Design

Móveis inspirados em instrumento de tortura da época da escravidão geram polêmica

HAUS*
09/07/2018 23:00
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Buffet Tronco dos Escravos gerou polêmica nas redes sociais. Fotos: Divulgação

Duas peças de mobiliário estão dando o que falar. Inspiradas no tronco de escravos, instrumento de tortura e humilhação em que negros eram presos pelas pernas e braços para serem açoitados, as peças Buffet Tronco dos EscravosBanco Zumbi dos Palmares despertaram a fúria de diversas pessoas nas redes sociais. A discussão começou quando um coletivo de cultura negra questionou o conceito dos móveis, mas logo em seguida deletou as postagens. A polêmica tomou ainda mais corpo depois que o jornalista Laurentino Gomes, que transformou a história do Brasil em fenômeno de vendas de livros e  que agora prepara uma trilogia sobre escravidão, dedicou duas postagens no Twitter sobre o assunto.
O troco, instrumento de tortura de escravos no Brasil, que serviu de inspiração para a nova linha de móveis de uma loja de Maceió (em parceria com o Sebrae!) pic.twitter.com/WHgEeMI13j
— Laurentino Gomes (@laurentinogomes) 5 de julho de 2018
Apesar da discussão recente, a linha de mobiliário Quilombo dos Palmares, que conta no total com 7 peças, é ‘antiga’. Foi lançada em 2016 não para ser comercializada em lojas, mas para compor apenas um catálogo de 16 marceneiros e empresários das indústrias moveleiras da região de Maceió e entorno. Em 2017, dois dos móveis da coleção chegaram a ser expostos no Salão Internacional do Móvel de Milão, o maior e mais importante evento de design do mundo.
O trabalho foi feito em conjunto pelos designers Marcos Batista e Eduardo Peroni com o Arranjo Produtivo Local de Móveis de Maceió e Entorno, que faz parte do Programa de Arranjos Produtivos Locais (PAPL), coordenado pela Secretaria de Estado do Desenvolvimento Econômico e Turismo (Sedetur) de Alagoas e pelo Sebrae Alagoas, com apoio da Federação das Indústrias do Estado de Alagoas (Fiea).
“Fui contratado para gerar valor nos serviços e valores dos marceneiros da região. Em 2013 fizemos uma primeira coleção sobre a história de Alagoas. Em 2015, resolvemos criar uma outra linha com mais impacto e aproveitamos toda a discussão tão atual do racismo. Os próprios marceneiros escolheram trabalhar com o tema do Quilombo dos Palmares, que fica em Alagoas e faz parte da cultura, história e dia a dia deles”, explica o designer Marcos Batista em entrevista exclusiva a HAUS.
“Fomos todos até a Serra da Barriga, ouvimos a comunidade local, buscamos histórias de vida, espiritualidade, símbolos, e os marceneiros começaram a construir os móveis. Separamos as pessoas em quatro grupos e cada um desenvolveu um objeto com inspiração no que eles viram. Meu trabalho foi coordenar isso e, com a minha experiência de designer, ajudar a tornar reais os desenhos deles”, conta o designer.
Fotos: Divulgação
Fotos: Divulgação
Questionado sobre a polêmica, Marcos enfatiza: “O grande propósito do grupo foi evidenciar o principal quilombo do Brasil e não se esquecer da luta, da dor e do sofrimento. Trazer imagens de luta do movimento. As pessoas olham e veem morte e tortura. Houve uma distorção total. A história dos quilombolas é tão gigante. Elas escolheram falar sobre isso. As campanhas de mobilização pelo uso do cinto de segurança também mostram a dor. Mas quando tocamos neste assunto, um tabu, as pessoas estão prontas para gerar polêmica”.
Procuradas pela reportagem, o Sebrae Alagoas e a Federação das Indústrias do Estado de Alagoas informam que ainda estudam um posicionamento sobre o caso.
A Secretaria de Estado do Desenvolvimento Econômico e Turismo (Sedetur) de Alagoas, responsável pelo Programa de Arranjos Produtivos Locais (PAPL), informa por meio de nota que atua através de consultorias para fomentar o agronegócio, o setor de serviços e a indústria, e que “não concorda com a nomenclatura do referido móvel, e trata a questão da escravatura com a integridade e o respeito que o tema exige. Temos em Alagoas o maior quilombo das Américas e defendemos que nosso Estado é berço da liberdade no Brasil”. Questionada novamente pela reportagem porque o governo do estado não se posicionou na época do projeto, já que não aprova o nome das peças, como consta na nota, a secretaria não respondeu.
Para a presidente do Sindicato das Indústrias de Marcenaria, Móveis e Esquadrias do Estado de Alagoas, Jerlane Carneiro, “a cultura e a história dos quilombolas foram reverenciadas nesse trabalho, desenvolvido por um grupo de empresários alagoanos, com dedicação e respeito a história do nosso povo”.
