O que são as smart cities e como elas colocam a inteligência a serviço das pessoas

Sharon Abdalla, Aléxia Saraiva
05/04/2019 10:47
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Mais pessoas, menos carros: transformação do Minhocão, em São Paulo, em parque urbano é uma tendência entre cidades inteligentes. Foto: reprodução/Jaime Lerner Arquitetos Associados

“Pessoa que possui ou demonstra inteligência, ou seja, que tem muito saber e/ou capacidade de aprender e compreender”. Esta costuma ser a definição que os dicionários trazem para a palavra inteligente, qualidade quase sempre ligada à figura humana e sua capacidade cognitiva. Mas, há alguns anos, o termo também passou a ser relacionado às cidades: a capacidade de desenvolvimento e o aprimoramento das estruturas e processos tornam alguns centros urbanos “smarts” em comparação a outros, tendo como pano de fundo a busca pela qualidade de vida de seus cidadãos.
Muitos estudiosos, inclusive, veem nas chamadas smart cities“cidades inteligentes” — o que se espera das cidades do futuro, mesmo elas já estando se tornando realidade no presente. Mas afinal, o que é uma cidade inteligente? O que ela traz de diferente, de inovador em relação às cidades tal qual as conhecíamos até então?
Piazza Resorgimento, em Torino, na Itália: qualidade de vida com espaços de lazer e área verde. Foto: divulgação
Piazza Resorgimento, em Torino, na Itália: qualidade de vida com espaços de lazer e área verde. Foto: divulgação
Para boa parte dos pesquisadores, a resposta se resume a uma palavra: tecnologia. “Uma cidade inteligente é aquela que realiza a implementação da tecnologia da informação e da comunicação de forma a transformar positivamente os padrões de organização, aprendizagem, gerenciamento da infraestrutura e prestação de serviços públicos, promovendo práticas de gestão urbana mais eficientes em benefício dos atores sociais, resguardadas suas vocações históricas e características culturais”, defendeu o professor Marcos Cesar Weiss em sua tese de doutorado sobre o tema pela Fundação Educacional Inaciana Padre Sabóia de Medeiros (FEI).
Weiss é pesquisador do tema cidades inteligentes e professor convidado no Programa de Educação Continuada da Escola da Escola Politécnica da USP (LASSU-Laboratório de Sustentabilidade) e na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM).
Mais pessoas, menos carros: transformação do Minhocão, em São Paulo, em parque urbano é uma tendência entre cidades inteligentes. Foto: reprodução/Jaime Lerner Arquitetos Associados
Mais pessoas, menos carros: transformação do Minhocão, em São Paulo, em parque urbano é uma tendência entre cidades inteligentes. Foto: reprodução/Jaime Lerner Arquitetos Associados
Ou seja, uma cidade inteligente deve entender as dimensões urbana, econômica, social e de governança de forma integral para que seja digna de tal título, como acrescenta Josep Pique, ex-CEO do Distrito de Inovação 22@Barcelona — case mundial de transformação urbana. Ainda segundo ele, em cada uma delas é preciso identificar serviços ou programas que devem ser promovidos, como planejamento e infraestruturas, no que diz respeito ao urbanismo; ciência e mercado, no que se refere ao aspecto econômico; saúde, educação, segurança, no que envolve as questões sociais; e transparência e participação social, no que concerne à governança.
Josep Pique, ex-CEO da 22@Barcelona, foi um dos destaques entre os palestrantes da Smart City Expo Curitiba 2019, que aconteceu em março. Foto: Michel Willian/Gazeta do Povo
Josep Pique, ex-CEO da 22@Barcelona, foi um dos destaques entre os palestrantes da Smart City Expo Curitiba 2019, que aconteceu em março. Foto: Michel Willian/Gazeta do Povo

