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7 exemplos de que estamos vivendo em 1984, o livro
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Pouco após a posse de Donald Trump, a editora Penguin anunciou que lançaria uma reimpressão de 1984 em língua inglesa. O motivo: as vendas nos Estados Unidos haviam aumentado 9.500% desde as eleições. Ambientada em um futuro distópico, a obra de George Orwell continua atual – e uma referência para entender os tempos que vivemos.

Publicado originalmente em 1949 (e retratado no então distante ano de 1984), o livro se tornou uma clássica metáfora para temas como regimes totalitários, a vigilância massiva sobre a população e a propaganda estatal. Para onde quer que se olhe, Orwell parece ter previsto nossa atualidade com precisão: smartphones em vez de teletelas, aplicativos que seguem cada passo no lugar do Grande Irmão, termos substituídos por eufemismos na linguagem cotidiana em uma espécie de Novafala, ameaça de guerra constante em escala mundial...

Abaixo, alguns exemplos de que o universo orwelliano tem se tornado cada vez mais concreto.

Teletelas: a tecnologia seguindo cada passo 

“A teletela recebia e transmitia simultaneamente. Todo som produzido por Winston que ultrapassasse o nível de um sussurro muito discreto seria captado por ela; mais: enquanto Winston permanecesse no campo de visão enquadrado pela placa de metal, além de ouvido também poderia ser visto. Claro, não havia como saber se você estava sendo observado num momento específico. Tentar adivinhar o sistema utilizado pela Polícia das Ideias para conectar-se a cada aparelho individual ou a frequência com que o fazia não passava de especulação. Era possível inclusive que ela controlasse todo mundo o tempo todo. Fosse como fosse, uma coisa era certa: tinha meios de conectar-se a seu aparelho sempre que quisesse. Você era obrigado a viver – e vivia, em decorrência do hábito transformado em instinto – acreditando que todo som que fizesse seria ouvido e, se a escuridão não fosse completa, todo movimento examinado meticulosamente”. 

Em 1984, as teletelas funcionavam como um duplo instrumento de controle. Por um lado, serviam para difundir constantemente a propaganda do regime, e não podiam ser desligadas – só ter seu volume reduzido. Por outro, eram instrumentos de vigilância. Hoje, não há como fugir de ter seus passos registrados constantemente – embora não necessariamente pelo governo.

Nas ruas, câmeras de segurança são capazes de reconstituir com precisão quase todos os passos que damos, e as imagens podem ser requisitadas pelas autoridades quando necessário. Para os demais momentos do dia a dia, os smartphones tratam de complementar a tarefa: aplicativos como o Facebook monitoram não apenas a localização do usuário a todo instante, mas também sua voz e aquilo que é dito, catalogando as curtidas e comentários e utilizando os dados para direcionar anúncios e montar uma timeline mais próxima dos seus interesses.

A possibilidade de empresas ou governos invadirem seus dispositivos gera preocupação até mesmo naqueles responsáveis por parte dessa vigilância: Mark Zuckerberg, fundador do Facebook, já foi visto com a câmera de seu notebook coberta para dificultar uma eventual espionagem. E a tecnologia ainda não chegou ao seu limite: já há alguns anos, o Google vem desenvolvendo um software para o Android capaz de usar os microfones do celular para mapear em 3D o ambiente no qual a pessoa está.

O Grande Irmão: vigilância estatal a qualquer momento 

 “Em todos os patamares, diante da porta do elevador, o pôster com o roto enorme fitava-o da parede. Era uma dessas pinturas realizadas de modo a que os olhos o acompanhem sempre que você se move. O GRANDE IRMÃO ESTÁ DE OLHO EM VOCÊ, dizia o letreiro, embaixo”. 

Outra faceta da teletela era a presença, no imaginário da população, do Grande Irmão. Ele estava sempre de olho, lembravam as paredes da cidade. Ninguém sabia quando, exatamente, o Grande Irmão poderia estar dedicando sua atenção exclusiva a você, mas não havia dúvidas: ele poderia fazê-lo a qualquer momento. Se hoje grande parte do controle cotidiano é feito por empresas, isso não significa que os governos estejam muito atrás.

Desde que Edward Snowden revelou os segredos da vigilância norte-americana em 2013, uma das mais assustadoras previsões orwellianas se confirmou: através da Agência de Segurança Nacional (NSA, na sigla em inglês), o governo dos EUA tinha capacidade de monitorar massivamente os e-mails e telefonemas de todos os seus cidadãos – e até mesmo de estrangeiros que utilizassem os serviços de companhias norte-americanas. O argumento era a prevenção ao terrorismo mas, na prática, não havia qualquer comprovação de que os dados obtidos não tivessem sido utilizados de outra forma, para buscar criminosos comuns ou em espionagem internacional.

