Urbanismo

Sem dinheiro público, três iniciativas revolucionam as habitações sociais no Brasil

Aléxia Saraiva
23/04/2018 22:00
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Pintura das casas na comunidade A Favorita, em Araucária (PR). Foto: Flickr/Comunicação TETO PR

Condições precárias de moradia são realidade para 36 milhões das pessoas que vivem em áreas urbanas no país. Isso quer dizer que 38% dos habitantes de cidades grandes têm qualidade de vida com nível baixo, baixíssimo ou precário. Os números são resultados do estudo de tipologias intraurbanas publicado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em fevereiro de 2018, e contempla os espaços de diferenciação socioeconômica nas concentrações urbanas do Brasil.
E é na tentativa de mudar essa realidade que diferentes empresas têm surgido para impactar a situação de habitações de baixa renda, começando pelas próprias comunidades. Enquanto algumas delas apresentam como solução pacotes de reforma de casas que influenciam na economia local e cabem no orçamento dos moradores, outras buscam tornar as comunidades autônomas proporcionando ferramentas que levam a isso — incluindo, nessa conta, a construção de uma infraestrutura básica de qualidade.

Moradigna

Foto: Reprodução/Facebook Moradigna
Foto: Reprodução/Facebook Moradigna
Durante 20 anos, Matheus Cardoso morou no Jardim Pantanal, comunidade da Zona Leste de São Paulo vizinha ao Rio Tietê. A localização geográfica fez com que enchentes, agora já não tão frequentes, fossem uma realidade comum para os moradores. Quando tinha sete anos, um desses eventos marcou Matheus.
“Lembro da água entrando em casa e minha mãe pedindo desculpas para mim e para meu irmão. Isso me marcou em dois sentidos. Primeiro, achar que aquilo era uma normalidade, que se passa anualmente, e depois descobrir que não, que é uma situação errada e desumana“, ele conta.
Antes e depois de reforma de sala. Foto: divulgação
Antes e depois de reforma de sala. Foto: divulgação
Esse foi o início do Moradigna, empresa que promove reformas de residências em comunidades de baixa renda. Atualmente formado em engenharia civil e com mestrado em políticas públicas de habitação, Matheus fundou a empresa com mais dois sócios em 2014, quando tinha 19 anos.
A empresa possibilita as obras através de um pacote chamado Reforma Express, que inclui material, mão de obra, projeto e execução. Além disso, as obras duram cerca de cinco dias, têm garantia de um ano e têm diversas formas de pagamento. Tudo isso garante a viabilidade do pacote. “Uma reforma não planejada é 40% mais cara do que planejada”, explica Cardoso. O impacto social também faz parte da fórmula: toda a mão de obra utilizada vem das próprias comunidades e formam uma rede de colaboradores.
Reforma de banheiro realizada pela Moradigna. Foto: divulgação
Reforma de banheiro realizada pela Moradigna. Foto: divulgação
Nesses quase quatro anos, foram mais de 350 reformas realizadas, impactando mais de 1.500 pessoas. A primeira, conta o engenheiro, foi justamente na casa de sua mãe. “Eu nunca tive condições de largar tudo, tinha que trabalhar enquanto começava o Moradigna”, explica. “E para fazer a primeira reforma eu peguei o cartão de crédito da minha mãe emprestado sem ela saber. O primeiro pedreiro foi meu padrinho. A vizinha viu que o problema tinha sido resolvido e a partir daí foi 100% no boca a boca“.
Hoje, o Moradigna atende a Zona Leste de São Paulo. Uma expansão para outras regiões — inclusive outros estados — está sendo pensada para o início de 2019. Mesmo não tendo um modelo fechado para isso, Cardoso conta a proposta que mais gosta. “[A ideia é ter] unidades próprias em outros estados. Seria uma franquia popular, no sentido de capacitar pedreiros nas comunidades pra eles mesmos tocarem o Moradigna. É mais fácil tornar o pedreiro um empresário do que o contrário“.

Programa Vivenda

O Programa Vivenda surgiu, há quatro anos, com o objetivo de melhorar a qualidade de vida através da cura de patologias habitacionais — ou seja, problemas de saúde causados por problemas nas residências. Essas doenças vêm de problemas como mofo e infiltração. Para isso, os três sócios desenvolveram cinco modelos de kits de reforma que solucionam esses problemas com em média cinco dias de obra.
Os pacotes são divididos por cômodos — banheiro, cozinha, área de serviço, quarto e sala — e incluem serviços que vão de impermeabilização e conserto de vazamentos a aplicação de revestimentos. Além disso, a oferta envolve também o financiamento, a assistência técnica de arquitetos, material e mão de obra. “O que a gente oferece pro morador de baixa renda é a entrega de uma obra pronta sem dor de cabeça”, explica Fernando Assad, cofundador da empresa. Os serviços funcionam em duas comunidades da cidade de São Paulo: Jardim Ibirapuera e São Miguel Paulista.
Foto: divulgação/Programa Vivenda
Foto: divulgação/Programa Vivenda
Formado em administração, Assad conta que a empresa surgiu ao perceber o quanto patologias habitacionais impactavam os moradores. “A gente entendeu que não estava falando só de habitação, mas de saúde pública. Eu fui ver o que mais impactava a saúde e era isso: a falta de um banheiro adequado, de piso, iluminação, ventilação. A gente reforma para eliminar patologias e melhorar a qualidade de vida“, conta.
Tudo isso vai se multiplicar muito em breve. O Vivenda é a primeira empresa no Brasil a receber um debênture, forma de captação de recursos por título de dívida que angariou R$ 5 milhões por empresas investidoras e vai permitir que mais 8 mil famílias tenham suas casas reformadas. Até hoje, o programa realizou mais de 700 reformas, impactando mais de 2.500 pessoas e com mais de 5 mil m² de revestimentos instalados. Com os novos investimentos, Assad prevê que até o fim do ano a empresa já esteja debatendo modelos de expansão para novas comunidades.
Os três fundadores do Programa Vivenda: Os sócios Igiano Lima, Fernando Assad e Marcelo Coelho. Foto: divulgação/Programa Vivenda
Os três fundadores do Programa Vivenda: Os sócios Igiano Lima, Fernando Assad e Marcelo Coelho. Foto: divulgação/Programa Vivenda