Critérios

Não é das tarefas mais fáceis identificar a partir de que momento uma cidade passa a ser considerada uma smart city, mesmo tendo como ponto central a tecnologia e suas diferentes formas de melhorar a qualidade de vida dos cidadãos. Isso porque não há uma lista de critérios aos quais ela deve responder ou uma quantidade mínima de soluções tecnológicas implementadas que sirvam de régua para identificá-las e distingui-las entre as demais.
“Esta é a resposta de um milhão de dólares. Desde os anos 1990, quando começaram a discutir este tema, muitos pesquisadores e consultorias vêm se debruçando sobre esta questão. Hoje há uns 20 modelos diferentes de avaliação de aspectos da vida urbana que estabelecem um score entre as cidades, mas nenhum deles afirma que uma cidade é mais ou menos inteligente em relação a outra. É até temerário que se faça isso. A inteligência tem várias faces e, se digo que uma cidade é inteligente, estou supondo que há cidades burras, e isso não existe”, explica Weiss.
Projeto do Bairro Novo da Caximba, em Curitiba, busca revitalizar áreas degradadas da cidade. Imagem: Ippuc/Divulgação
Projeto do Bairro Novo da Caximba, em Curitiba, busca revitalizar áreas degradadas da cidade. Imagem: Ippuc/Divulgação
Desta forma, na visão dele, mais do que a uma definição em si, a cidade inteligente está mais relacionada a um objetivo a ser alcançado. Ou seja, a conceitos que podem munir a cidade de direcionadores e facilitadores que levem a sociedade ao seu “melhor estágio de prosperidade”.
“O que quero dizer com isso? As pessoas hoje falam que uma cidade inteligente é a que está bem arborizada, tem rios limpos. Isso pode ser outra coisa, mas não uma cidade inteligente. Por definição de mais de 80 pesquisadores, a cidade inteligente é basicamente uma cidade tecnológica. Mas essa tecnologia não vai servir de nada se não for aplicada em benefício das pessoas e da melhoria da qualidade da cidade”, destaca o professor.

Fator humano

Assim, a relevância e o papel do componente humano são outro aspecto fundamental na definição de uma smart city, e está presente em diferentes escalas, envolvendo desde quem pensa até quem vive a cidade.
“Todo este arcabouço tecnológico é muito bem-vindo, mas ele não substitui, a priori, o que entendo como bom planejamento urbano. O ser humano ainda tem que ser capaz de perceber o ambiente e transformá-lo, usando a tecnologia como ferramenta, e não como fim. Ainda vejo que a solução está nas pessoas”, opina Débora Ciociola, arquiteta e urbanista do escritório Jaime Lerner Arquitetos Associados e sócia da Simplycidade Arquitetura e Urbanismo.
E de fato está! Afinal, muito além do que meras usuárias das soluções, são as pessoas quem têm a capacidade de identificar as necessidades, propor iniciativas, desenvolver algoritmos e inovar em prol da coletividade e da cidade. “[Então], as pessoas têm que ser capacitadas para que tenham essa sensibilidade, porque o que elas perguntarem quando olharem para a cidade (o que eu quero?; o que eu posso fazer para transformá-la em algo melhor?) é o que é mais importante. Para criarmos o futuro temos que saber fazer a pergunta certa”, acrescenta a arquiteta e urbanista.
Vale do Pinhão, região que congrega uma série de startups que buscam colocar Curitiba à frente da discussão sobre smart cities, é finalista no prêmio City Award, em Barcelona. Foto: divulgação/Agência Curitiba
Vale do Pinhão, região que congrega uma série de startups que buscam colocar Curitiba à frente da discussão sobre smart cities, é finalista no prêmio City Award, em Barcelona. Foto: divulgação/Agência Curitiba
Outro ponto que faz do fator humano a chave do sucesso de uma smart city é sua aptidão e disposição para fazer uso de todas as proposições e facilidades que a tecnologia pode oferecer — o que afeta inclusive o estilo de vida dos cidadãos. De que adiantaria, por exemplo, uma cidade que dispusesse de conexão à internet aberta a todos os moradores se grande parte deles não tivesse interesse, meios ou o conhecimento necessário para usufruir dela?
É o que defende Carlos Hardt, especialista em planejamento e gestão urbana e professor do departamento de Arquitetura e Urbanismo da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Para ele, a tecnologia não deve ser defendida meramente por ser nova, mas por efetivamente facilitar a vida dos cidadãos – ao mesmo tempo que não deve ser deixada de lado.
“Esse é um dilema na gestão urbana: será que o fato de colocar Wi-Fi na cidade vai ajudar a resolver os problemas?”, questiona. Para ele, é necessário investir nos dois lados ao mesmo tempo: oferecer ao usuário uma utilidade enquanto investe na sua qualidade de vida ‘offline’, permitindo que ele possa usufruir da estrutura. “A cidade só não deve deixar de se preocupar com outros problemas e, no lugar de uma coisa, fazer outra”.

