Urbanismo

Arquitetura

Carnaval: a festa que coloca a cidade a serviço das pessoas

Camila Machado, especial para HAUS
20/02/2020 10:00
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Marques Rebelo, cronista carioca do século passado, dizia que a cidade é feita de várias cidades, uma arena em constante disputa. O aforismo vale para o dia a dia, mas tem seu ápice no carnaval, que é o encontro dos povos nas ruas. A arena passa a ser ocupada de maneira intensa e tensa. Os apontamentos são do escritor, professor e historiador Luiz Antonio Simas, especialista em carnaval. Para ele, essa festa de rua, de gente junta, de ocupação de centros e locais históricos, traz uma pulsão de sentimentos que, muitas vezes, coabitam nas rotinas urbanas. Essa “confusão” justifica o sucesso dos bloquinhos e da ocupação dos espaços públicos nos quatro dias da festa que remonta os primórdios da história brasileira.
Livre de abadás, cordas ou grades, o carnaval é um movimento predominantemente político, de conquista do espaço urbano. “Ao contrário do que o senso comum pensa, o carnaval de rua não é alienado. Trata-se de uma festa política que vai contra a ordem de disciplinar o espaço público”, explica Simas. A ideia é compartilhada também pelo geógrafo e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Alessandro Dozena. Para o especialista, o carnaval de rua é marcado pelo improviso e pela resistência às normas tradicionais da rotina cotidiana. “A espontaneidade permite um contraponto ao artificialismo da realidade. Quem impulsiona essa resistência é o uso territorial e o uso do próprio corpo, um misto de prazeres e aspirações”, destaca.
Foliões curtindo um dos carnavais de rua de Curitiba.
Foliões curtindo um dos carnavais de rua de Curitiba.

Rua para as pessoas

“O carnaval é a festa da inversão. É exacerbação”, explica Simas. A grosso modo, é quando o local de trabalho se transforma em espaço de prazer. A rua que leva para labuta, aparentemente
apática, se transforma em palco. Autor dos livros “Geografia, Músicas e Diálogo” e “A Geografia do Samba na Cidade de São Paulo”, Dozena completa que a partir dos blocos espontâneos, o carnaval de rua impulsiona a criação, o inusitado e o novo.
Ana Paula Baltazar, professora do Departamento de Arquitetura da UFMG, afirma que o direito à cidade não diz respeito apenas aos serviços básicos como saúde e educação, mas ao direito a mudar a cidade. “O carnaval é o descontrole dos espaços públicos. Essa resistência vai além do carnaval. Entendo que quando a festa toma proporções muito grandes esse ativismo fica em segundo plano, mas a iniciativa, quando consciente, é muito interessante”, explica. “Mais gente na rua significa mais segurança, logo, mais pertencimento. Sentir-se confortável no seu espaço.
São essas ocupações e festas que contribuem para a identidade cultural de uma cidade. É um papel conjunto: do poder público em compartilhar os espaços e das pessoas em estarem ali”, completa a arquiteta Gabriela Fávero, sócia do escritório Bloco B, de Florianópolis. “O carnaval quebra essa barreira tênue de pertencimento e alimenta os vínculos afetivos com os lugares. A festa lembra que a cidade não é só espaço de passagem”.
Desfile do bloco Garibaldis e Sacis na Rua Marechal Deodoro no Centro da cidade de Curitiba
Desfile do bloco Garibaldis e Sacis na Rua Marechal Deodoro no Centro da cidade de Curitiba
O efeito parece mágico, mas a dureza sempre se impõe. O historiador Luiz Antonio Simas destaca que o tensionamento pelo direito à cidade vem desde o Brasil colônia. Para ele, o carnaval não se trata da festa da liberdade e tampouco de democracia, mas do fato de ser potencialmente democrático e, por isso, cercado dos mesmos dilemas do regime político. Apesar das ocupações durante os dias de festa e da pluralidade alçar a palavra de ordem, o carnaval observa também traços de gentrificação. Simas é autor de “Dicionário da História Social do Samba” e aponta quatro grandes dilemas sobre o direito à cidade. O primeiro diz respeito à ordem pública. Por ser tão espontânea, a festa é tida como desorganizada “em face da necessidade histórica de disciplinarização da rua”. O segundo desafio é romper com o discurso de ordem moral, que preconiza que o carnaval permite absolutamente tudo – e essa ideia é falsa.
Simas também afirma que o carnaval de rua precisa lidar com a visão de que tudo pode ser mensurado a partir da viabilidade econômica, o que aproxima a festa de rua da festa da avenida, por exemplo. “Se assim for, o carnaval de rua passa a ser controlado por patrocínios e perde a sua identidade quase natural”, explica. Outro ponto de reflexão é a preocupação dos progressistas em pensar que o carnaval está a serviço de pautas específicas, “quando não está”. “O princípio conformador do carnaval de rua é o da alegria, assegurando a utopia instantânea e fugaz, de convívio alegre, hierarquicamente democrático, menos tirânico e mais livre”, resume Dozena. Apesar dos senões, os especialistas apontam uma tendência de aumento no número de pessoas convocadas a curtir o carnaval. O fenômeno pode ser entendido como uma resposta a necessidade da real expressão, de se despir dos modos diários.
Bloco Garibaldis e Sacis, de Curitiba.
Bloco Garibaldis e Sacis, de Curitiba.
A intervenção é imediata, mas segue além do carnaval. Para Dozena, a festa pode inspirar novos cenários frente às dificuldades impostas pelas circunstâncias da vida nos centros urbanos, como os congestionamentos e a violência. “Tudo isso reforça os vínculos de pertencimento, identificação e bem-estar com a cidade, suas praças, seus prédios históricos, ruas, parques e monumentos”, explica.
Curitiba, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Salvador e outras capitais também vêm registrando aumento de foliões nas ruas. O fundador do Garibaldis e Sacis, tradicional bloco de Curitiba, Itaercio Rocha, disse que perdeu a conta da quantidade de foliões na rua no pré-carnaval de 2019, quando o bloco completou 20 anos. Ele também pontua a importância da vivacidade da atividade, inclusive para a preservação dos espaços públicos. “O pobre está ali, a prostituta está ali, o rico também. Poucas vezes se vê um espaço ocupado por gente tão diversa”, reflete.
Na visão de Rocha, na hora do batuque as diferenças se diluem. “Ninguém participa do carnaval para assistir o bloco passar, mas para participar dele, para somar. Nesse momento, é o coletivo que importa para o samba”, relembra.
*Matéria publicada originalmente em fevereiro de 2019.

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