Design

O que o design feito no Brasil tem de brasileiro?

Luciane Belin
24/09/2019 18:15
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Quando Lina Bo Bardi começou a trabalhar para organizar um campo de atuação para os desenhistas industriais recém-formados no Brasil, na década de 1950, ela sabia. Era visionária o suficiente para enxergar todo o potencial que o país tinha para o design, mas encontrou resistência dos empresários. A modernista italiana já tinha entendido, antes mesmo de muitos brasileiros, o tamanho da contribuição que este povo poderia oferecer a uma área que, mesmo mundialmente, ainda estava em processo de consolidação.
Lina estava coberta de razão. Seis décadas depois, o Brasil é hoje um dos dez países mais premiados em design no mundo, segundo a diretora técnica do Centro Brasil Design, Ana Brum. Mas ainda estamos longe de alcançar o máximo do desenvolvimento para o qual temos competência e um dos desafios, de acordo com muitos pesquisadores da área, está em encontrar nosso lugar quando o assunto é design. Zoy Anastassakis, pesquisadora e professora da Escola Superior de Desenho Industrial da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e autora do livro “Triunfos e impasses: Lina Bo Bardi, Aloisio Magalhães e o design no Brasil”, diz que o design nasceu e ainda se alimenta de um conflito entre os profissionais e o mercado.
“É dessa tensão que a profissão vive até hoje no país. Os designers precisam estar aptos a aprender algo que o mercado vai pedir que eles saibam; ao mesmo tempo a gente não vai competir com Estados Unidos, Alemanha, China, que investem muito na formação de designers, o que não é uma política brasileira. Essa tensão, que é característica do modernismo, é a marca mais forte do design brasileiro”.
É por isso que, tanto em termos de mercado quanto de estética, o design que é feito no Brasil ainda traz uma profunda ligação com sua escola fundadora, o modernismo. Mas, muito embora a história oficial da profissão no Brasil remonte aos anos 1950, o design faz parte da forma como o país constrói “coisas” há muito mais tempo e por todos os lados. Contudo, quando se tenta pensar no que define o design brasileiro, e até mesmo se é possível falar em um movimento do design nacional, nem quem pesquisa e ensina sobre o assunto a vida inteira tem uma resposta na ponta da língua. A forma como a área construiu sua história nestas terras é complexa e marcada por diversas questões menores, segundo o professor e pesquisador do curso de Design da UFPR Ken Flávio Ono Fonseca.
“No Brasil, ‘design’ foi traduzido como desenho, tanto que os primeiros cursos eram de desenho industrial. O nome design só foi adotado ano de 1988, em um congresso que foi em Curitiba. Se existe um design brasileiro é outra questão complexa, especialmente porque vivemos em um mundo cada vez mais global. Quando os Irmãos Campana, que são brasileiros, desenham para uma marca italiana, as peças são vendidas como design italiano. Então, como diferenciar um do outro?”.
É por essas e outras que a multiplicidade, a diversidade e a mestiçagem, por mais clichê que isso possa soar, são, ainda, a marca mais importante que ele assume por aqui. “O design no Brasil ainda não tem uma identidade muito própria e específica. O que a gente vê é, de um modo geral, mais internacional, especialmente agora que o mundo está muito interligado”, opina a designer Camila Fix, sócia da Plataforma 4.
Nem todo mundo acredita que o Brasil precise encontrar uma identidade para o que se produz aqui. Para Gustavo Greco, vice-presidente da Associação Brasileira de Empresas de Design (Abedesign), que está à frente do Brasil Design Award (BDA), cada vez mais o design busca espaço não apenas no sentido da estética, mas também estratégico, e isso não cabe em uma legenda. “Somos um país de dimensões continentais, multicultural com heranças culturais das mais variadas. Toda vez que buscamos uma definição, recorremos a clichês. A criatividade, entendida como insumo, é um recurso inesgotável, e finalmente é vista como de grande relevância para o desenvolvimento da economia”.
Segundo o designer Levi Girardi, CEO da Questto|Nó, escritório que é referência em inovar usando o design como ferramenta, é preciso enxergar na diversidade a saída para a área. “Acredito que o design brasileiro é uma grande mescla de referências externas com a cultura brasileira, aliada à famosa criatividade do brasileiro, que faz com que nossa produção seja rica. Também podemos falar no fazer mais com menos, movido pela escassez típica de países com economia em desenvolvimento como o nosso”.
Há, então, como pensar em “design brasileiro” sem recorrer ao que, aos olhos do mundo, define nossa identidade nacional? A resposta dos profissionais da área é um categórico: “sim, inclusive precisamos”. Ir além da ideia da tropicalidade, do samba e do futebol é obrigatória se o design quer atingir seu potencial. “Quando as pessoas pensam no que é design brasileiro, elas pensam no que o mundo vê como
brasileiro, e o mundo vê através dos estereótipos. Tudo está na profundidade. Na superfície, você cria coisas pouco relevantes, mas se vai na profundidade do que é ser brasileiro, você vai criar uma
coisa com muito mais bossa do que bola”, acredita o designer Mauricio Noronha, da Furf Design Studio.
Para o sócio de Mauricio, o designer Rodrigo Brenner, é preciso ir além do clássico casamento do design com a indústria de mobiliário e expandir o pensamento para outras áreas. “O nosso produto que mais vende em quantidade é da área médica, produzido em larga escala e está no SUS. É a única peça do tipo no mundo com as três maiores premiações internacionais de design, um produto assinado. Tentar vender design exclusivo exclui”, diz, referindo-se à capa de próteses Confete, projeto da dupla.