Uso compartilhado

Outro exemplo citado por Pique refere-se à quebra que a digitalização traz ao paradigma do “ter”, transformando-o no de “compartilhar”. Ou seja, no sentido de que hoje, e a partir da tecnologia, não se faz mais necessário que as pessoas disponham de recursos permanentes, mas sim que possam compartilhar seu uso com aqueles que têm as mesmas necessidades.
A Yellow, empresa brasileira de soluções de mobilidade urbana individual, passa a oferecer o serviço de compartilhamento de bicicletas no sistema dockless (sem estação para retirada e devolução) e patinetes elétricos em Curitiba, disponíveis em regiões da cidade como a do Museu Oscar Niemeyer (MON). Foto: Cassiano Rosario/Gazeta do Povo
A Yellow, empresa brasileira de soluções de mobilidade urbana individual, passa a oferecer o serviço de compartilhamento de bicicletas no sistema dockless (sem estação para retirada e devolução) e patinetes elétricos em Curitiba, disponíveis em regiões da cidade como a do Museu Oscar Niemeyer (MON). Foto: Cassiano Rosario/Gazeta do Povo
“A digitalização nos permitirá inovar na forma como nos organizamos como sociedade, propondo novas maneiras de nos relacionarmos e compartilharmos. Sabemos, por exemplo, que a mobilidade passará por uma grande revolução. Não precisamos mais nos mover fisicamente (podemos fazê-lo virtualmente por meio de videoconferência) e, se precisarmos nos mover, podemos fazê-lo com sistemas de mobilidade compartilhados. Devemos estar abertos a experimentar e avaliar novas formas de resolver [estes, e outros] problemas do passado”, sintetiza.

Exemplos práticos

Iniciativas mundo afora têm feito das smart cities uma promessa de futuro, mas também uma realidade no presente. Um dos exemplos da aplicação vem de Londres, no Reino Unido. A Transport for London (TfL), empresa que gerencia o metrô da cidade, realizou no fim de 2016 um projeto piloto que analisou informações de passageiros que usaram as redes de Wi-Fi disponíveis nas estações.
A análise dos dados revelou, por exemplo, 18 rotas diferentes realizadas por passageiros entre as estações de King’s Cross St. Pancras e Waterloo — o que mostrou que muitos não usam a rota mais curta. Além de passar a propor rotas mais práticas para os passageiros, a empresa apresentou outros benefícios decorrentes da pesquisa. Entre eles, estão priorizar investimentos que melhoram pontos de congestionamento regulares e otimizar a logística de forma a evitar interrupções em linhas muito usadas ou aglomerações desnecessárias.
Londres investiu na otimização das rotas que os usuários do metrô mais faziam. Foto: divulgação/Transport for London
Londres investiu na otimização das rotas que os usuários do metrô mais faziam. Foto: divulgação/Transport for London
Já em Los Angeles, nos Estados Unidos, uma iniciativa da prefeitura decidiu juntar a iluminação pública à demanda por internet. A cidade trocou as lâmpadas de vapor de sódio que eram utilizadas nas ruas por outras, de LED, que consomem menos energia. Nisso, alguns postes ganharam uma função extra: aumentar a cobertura do sinal telefônico para celulares. Os smartpoles, como foram apelidados, levam tecnologia sem fio 4G LTE, que melhora o uso do sinal em celulares. A previsão para 2020 é de 500 “postes inteligentes” em funcionamento na cidade.
Um dos mestres em criar soluções criativas para cidades é Carlo Ratti, arquiteto e engenheiro à frente do Senseable City Lab do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, na sigla em inglês). Entre suas inovações, está a Dynamic Street, um novo tipo de pavimentação que está sendo desenvolvido em parceria com a empresa canadense Sidewalk Labs.
A Dynamic Street traz módulos hexagonais encaixados, permitindo que tenham diferentes usos durante o dia, de acordo com a necessidade do espaço público. Foto: Divulgação
A Dynamic Street traz módulos hexagonais encaixados, permitindo que tenham diferentes usos durante o dia, de acordo com a necessidade do espaço público. Foto: Divulgação
A proposta é que o pavimento tenha diferentes funções ao longo do dia, segundo a necessidade do espaço público. Ele funciona através de módulos hexagonais encaixados, que, sendo sensíveis a movimentos, se reconfiguram conforme o fluxo. Dessa maneira, uma faixa extra em uma rua movimentada durante o dia poderia se tornar uma calçada ou uma praça destinada a pedestres. O estudo, ainda em andamento, teve um protótipo em exposição durante o ano de 2018, instalado na sede da Sidewalk Labs, em Toronto.
Sede do Sidewalk Labs em Toronto, Canadá, com o protótipo da Dynamic Street implementado. Foto: divulgação
Sede do Sidewalk Labs em Toronto, Canadá, com o protótipo da Dynamic Street implementado. Foto: divulgação
Outra de suas ideias é o bar autônomo batizado Guido – “eu dirijo”, em italiano –, realizado junto da empresa de sistemas automatizados para bares Makr Shakr. O bar sobre rodas anda sozinho e possui dois braços mecânicos, responsáveis por preparar inúmeros tipos de drinks. Tudo é controlado via aplicativo: pagamento, verificação da idade do consumidor e condução do bar até o local desejado. Mais do que automatizar um serviço, a premissa do projeto é democratizar os bairros, já que as cidades tendem a concentrar no centro seus espaços de lazer.
O bar sobre rodas anda sozinho e possui braços mecânicos, responsáveis por preparar as bebidas. Foto: Divulgação
O bar sobre rodas anda sozinho e possui braços mecânicos, responsáveis por preparar as bebidas. Foto: Divulgação

