Estilo & Cultura

“O que o Doria está fazendo é um desastre”, critica grande nome da arquitetura

Luan Galani
01/06/2017 21:52
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Incursão da prefeitura de São Paulo na Cracolândia é criticada pelo arquiteto Hugo Segawa, da Universidade de São Paulo (FAU-USP), que esteve em Curitiba para abertura da Expo 2017. Foto: Miguel Schincariol/AFP | AFP

O pequeno e sempre gentil Hugo Segawa não ‘pisa em ovos’ quando o tema da conversa é a gestão do atual prefeito de São Paulo João Doria (PSDB) e sua mais recente polêmica sobre a expulsão das pessoas na Cracolândia. “Tirar as pessoas do jeito que ele [Doria] tá fazendo é um desastre”, sentencia um dos nomes mais brilhantes da respeitada Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. “Não é essa higienização, esse saneamento do espaço mediante a eliminação das pessoas que vai resolver. De forma alguma. É um desastre!”
O professor de arquitetura que dedica uma vida a pensar as cidades e a história da arquitetura moderna e contemporânea esteve recentemente em Curitiba para abrir oficialmente a exposição Arquitetura para Curitiba, quando conversou com exclusividade com a HAUS.
Expo 2017  - 24-05-2017 - O primeiro dia do Expo 2017 contou com foodtrucks, exposição e uma palestra com Hugo Segawa (professor da USP e arquiteto). Na foto, Hugo Segawa - Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e Arquiteto.
Expo 2017 - 24-05-2017 - O primeiro dia do Expo 2017 contou com foodtrucks, exposição e uma palestra com Hugo Segawa (professor da USP e arquiteto). Na foto, Hugo Segawa - Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e Arquiteto.
O arquiteto ainda vê com reticência a contratação do arquiteto curitibano Jaime Lerner para repensar a área da Cracolândia. “Não vejo problema em chamar o [Jaime] Lerner para pensar o problema. É um urbanista com larga experiência. Mas devemos ouvi-lo primeiro. Ver o que ele tem como proposta para resolver uma questão tão difícil como essa”, aponta Segawa.
O arquiteto também não economiza nas críticas quando questionado sobre os grafites que foram apagados em São Paulo. “O Doria errou. Errou quando simplesmente atacou os grafites sem saber o que estava fazendo. Desconhecia o sentido das intervenções”, frisa.
“Agora está fazendo paredes verdes. Quanto isso vai custar para os cofres públicos? Se já é difícil conseguir regar um grande parque como o Ibirapuera, que não conseguem, quem dirá regar tudo isso.”
Expo 2017  - 24-05-2017 - O primeiro dia do Expo 2017 contou com foodtrucks, exposição e uma palestra com Hugo Segawa (professor da USP e arquiteto). Na foto, Hugo Segawa - Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e Arquiteto.
Expo 2017 - 24-05-2017 - O primeiro dia do Expo 2017 contou com foodtrucks, exposição e uma palestra com Hugo Segawa (professor da USP e arquiteto). Na foto, Hugo Segawa - Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e Arquiteto.
Para Segawa, a ideia dos jardins verticais merece ser discutida para evitar que a cidade caia em uma cadeia de dependência de determinados fornecedores dos produtos. “Não que não seja bonito. Mas não tem a mesma eficiência de um bosque, por exemplo. E quem fará a manutenção? Vamos depender sempre dos fornecedores, ou os jardineiros da prefeitura darão conta de cuidar?”
“A manutenção será muito cara. Isso pressupõe trocas, substituições das plantas. Quem vai fornecer as mudas? E a irrigação? É uma questão de ser pé no chão.”

