra coisa. Eles se encontram quando você tem peças que normalmente ressaltam uma característica escultórica formal, e que pode ser arte para mim e não ser para outra pessoa. Mas o design tem sempre uma função. Você faz um produto que vai ter um uso. Se ele tem uma forma que, para certas pessoas, se aproxima mais da arte, maravilhoso. Mas o designer não deveria fazer uma peça que seja só estética. Às vezes acontece de você ter uma função que não é tão bem atendida, mas a peça tem uma qualidade de harmonia, de forma, de beleza e materiais, algo instigante. Os Irmãos Campana, por exemplo, fazem peças muito instigantes, com materiais inusitados. O trabalho deles é mais próximo da arte. Essa não é uma preocupação minha. Isso cabe a quem está querendo fazer essa classificação. Mas eu já fiz peças de edição limitada. E qual é o critério que eu uso para isso? É fazer algo que tenha um material raro, único. Eu tenho umas peças na exposição que fiz a partir de uma madeira espetacular que consegui, mas com a qual não consigo fazer mais do que três mesas, porque é uma viga de demolição com característica de veio, de cor e de textura muito especial. Então, ela vira uma peça de edição limitada por essa escassez do material. Ela também tem uma forma de ser trabalhada que pode ser percebida como uma escultura, como arte, mas não é essa a preocupação que eu estou tendo. Outra série de luminárias de edição limitada que eu fiz traz base em madeira e um material raro, o nióbio, que tem a característica de mudar de cor a partir de um processo eletrostático - dependendo da intensidade da carga elétrica que você coloca, ele vai mudando de cor. É um processo meio mágico, diferente de ser um metal pintado. E é um processo supertrabalhoso, pois é um material brasileiro, mas cuja chapa é feita fora. Então você tem que comprar a chapa fora, ela é usinada em lugar, depois vai para tratamento em outra cidade. É uma complexidade que leva você a fazer um número menor de peças e que custa muito caro, porque o processo é extremamente trabalhoso.

Na divulgação da exposição você se disse muito feliz por estar expondo em Curitiba e que vê a cidade como um local que tem muita relação com arte. Pode comentar sobre isso?  

Primeiro, é uma cidade que tem um museu muito importante e que é um ponto de convergência dos moradores. Todas as vezes em que venho aqui, percebo uma energia enorme, tem muita gente visitando, muitos jovens, o museu sempre tem exposições diferentes. Se você anda por aqui, vê uma qualidade de arquitetura. E eu acho que tem a ver, também, com o fato de Curitiba ter tido um prefeito [Jaime Lerner] que era um urbanista, um caso único no Brasil, de um prefeito arquiteto e que conseguiu fazer as coisas - porque, às vezes, tem muita gente com boas intenções que não consegue. É uma cidade que sempre foi percebida como um local que olhou para isso e que é muito ligada ao design.
Metal e pedra também integram a produção e trazem contraste e textura às peças.
Metal e pedra também integram a produção e trazem contraste e textura às peças.

Em diversas conversas com profissionais brasileiros, muitos apontam o fato de primeiramente serem reconhecidos fora para, depois, serem valorizados no Brasil. Você concorda com esse ponto de vista?   

Eu não tenho essa sensação. Acho que isso aconteceu muito com os [Irmãos] Campana. Eles tiveram um superreconhecimento fora, são supertalentosos, muito originais, e isso trouxe muito interesse do público de outros países para o Brasil, aí não só para o trabalho deles, mas também para o de outros designers e arquitetos. E nós temos ótimos designers e arquitetos. Os designers que eu conheço, sobretudo os da minha geração, sempre fizeram um caminho muito [local]. A gente não precisou ter esse reconhecimento fora. É claro, você expõe fora, tem uma galeria que te representa fora, e tudo isso é sempre muito bom, é um valor. No Brasil, há excelentes veículos de comunicação, curadores de design, feiras, há um trabalho dessas pessoas que valorizam o trabalho do designer aqui dentro.

Você também assina projetos de interiores. O habitar, o desfrutar dos espaços nunca foi tão intensamente pensado e vivido como nos meses de pandemia. Qual é a sua avaliação sobre este novo papel que a arquitetura assumiu na vida das pessoas?  

Ela já vinha tendo [este reconhecimento] há algum tempo, até mesmo pelas mostras de decoração, as pessoas se interessam muito. Elas têm muito lazer em casa, o streaming, o espaço gourmet. A pandemia trouxe as pessoas mais para dentro de casa, houve mais necessidade de se criar espaços de trabalho em casa, mas isso já era uma tendência que vinha acontecendo.

Muitas pessoas colocam o design e a arquitetura como ferramentas para pensarmos em políticas públicas e bem-estar social. Qual é a sua opinião sobre isso?   

Certamente o design deveria ser mais integrado como política pública. Quando estávamos falando sobre urbanismo, Jaime Lerner, o trabalho do design é fundamental. O designer deveria ter mais espaço, mas também não ficar apenas esperando que alguém venha te chamar. É você ir atrás, procurar e tentar ver onde você pode ser mais atuante nessas políticas públicas. Recentemente, conheci uma comunidade em São Paulo onde uma moça que nasceu nela se formou em Arquitetura, tornou-se uma líder comunitária e está fazendo um trabalho espetacular de reforma das casas. Fizemos um projeto de mobiliário para essas casas... Essa moça oferece um curso de construção civil para mulheres, de azulejaria, da parte elétrica. Há espaço para o designer atuar nisso, em projetos que acarretam melhoria na vida das pessoas, da autoestima. Há espaço, mas a gente tem que ser criativo e saber procurar.

Serviço

  • “Forma e Matéria” 
  • Por: Cláudia Moreira Salles 
  • Curadoria: Waldick Jatobá  
  • Data: até 13 de março de 2022 
  • Local: Museu Oscar Niemeyer (MON), sala 2 (Rua Marechal Hermes, 999, Centro Cívico)

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