No Brasil

O Brasil não fica atrás quando o assunto são as cidades inteligentes. Nos últimos dias 21 e 22 de março, Curitiba sediou pelo segundo ano consecutivo o Smart City Expo, versão brasileira do maior evento sobre cidades inteligentes do mundo.
Curitiba recebeu, em 2019, a segunda edição brasileira do maior congresso de cidades inteligentes do mundo: o Smart City Expo. Foto: Michel Willian/Gazeta do Povo
Curitiba recebeu, em 2019, a segunda edição brasileira do maior congresso de cidades inteligentes do mundo: o Smart City Expo. Foto: Michel Willian/Gazeta do Povo
Outra iniciativa, esta de cunho urbanístico, é o projeto de transformação do Minhocão — viaduto paulistano cujo nome oficial é Elevado Presidente João Goulart — em parque linear. A obra, anunciada pela Prefeitura de São Paulo com o objetivo de reconfigurar o centro da cidade, leva a assinatura do escritório Jaime Lerner Arquitetos Associados e é encabeçada pelo arquiteto Fernando Canalli.
Os 17,5 mil metros quadrados que antes eram destinados a automóveis agora serão apropriados pelos pedestres com áreas de permanência e espaços destinados a diferentes atividades públicas. A ideia é que, ao longo do tempo, o parque também receba teatros, shows e bares. A estimativa é de que o projeto seja finalizado em dezembro de 2020 e custe R$ 38 milhões.
A estimativa é de que reforma do Minhocão seja finalizada em dezembro de 2020 e custe R$ 38 milhões. Foto: reprodução/Jaime Lerner Arquitetos Associados
A estimativa é de que reforma do Minhocão seja finalizada em dezembro de 2020 e custe R$ 38 milhões. Foto: reprodução/Jaime Lerner Arquitetos Associados
Mas os planos de inovação em solo brasileiro não param por aí. No nordeste, a cidade de São Gonçalo do Amarante, localizada a 60 km de Fortaleza, no Ceará, acompanha a construção da Smart City Laguna, primeira cidade inteligente social do mundo e um dos exemplos mais representativos do conceito em território tupiniquim. Com 330 hectares e capacidade para cerca de 25 mil habitantes, quando as duas etapas da obra estiverem concluídas, a cidade parece resumir o conceito por trás do termo, fazendo uso da tecnologia para envolver, e melhorar, a vida das pessoas.
“Podemos falar em quatro pilares: planejamento urbano e arquitetura, tecnologia, meio ambiente e pessoas, e inclusão social. Eles formam a cidade inteligente social, que não é uma cidade pensada apenas em termos de tecnologia ou voltada à baixa renda. O social significa alto padrão de infraestrutura e de serviços ao alcance de todos. Melhorar a qualidade e baratear a vida nas cidades cuidando das pessoas”, explica Susanna Marchionni, co-fundadora e CEO Brasil da Planet Smart City, grupo italiano responsável pelo desenvolvimento do projeto.
Projeção mostra como ficará a Smart City Laguna quando estiver pronta. Essa será a primeira cidade inteligente social do mundo. Imagem: Divulgação
Projeção mostra como ficará a Smart City Laguna quando estiver pronta. Essa será a primeira cidade inteligente social do mundo. Imagem: Divulgação
Além das questões de planejamento urbano e infraestrutura, como calçadas e vias mais largas e iluminação LED, por exemplo, isso se dará, segundo ela, também pela oferta de espaços de lazer e cultura gratuitos e que poderão ser usufruídos sem que as pessoas precisem enfrentar grandes deslocamentos para isso. “Neste projeto, por exemplo, teremos biblioteca, cinema e cursos de inglês e de informática gratuitos para os moradores, [sendo que a equação] educação, arte e cultura resulta em mais segurança para todos”, avalia. “Uma smart city não resolve todos os problemas contemporâneos das cidades, mas ela pode mudar a qualidade de vida das pessoas”, completa.

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