Ela refuta qualquer conotação racista e afirma que “as referências ao período escravagista foram feitas como uma memória que deve ser lembrada, para que nunca se repita.”
Estante União dos Palmares. Foto: Divulgação
Estante União dos Palmares. Foto: Divulgação
Em nota (confira a íntegra ao final da matéria), o coletivo artístico de cultura negra de Curitiba ‘Movimento Black Out CWB’ repudia as criações por “romantizar e ressignificar […] um instrumento de tortura”.
“Do meu ponto de vista, o que falta nas empresas que tomam essas decisões é envolvimento de pessoas com conhecimento de causa. O grupo de pessoas que foi no quilombo, fez um estudo, mas infelizmente não teve sensibilidade para entender essa especificidade. E essas pessoas não têm nem culpa de pensar diferente porque elas não têm conhecimento mesmo. O negro é tão distante da realidade dessas pessoas que elas não conseguem ter essa sensibilidade, e isso vai muito além de apropriação cultural”, ressalta Eduardo Marcelino, integrante do coletivo.
Aparador Liberdade. Foto: Divulgação
Aparador Liberdade. Foto: Divulgação
“O que ocorre é o seguinte: a memória da questão do negro e da negra no Brasil é sempre associada à questão da escravidão. A impressão que se dá, muitas vezes, é a de que a única presença negra no país se dá a partir da escravidão“, desafia Dennis de Oliveira, professor de Jornalismo da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) e coordenador da Rede Quilombação (coletivo de ativistas anti-racistas).
“Independentemente da intenção (não estou aqui julgando as boas ou más intenções das pessoas, até acredito que devam ter boa intenção), na medida em que você transforma uma passagem histórica triste, ruim e negativa para a população negra em algo como o design, isso acaba naturalizando-a. Acaba saindo de um contexto histórico, que tem que ser marcado por críticas, e se transformando em um objeto do qual se retira todos os conteúdos que estão associados a este processo”, lembra Dennis.
Buffet Tronco dos Escravos gerou polêmica nas redes sociais. Fotos: Divulgação
Buffet Tronco dos Escravos gerou polêmica nas redes sociais. Fotos: Divulgação
“O que me estranha é a opção de escolher justamente objetos que relembram o processo de escravidão, sendo que as comunidades quilombolas são justamente o inverso, são experiências de resistência à escravidão”, opina o professor da USP.    
“O importante seria que todos os projetos que organizações, empresariais ou não, queiram realizar com a intenção de discutir a questão racial fossem feitos a partir de diálogos com o movimento negro e as lideranças que lutam contra o racismo. Pois, é evidente que ninguém vai cobrar que uma pessoa que não está inserida neste movimento compreenda totalmente este tipo de situação, mas para evitar este tipo de problema, seria interessante que sempre acontecesse o diálogo para que isto possa ser feito de forma mais efetiva, mais equalizada”, completa.
Nota do ‘Movimento Black Out CWB’
“É inaceitável essa romantização e ressignificação maliciosa desse um instrumento de tortura, e nosso repúdio não é pelo óbvio aqui posto, a obviedade é inquilina das certezas e nosso repudio mora na casa dúvida.
Nos negros somos constantemente homenageados, hora com batismo em papel higiênico, hora com máscara mordaça em festa de gala.
Em nossa homenagem o racismo é ocultado nas ciladas das termologias, seja no “Pessoas Diferenciadas” das socialites paulistanas ou no “Gracejo Cisrcunstânciado” do William Waack.
Racismo é um demônio de muitas faces, Twiter, Tv, Igreja e veículos que ultrapassam o limite da apropriação, subversão e destruição do nosso sagrado… é o descaso que resume nossa dor em mimimi.
É inaceitável essa romantização e ressignificação maliciosa desse um instrumento de tortura, e nosso repúdio não é pelo óbvio aqui posto, a obviedade é inquilina das certezas e nosso repudio mora na casa dúvida.
Quem são os profissionais que dão forma a essa aberração? Quais suas histórias, referências e intenção?
Quem são os consumidores e quais marcas associam seus nomes a essa agressão ao povo negro?
Você já viu algum racista que ainda não foi pego pedir desculpas? Oq acontece qdo desmascarados?
Seguimos em frente pois o racismo é institucional, funcionou com a torcedora do grêmio, William Waack, Cocielo… por que não funcionaria agora?”
*Aléxia Saraiva, Luan Galani e Sharon Abdalla.

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