TETO

Voluntários do TETO no Jardim Independência, comunidade de São José dos Pinhais. Foto: Flickr/Comunicação TETO PR
Voluntários do TETO no Jardim Independência, comunidade de São José dos Pinhais. Foto: Flickr/Comunicação TETO PR
Ao contrário do Programa Vivenda e do Moradigna, o TETO é uma organização internacional que trabalha para desenvolver a autonomia das comunidades através do protagonismo dos moradores. “A construção é somente uma ferramenta para atingir o nosso fim”. A frase é de Lucas Kogut, atual diretor diretor do TETO Brasil no Paraná. Portanto, toda a questão da infraestrutura é relevante e, engloba diversos outros projetos que vão além da construção de casas.
Criada no Chile, em 1997, o TETO já se expandiu para 19 países e está no Brasil há mais de uma década. No Paraná, chegou em 2015. Kogut explica que para que uma comunidade seja escolhida para ser ajudada, ela passa por uma série de etapas de seleção, que vai desde um mapeamento através de um software de geoprocessamento a um mutirão de visitas para conhecer o nível de precariedade da área.
Fase de logística na comunidade A Favorita, em Araucária. Foto: Flickr/Comunicação TETO PR
Fase de logística na comunidade A Favorita, em Araucária. Foto: Flickr/Comunicação TETO PR
Escolhida a comunidade, o primeiro passo é ouvir os moradores. “A gente faz um censo em 70% da comunidade, perguntando quais são seus principais problemas. Nesse levantamento surgem as demandas que vão formar o plano de ação anual“, explica o diretor. A partir daí, voluntários visitam os locais todo final de semana. São 150 pessoas em equipes fixas, divididas em 10 áreas de atuação. Uma vez com os projetos iniciados, o TETO fica no local até que a comunidade tenha desenvolvido as habilidades necessárias para se manter autonomamente.
Um exemplo de projeto foi uma iniciativa de captação de água na comunidade da Caximba, na zona sul de Curitiba. “Naquele momento, eles viram que era necessária uma alternativa pra fornecimento de água. Começaram a planejar um projeto e surgiu a ideia de captação de água da chuva pelo telhado da igreja”, conta Kogut.
Atualmente, a organização no Paraná atua em seis comunidades de forma permanente. São elas Caximba, Parolin, Portelinha, Vila Nova (Colombo), Favorita (Araucária) e Jardim Independência (São José dos Pinhais). A previsão é de que o CIC, Cidade Industrial de Curitiba, seja englobado pelo projeto ainda na metade de 2018. Até hoje, foram construídas 218 casas. Além de projetos de infraestrutura, outros serviços são ofertados à comunidade, como assessoria jurídica.
Em 7 e 8 de outubro de 2017, 21 casas foram construídas em conjunto com os moradores nas comunidades do Parolin e Caximba em Curitiba e região metropolitana. Foto: Flickr/Comunicação TETO PR
Em 7 e 8 de outubro de 2017, 21 casas foram construídas em conjunto com os moradores nas comunidades do Parolin e Caximba em Curitiba e região metropolitana. Foto: Flickr/Comunicação TETO PR
Grande parte da renda arrecadada pelo TETO para financiar as operações em campo vem da contribuição das chamadas “empresas amigas do TETO”, que contribuem com um valor mensal que varia entre R$ 500 e R$ 4 mil. Esse valor é posteriormente reinvestido nas comunidades, que também devem se mobilizar para custear parte dos trabalhos. “A gente financia até 60% [do custo total], para que seja um marco mobilizatório na comunidade”, complementa.
Kogut aponta ainda que o TETO Brasil no Paraná ainda está muito centrado na região de Curitiba por uma questão orçamentária, mas que há planos de mudar essa realidade. “Não temos um grande apoio pra garantir operação e viabilizar o fluxo de caixa no estado, mas o TETO Paraná não quer ser ‘TETO Curitiba'”, explica. “Com ajuda a gente consegue, sim, superar a situação de pobreza, que é o que a gente acredita”.

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