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Policiais sobre o Congresso Nacional em outubro de 1966. (Foto: Arquivo Nacional, Correio da Manhã)
Policiais sobre o Congresso Nacional em outubro de 1966. (Foto: Arquivo Nacional, Correio da Manhã)| Foto:

Todo mundo tem um amiguinho que passou a semana passada inteira, o fim de semana todo, ontem, hoje e provavelmente os próximos dias falando da ditadura, do golpe (sim, golpe!) militar de 1964, de tortura e de todas as outras coisas que envolvem esse período. Como se houvesse de fato um movimento organizado para trazer de volta o Regime das Botinas. Como se alguma pessoa em sã consciência estivesse de fato elogiando aquela estrovenga.

Ah, mas o presidente Jair Bolsonaro propôs celebrar o golpe, que ele chama de revolução, de movimento pacificador ou do que mais quiser chamar. Sim, é verdade. O presidente Jair Bolsonaro é uma dessas pessoas que, supostamente em sã consciência, admira um regime autoritário e estatizante que matou, torturou e censurou durante vinte e um longos anos. E cuja consequência mais nefasta foi justamente a consolidação de um Estado democraticamente opressor e interventor.

Mas nem essa visão histórica tola do Mandatário Maior justifica a indignação do amiguinho das redes sociais. Esse mesmo que acabou de postar um quadrado preto com os dizeres DITADURA NUNCA MAIS. Ou esse mesmo que fez um trocadilho com ditadura/ditamole. Esse mesmo que postou foto de Vladimir Herzog morto na cela. Esse mesmo.

O que motiva os amiguinhos a compartilharem sua indignação diante de uma improbabilíssima ditadura militar no Brasil é tão-somente a vontade de se mostrar um democrata “do bem”, do lado certo de uma disputa que só existe nessa Caverna de Platão 2.0 que são as redes sociais. E é também expressão de uma espécie de banzo de um tempo em que havia uma causa pela qual lutar, de quando os lados certo e errado eram aparentemente mais claros e definidos.

É a tal da sinalização da virtude de que fala Theodore Dalrymple num texto sublime sobre a reação das pessoas quando do desaparecimento da menina Madeleine McCann. Trata-se de uma espécie de compulsão contemporânea: não agir estoicamente como uma pessoa boa, na discrição elegante daqueles que são verdadeiramente virtuosos, e sim expor toda a sua visão mordaz e enciclopédica de um mal pretérito sobre o qual, sinto muito, você não tem qualquer ingerência.

Ah, mas a história precisa ser lembrada a fim de que os mesmos erros não se repitam – diz você abusando de mais um lugar-comum. Com o qual sou obrigado a concordar. Mas você e eu e toda a torcida do Flamengo sabemos que essa justificativa é apenas mais uma daquelas mentiras que contamos para nós mesmos só para ganharmos um like. Por trás de toda essa indignação histórica, desse clamor pela imposição de uma narrativa criada supostamente para reparar, desse ardor pela liberdade em retrospecto está a necessidade de se posicionar, num presente bem claro e específico, contra uma ameaça que, por enquanto, mais ladrou do que mordeu.

Em resumo, se você olhar bem de perto seu amiguinho não é contra a ditadura de 1964, contra tudo o que aconteceu no DOPS, contra as arbitrariedades de censores analfabetos, contra a truculência de qualquer PM na esquina de qualquer cidade contra qualquer um que parecesse subversivo. Seu amiguinho é contra a realidade que por ora se impõe – e se impõe democraticamente, por mais que não pareça. Por mais que cause nojinho – e como causa!

Ao reproduzir a indignação estéril da maioria, e mais uma vez recorrendo a Dalrymple, seu amiguinho se posiciona como um representante de uma elite emocional, moral e intelectual. Ah, que gostoso, não?

É difícil pensar num país minimamente relevante que, nos últimos cem anos, não tenha passado por alguma vergonha histórica como nossa Ditadura Militar. Veja só nosso vizinho, o Chile, que teve um estádio de futebol transformado em matadouro de dissidentes. Vá mais longe, até o Oriente, e veja os horrores que aconteceram no Camboja. Mais para o meio do mapa, veja a história recente do Iraque. E, claro, lembre-se do que aconteceu na Alemanha.

Nem por isso chilenos, cambojanos, iraquianos e alemães se mostram obcecados por seus passados. Ao contrário, o que une esses países é, de forma mais ou menos eficiente, o olhar para o futuro. Se o Chile tivesse ficado chafurdando nos arquivos sangrentos da ditadura de Pinochet não teria alcançado o patamar de país desenvolvido. Se os alemães tivessem ficado em posição fetal lamentando os erros de toda uma geração, não teriam se transformado na potência inequívoca que são hoje.

Isso serve não só para os virtuosos de ocasião como também para os ouvidos moucos de gente como Bolsonaro ou qualquer um que ainda se vanglorie dos feitos de um Estado assassino: chega de falar de 1964, o equivalente patriótico ao pior vexame ébrio que uma pessoa já deu na vida. Chega de usar vitimas como bandeiras políticas. Chega de bancar o herói em retrospecto.

Já está mais do que na hora de falarmos de 2064. Se é que nós, que nos consideramos sãos, chegaremos lá.

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