Confira a entrevista completa com Hugo Segawa

Expo 2017  - 24-05-2017 - O primeiro dia do Expo 2017 contou com foodtrucks, exposição e uma palestra com Hugo Segawa (professor da USP e arquiteto). Na foto, Hugo Segawa - Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e Arquiteto.
Expo 2017 - 24-05-2017 - O primeiro dia do Expo 2017 contou com foodtrucks, exposição e uma palestra com Hugo Segawa (professor da USP e arquiteto). Na foto, Hugo Segawa - Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e Arquiteto.
Os arquitetos saem das universidades hoje com o óculos do modernismo. Saem fazendo as mesmas casas modernistas que a Escola Paulista criou há mais de 40 anos. Isso é um grilhão para a nossa arquitetura? Não atrapalha a evolução da nossa linguagem?
É pertinente constatar que existe essa resiliência, permanência do moderno. O risco é que, num futuro ou num presente que parece que não anda, estamos patinando. Mas vamos pensar positivo. Por outro lado, a modernidade tem seus valores. A questão é se estudantes e professores podem atentar para o que é essencial das lições do moderno. E o que aprendemos com os fracassos do moderno.
Quais são esses fracassos?
O moderno é uma condição de sempre transformação. E somos um país que ainda precisa ser transformado. Em todos os sentidos. Na arquitetura, sobretudo. Claro que tivemos um apogeu, o discurso de Artigas, Niemeyer, Brasília. Mas precisamos aprender. E o que aprendemos com isso? A modernidade incomoda por sair dos nossos hábitos e tradições, mas também instiga a pensar coisas diferentes. Temos que superar esta condição, esta modernidade ortodoxa, esta modernidade que para no tempo e que talvez nem seja digna de chamar de moderno.
Paramos no tempo?
Temos o risco de parar. Mas os jovens arquitetos que fazem o moderno devem olhar, e alguns olham com visão crítica. E não querem repetir os erros que a experiência do moderno trouxe.
Mas quais são esses fracassos? Na origem, por exemplo, o modernismo estava muito ligado à ideologia. Hoje só sobrou a estética moderna. A ideologia parece ter escorrido para o ralo. É um fracasso?
Em parte. Os modernos de 1950 viviam neste contexto libertário de contestação às questões tradicionais. Hoje essa ideologia por trás deve ser outra a nova geração. Naquela época, subverter as plantas e as formas de relações humanas chocava. A cozinha americana, por exemplo, naturalmente associada ao moderno, talvez nem seja mais algo moderno. Parece trivial, mas a modernidade trouxe subversão. E só gente muito ligada fazia isso. Era coisa de pobre.
Mas qual o mais importante fracasso da modernidade?
Tentou criar o homem único. Que todo mundo vivesse de uma maneira, dormisse de uma maneira, usasse os espaços de um mesmo jeito. Foi um erro achar que o ser humano se moldaria a uma forma de viver, de pensar, de se comportar. Essa cerealização do espaço, a organização rígida do espaço foi um valor da modernidade que fracassou.
O que você acha da atual gestão de São Paulo chamar o Jaime Lerner para se debruçar sobre a Cracolândia?
Não vejo problema. É um urbanista com larga experiência, um pensador respeitável. Devemos ouvi-lo, o que ele tem como proposta para resolver uma questão tão difícil como essa. Não se resolveu em parte alguma do mundo ainda. Chamar alguém para tentar achar soluções é uma boa medida. Expulsar as pessoas do jeito que ele tá fazendo é um desastre. Não é essa higienização, saneamento do espaço mediante eliminação das pessoas que vai resolver. De forma alguma. É um desastre!
E sobre a política de mandar apagar os grafites em determinadas áreas da capital paulistana? Como você avalia?
O Doria errou. Errou quando simplesmente atacou e apagou os grafites da 23 de maio sem saber o que estava fazendo. Tomou atitude sem saber o que estava apagando. Desconhecia o sentido da intervenção. Agora está fazendo paredes verdes. Não sei quanto isso vai custar para os cofres públicos.
Você vê o projeto com reticência?
Por questão de manutenção. Não que não seja bonita. Mas não tem a mesma eficiência de um bosque, por exemplo. Diversos estudos dizem isso. E quem fará a manutenção? Vamos depender sempre dos fornecedores, ou os jardineiros da prefeitura darão conta de cuidar? A manutenção será muito cara. Isso pressupõe trocas, substituições das plantas. Quem vai fornecer as mudas? E a irrigação? É uma questão de ser pé no chão. Podemos cair na eterna dependência da manutenção. Como será o futuro disso? Voltando ao grafite: não quero dizer que o grafite seja algo eterno. O grafite é arte efêmera. Pode ser substituído. Particularmente acho: uma cidade demasiadamente grafitada é como uma música sem pausa. E a cidade é uma cacofonia permanente. O risco é que o grafite se torne algo que não é o silêncio de que precisamos.