Mais recentemente, em março deste ano, o WikiLeaks revelou documentos da CIA e do MI5 (serviço de segurança interna britânico) que indicariam a existência de um programa de vigilância ainda mais amplo: as agências já teriam tecnologia capaz de invadir televisores com acesso à internet, como as smart TVs da Samsung, e utilizá-las como microfones para gravar conversas. Em tese, pessoas comuns não teriam razões para se assustar. Mas, como em 1984, o temor não é que o governo esteja vigiando em todos os momentos – e, sim, sua capacidade de observar a qualquer momento.

Dois Minutos de Ódio: linchamentos virtuais diários 

“Pouco depois um guincho pavoroso, estridente, como o som produzido por alguma máquina monstruosa girando sem lubrificação, escapou da vasta teletela posicionada do fundo da sala. Era um barulho que mexia com os nervos da pessoa e arrepiava os cabelos da nuca. O Ódio havia começado. [...] A programação de Dois Minutos de Ódio variava todos os dias, mas o principal personagem era sempre Goldstein. Ele era o traidor original, o primeiro conspurcador da pureza do Partido”. 

Na Oceânia, os Dois Minutos de Ódio eram uma maneira de a população descarregar as suas frustrações e, ao mesmo tempo, seguir atuando de acordo com aquilo que o Estado previa. Era um momento em que toda a racionalidade era deixada de lado, quando os insultos se tornavam virulentos e a pessoa em questão – geralmente Emmanuel Goldstein, apresentado como um dissidente do Partido – deveria ser alvo dos mais profundos desprezos.

Hoje, há um espaço em que a raiva surge de repente e até dura mais que dois minutos, mas em pouco tempo passa para um próximo alvo: as redes sociais. Em um dia, os textões e os emojis de vômito são para criticar alguma canção de Chico Buarque considerada machista. No outro, uma enorme indignação paira sobre a cantora Inês Brasil, após postar uma fotografia ao lado de Jair Bolsonaro. Raramente importam as retratações dos envolvidos, e muitas vezes os alvos são anônimos: um passo em falso e o linchamento virtual pode deixar de lado todo o diálogo e a racionalidade – todos se tornam Goldsteins em potencial.

Os ataques on-line também remetem a outro aspecto de 1984, a Polícia das Ideias. Responsável por vigiar e reprimir quaisquer pensamentos pessoais e políticos que não se adequassem ao que era considerado “correto”, ela gerava uma autocensura nos indivíduos, temerosos de serem pegos falando algo inaceitável.

Novafala: os exageros do politicamente correto 

“O objetivo da Novafala não era somente fornecer um meio de expressão compatível com a visão de mundo e os hábitos mentais dos adeptos do Socing [Socialismo Inglês, a ideologia do Partido no livro], mas também inviabilizar todas as outras formas de pensamento. A ideia era que, uma vez definitivamente adotada a Novafala e esquecida a Velhafala, um pensamento herege – isto é, um pensamento que divergisse dos princípios do Socing – fosse literalmente impensável, ao menos na medida em que pensamentos dependem de palavras para ser formulados”. 

A Novafala buscava simplificar a língua inglesa de modo a promover uma hegemonia de pensamento que atuava de diferentes maneiras: por um lado, permitia ao Partido controlar mais facilmente o que a população dizia; por outro, reduzia o vocabulário e a possibilidade de verbalizar o pensamento a tal ponto que acabava por inviabilizar a formação de quaisquer ideias dissidentes. Não era uma tarefa fácil: no livro, é um dos poucos mecanismos de controle que ainda não funciona inteiramente – na história ambientada em um 1984 fictício, a expectativa das autoridades era que apenas em 2050 a Novafala fosse totalmente adotada.

No mundo atual, nenhum projeto chega a ser tão ambicioso, mas algumas formas de cercear e “renovar” as maneiras tradicionais de falar podem ser observadas: a valorização de eufemismos e o uso de termos que transformam o sentido original das palavras. Em nível empresarial, “empregados” tornam-se “colaboradores”, e o “gasto” em determinada compra pode ser anunciado como um “investimento”.

Em nível governamental, já tivemos iniciativas como o livro Politicamente Correto & Direitos Humanos (conhecido como “Cartilha do Politicamente Correto”) proposto pelo governo Lula em 2004 e amplamente criticado, que recomendava a não-utilização de termos supostamente pejorativos – até mesmo palavras como “anão”, “barbeiro” ou “funcionário público”.