A raiz da criatividade

Gambiarra. Substantivo. “Solução improvisada para resolver um problema ou para remediar uma situação de emergência; remendo”. A definição é apenas uma das oferecidas pelo dicionário de língua
portuguesa brasileira e, talvez, poucas coisas estão mais calcadas na essência do povo brasileiro do que a gambiarra.
A questão é que a essência da gambiarra é a criatividade e essa é a matéria-prima do design. O que ele faz é subtrair o improviso e conferir uma boa dose de garbo. Pronto, nasceu a inovação. É por isso que, para muitos pesquisadores, quando se pensa em uma “Escola Brasileira de Design”, é essencial olhar para quem o produz na base. O designer português Frederico Duarte pesquisa a interface Brasil & Design há mais de uma década. Começou no mestrado, continuou no doutorado e já foi curador de diversas exposições sobre o tema em espaços prestigiados em Londres e Lisboa. Na opinião dele,
ainda temos que aprender muito com o que é feito dentro do nosso próprio país, sobretudo no que diz respeito a um mercado de serviços e bens duráveis de consumo. “A atenção que o mundo deveria
prestar ao Brasil em termos de design tem mais a ver com embalagens de sabonete do que com mobiliário de luxo ou comunicação visual associada à chamada alta cultura”, diz.
Enquanto o design assinado parece preocupado demais com autoria, exclusividade e originalidade, as gambiarras cotidianas poderiam estar servindo de inspiração para iniciativas realmente transformadoras. “O Brasil contemporâneo pode ser entendido como um local paradigmático para a prática do design, precisamente quando essa atividade pretende enfrentar o principal problema da
sociedade brasileira, mas também de tantas outras: a desigualdade.”
Ele defende que a austeridade e a necessidade são mães prolíferas de boas ideias e que, em uma realidade em que muitos dos profissionais têm essas questões em sua formação, cria-se o cenário
mais fértil possível para a criatividade. “A consciência dessa frugalidade inteligente das classes menos privilegiadas no Brasil é uma das grandes mais-valias do design brasileiro. Essa consciência está ainda muito pouco disseminada pela classe de designers, que ainda tendem a vir de classes altas, da chamada elite urbana e branca”.
Segundo Duarte, uma das maiores esperanças para o design brasileiro é a introdução de cotas nas universidades, que têm proporcionado a entrada de alunos e alunas das periferias, representando o Brasil na sua multiplicidade étnica e social. “As suas experiências de vida e perspectivas de futuro farão com que eles e elas façam, ainda enquanto estudantes, diferentes perguntas e, enquanto profissionais, deem diferentes respostas de design aos vários desafios que a sua sociedade tem pela frente. Do mobiliário às políticas públicas, da utilização sustentável de matérias-primas à atenção dada aos saberes indígenas”.

Comunidade e sustentabilidade

Uma cadeira com látex de seringueira em sua composição. Foi com essa peça essencialmente brasileira – a Espreguiçadeira Macunaíma –, que o designer Pedro Franco, da A Lot of Brasil, participou pela primeira vez da mostra satélite do Salão Internacional do Móvel em Milão.
Agora, depois de expor no evento por duas décadas, ele acredita que traduzir uma fração da raiz brasileira foi o que o ajudou a conquistar seu espaço lá fora. Outro trabalho que Franco desenvolve e que conquistou o mundo é o da cadeira Esqueleto, cuja estrutura é montada com cabides a partir de uma estética popular no país. “Quando a gente consegue traduzir a essência e chegar a um processo produtivo com pesquisa, com elementos nossos, regionais, a gente acaba chegando em produtos com uma ótima qualidade, produzidos muitas vezes de forma industrial e cheios de história para contar. Quem compra a Esqueleto está adquirindo uma peça injetada a partir de sementes de um fruto brasileiro: a acerola”.
E existem muitas outras que seguem o mesmo raciocínio: as fibras de coco e do curauá usadas para fazer bancos automotivos, o bioplástico da Braskem utilizado pela Lego para tornar suas peças mais sustentáveis, a resina à base de mamona sendo aplicada em peças de mobiliário, o biotecido à base de folhas da linha BeLEAF, desenvolvido pela Nova Kaeru.
São décadas de pesquisa e de inovação Made in Brasil, e estes são apenas alguns dos muitos exemplos que poderiam ser citados. “A gente tem a possibilidade de trazer nossa regionalidade de uma forma industrial, de trazer essa nossa brasilidade, fazer o trabalho socialmente correto, mas também um trabalho que seja industrial. Não adianta entrar em uma comunidade, produzir uma peça e vender por R$ 15 mil, por exemplo. No fim das contas, isso não é sustentável”, opina.
Mauricio Noronha concorda: “Se todo o potencial criativo estivesse focado em fazer coisas mais democráticas e menos para o mercado de luxo, imagine a quantidade de coisas incríveis que a
gente teria”.