Crítico respeitado sobre as cidades e a história da arquitetura moderna e contemporânea, o arquiteto Hugo Segawa, da Universidade de São Paulo (FAU-USP), esteve em Curitiba para abertura da Expo 2017. Foto: Marcelo Andrade/Gazeta do Povo
Crítico respeitado sobre as cidades e a história da arquitetura moderna e contemporânea, o arquiteto Hugo Segawa, da Universidade de São Paulo (FAU-USP), esteve em Curitiba para abertura da Expo 2017. Foto: Marcelo Andrade/Gazeta do Povo
O Guto Indio da Costa gosta de falar sobre os desejos não verbalizados das coisas. E das nossas metrópoles? Pelo quê elas gritam hoje, na sua opinião?
Tenha dificuldade de humanizar a cidade, embora seja poético. Humanizá-la como se tivesse desejo. Desejo é uma coisa humana. Estamos transferindo nossos ideais para algo que não tem vontade própria. O que está sufocado nesta cidade? Qual o desejo reprimido? O desejo reprimido é um conjunto de desejos das várias tribos, dos vários mundos que convivem e se chocam. Exemplo: Doria defende uma visão de mundo que não é a visão de mundo de parte da população. Esse choque faz parte. E isso simplificando muito. Essa pluralidade chocante é uma característica da metrópole. Não é defeito nem virtude. É uma característica.
Existe uma ânsia de diversos profissionais de fazer arquitetura contemporânea, mas diversos empreendimentos imobiliários ainda se apegam ao neoclássico. Por que esse apego?
Você fala de uma parcela de um certo consumo de estilos. Isso existe e sempre existirá. Faz parte da floresta de diversidade que existe em uma metrópole. Quem define essa tendência de gosto é o mercado imobiliário. Nos anos de 1980 isso era muito forte em São Paulo. O neoclássico, neomediterrâneo. Hoje é tudo clean, minimalista. Embora exista nichos, com esse campo mimético, tradicionalista. Isso existe. Pode ser que volte. Como no pós-moderno que justificou o mimetismo dos estilos. Acho que aí tem pouca da arquitetura. Tem mercado.
Grandes nomes da habitação social elencam diversas soluções para o déficit de moradia no Brasil. Mas nenhuma das opções é posta em prática, é abraçada pela classe política. Como convencer os prefeitos a abraçar a causa?
Os arquitetos são capacidades a dar resposta. De constituir respostas ou hipóteses a esse respeito. A questão é o governante. ‘Minha Casa, Minha Vida’, por exemplo, que foi criado por um governo que se diz progressista, mas que se recusou a sair dos parâmetros de uma arquitetura medíocre. O Lelé [João Filgueiras Lima] fez um projeto de ‘Minha Casa, Minha Vida’, e o projeto foi recusado. Sabe por quê? Não cumpria a planilha do programa. Ele mostrou para a Dilma. Os técnicos disseram que estava fora do padrão do mercado imobiliário, que faz coisas medíocres.
Enquanto a classe política não quiser, não acontece.
A classe política defende interesses. Então a resistência a inovação faz parte de setores que ganham em razão do arcaico. Que ganham dinheiro fazendo porcaria. Não importa mudar. E a inovação é algo que incomoda. Estabelece novos parâmetros.
Gostaria que você explicasse alguma iniciativa aqui ou fora que chama sua atenção e para a qual as cidades deveriam olhar com mais cuidado.
Algo que já existe para lá e para cá, mas é pouco implementado, é a ocupação dos espaços públicos. Incentivar de maneira que se torne mais aberta e democrática. Uma das maneiras é abrir as ruas no fim de semana, como acontece no aterro do Flamengo, no Rio, ou no Minhocão, em São Paulo. Criar lugares de convívio. Nossas cidades não tem pontos de bons encontros. Curitiba é uma exceção. Tem pontos de encontro e as pessoas usufruem desses lugares. É um charme da cidade.
Alguns arquitetos criticam o endeusamento do espaço público. O que acha do argumento?
A questão é que estamos mais vendo as cidades como espaços privadas. A cidade é o lugar da diversidade e nós loteamos, fechamos, gradeamos. Certos controles sempre existiram e existirão. É inevitável. Mas nossas cidades estão cheias de barreiras. Até barreiras invisíveis. A gente não vê, mas a gente teria coragem de andar à noite na Cracolândia? Não tem muro. Nada impede que você entre. Mas ninguém entra. Ali é uma barreira invisível. Não é mais público. Você criou uma barreira. Nossa cabeça criou a barreira. Nossa cidade é cheia. Temos medo de ir. Então, voltando ao argumento do endeusamento: vamos profanar o espaço público.

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