O design que nem todo mundo vê

O papel ou a tela em que você provavelmente está lendo este texto. A cadeira em que está sentado. Os óculos dos quais você talvez precise. A xícara em que você bebe seu café. Todos os objetos que temos ao nosso redor foram pensados e desenhados por alguém antes de se tornarem realidade: em geral, esse alguém é um designer.
É por isso que, quando se fala sobre a profissão no Brasil, boa parte dos brasileiros tende a pensar, essencialmente, no design autoral ou assinado. Mas é para os bastidores da produção industrial que vai a imensa maioria dos profissionais que se forma na área. É este, que pensa em larga escala, que produz pesando mais a funcionalidade do que a estética, que quer melhorar o dia a dia da população, o verdadeiro design transformador.
“A categoria que mais recebe inscrições brasileiras [nos prêmios internacionais] é a de móveis e decoração e o Brasil destaca-se. A indústria moveleira, composta por diversos processos de produção, tem nacionalmente belos e importantes exemplos de gestão inovadora nas quais o design contribuiu para a melhoria da competitividade no mercado”, explica Ana Brum, do CDB.
Mas tem muita gente colocando a mão na massa para criar coisas que ajudem as pessoas a otimizar tarefas e economizar alguns minutos no cotidiano. O trabalho da empresa Chelles & Hayashi é um exemplo desta versatilidade que acontece, muitas vezes, nos bastidores. Entre máquinas de lavar, fogões e embalagens para cosméticos da Natura e d’O Boticário, eles desenharam a tocha que rodou pelo mundo inteiro nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, em 2016.
31.07.2015. 1TYG .Tocha Cristo.Rio de Janeiro. BRASIL.
31.07.2015. 1TYG .Tocha Cristo.Rio de Janeiro. BRASIL.
Sob o comando da designer Romy Hayashi e do engenheiro Gustavo Chelles, o escritório coleciona prêmios. Em 2019, recebeu o IF Design Awards, pela embalagem do perfume Malbec Signature, criado para O Boticário – um produto que tantos brasileiros têm em casa e não sabem que é premiado. “Quando a gente projeta uma lavadora de roupas, estamos tão preocupados com as funções do painel quanto com a forma e a estética da lavadora. No design autoral, você pensa em forma. A gente fala de algo que afeta a pessoa todos os dias, então temos que procurar enxergar isso de uma
maneira mais ampla, e nem todo mundo percebe isso no dia a dia”, conta Chelles.
Para Romy, a principal diferença é que o design autoral está diretamente atrelado à concepção de um
produto do desenho até a produção – o próprio profissional vai atrás de tirar o projeto do papel, diferente do design comercial. “Como a gente trabalha ligado à indústria, que já tem uma construção de marca, tentamos entender a expressão de linguagem daquela marca com aquele consumidor. Não tem um viés próprio, um desejo de fazer algo nosso. A gente está muito mais focado no que faz sentido para aquela relação cliente-marca”.

Perspectiva estrangeira: um retrato

É desta relação de consumo – entre quem vende e quem compra – que o design sobrevive, em parte. E muitas vezes é isso que dita também a forma como a produção brasileira do design é exportada. Uma parte significativa do que vai para fora ainda tenta imitar ou competir com o que é feito internacionalmente.
“A gente vê muito isso de ‘vou tentar fazer um design escandinavo’ ou ‘vou tentar fazer um design como era nos anos 1960’, e quando você olha para a essência do brasileiro, vai descobrir coisas completamente diferentes do design escandinavo e dos anos 1960, porque a gente está vivendo no Brasil de hoje”, diz Mauricio Noronha.
Isso não significa que o mundo não consiga enxergar através desta vitrine para ver o que é realmente brasileiro. Um dos produtos nacionais mais vendidos fora do Brasil, segundo o designer Pedro Franco, são as sandálias Havaianas, “que nada mais é do que um chinelo com uma bandeirinha do Brasil. Mas quando a pessoa de fora vai atrás daquilo, ela se sente parte do nosso lifestyle, que é o que eles gostam e admiram. Então, existe uma curiosidade natural pelo design brasileiro”.
Outra forma de levar o verdadeiro design do Brasil para fora são as mostras internacionais. Joice Joppert Leal, diretora-executiva da Objeto Brasil, fez a curadoria da mostra Be Brasil durante
a Semana de Design de Milão, neste ano, e defende que, mais do que nunca, o país está conquistando a atenção e a curiosidade do público estrangeiro. “O tema da mostra era ‘Essencialmente
diverso’, mostrando a diversidade de culturas e raízes que o Brasil tem. Quando se fala em diversidade, eu sempre quis mostrar essa riqueza do país, dos materiais, da nossa cultura, da formação do povo brasileiro, e, ao falar disso, mostrar a nossa história de diferentes etnias sem aquele lado do  exótico, mas pensando no nosso potencial contemporâneo. E deu certo, as pessoas se interessaram muito”.

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