Duplipensamento 

“Duplipensamento significa a capacidade de abrigar simultaneamente na cabeça duas crenças contraditórias e acreditar em ambas. O intelectual do Partido sabe em que direção suas memórias precisam ser alteradas; em consequência, sabe que está manipulando a realidade; mas, graças ao exercício do duplipensamento, ele também se convence de que a realidade não está sendo violada”. 

O duplipensamento aparece constantemente em 1984, nas diferentes contradições que sustentam a ideologia do governo: Ignorância é Força, Liberdade é Escravidão, etc. Não se trata de um conceito novo: Orwell inspirou-se na dicotomia dos discursos de Stalin, que via como o grande objetivo soviético, contraditoriamente, a superação do Estado e a criação de um Estado forte por uma ditadura do proletariado.

Desde então, muitos regimes ditatoriais fizeram uso de uma linguagem parecida: os governos militares latino-americanos, por exemplo, diziam que a repressão política e a suspensão de liberdades individuais eram necessários para evitar a ascensão de um regime antidemocrático. Atualmente, a Venezuela é um caso parecido: ao mesmo tempo em que o governo vem reprimindo protestos e a oposição com medidas típicas de uma ditadura, muitos apoiadores de Nicolás Maduro apontam para os resultados das eleições e insistem que defender o governo é estar ao lado da democracia.

Ministério da Verdade: “fake news” e “fatos alternativos” 

 “O Ministério da Verdade – Miniver, em Novafala – era extraordinariamente diferente de todos os outros objetos à vista. Era uma enorme estrutura piramidal de concreto branco cintilante, erguendo-se, terraço após terraço, trezentos metros espaço acima. Do lugar onde Winston estava mal dava para ler, escarvados na parede branca em letras elegantes, os três slogans do Partido: 

GUERRA É PAZ 

LIBERDADE É ESCRAVIDÃO 

IGNORÂNCIA É FORÇA” 

Em 1984, o Ministério da Verdade era a organização nominalmente responsável pela difusão de notícias, entretenimento, pela educação e pelas belas-artes – na prática, esses eram diferentes lados de uma mesma função: o “Miniver” lidava com a propaganda estatal. Winston Smith, o protagonista do livro, chega a ponderar: o poder do Ministério era tão grande que, se um dia fosse decretado que dois mais dois é igual a cinco, talvez a população fosse capaz de aceitar aquilo como um fato.

O controle da realidade por parte do Estado não é exatamente uma novidade e já era algo bem conhecido no momento em que Orwell escreveu o livro, quando as experiências nazistas, fascistas e socialistas já haviam sido vividas pela Europa. Mas, no mundo atual, até mesmo os países democráticos parecem lidar com versões cada vez mais palpáveis de um Ministério da Verdade que tenta ignorar os fatos inconvenientes e promover versões alternativas e inverídicas. Desde que Donald Trump chegou ao poder nos EUA, muitos opositores apontam que sua retórica tem muito de Miniver: ao acusar a imprensa crítica de difundir “fake news”, Trump também leva adiante sua própria versão da realidade, que já foi chamada por assessores de “fatos alternativos” – nem sempre comprovados pelas evidências.

O primeiro ato de Trump a causar espanto nesse sentido ocorreu ainda na primeira semana de governo, quando o presidente e seus assessores insistiram que o público presente na cerimônia de posse havia sido o maior da história em um evento do tipo – algo que não se confirmava ao comparar as imagens de sua inauguração presidencial com as anteriores, como a de Barack Obama em 2008. Conhecido por difundir teorias da conspiração em seu Twitter – como a de que o aquecimento global é uma invenção chinesa para prejudicar a economia dos EUA, ou a de que Obama não nasceu em solo americano –, Trump conta com milhões de seguidores que reproduzem sua versão da “verdade”, e chega a fazer pensar: se algum dia tuitar que dois e dois fazem cinco, talvez haja quem concorde.

Ministério da Paz e a guerra perpétua 

“A Oceânia estava em guerra com a Eurásia: em consequência, a Oceânia sempre estivera e guerra com a Eurásia. O inimigo do momento sempre representava o mal absoluto, com o resultado óbvio de que todo e qualquer acordo passado ou futuro com ele era impossível”. 

Um dos argumentos mais utilizados pelo Partido em 1984 era o da existência de uma guerra perpétua ameaçando o país, no caso, a Oceânia. Nem sempre o inimigo anunciado era o mesmo, e o conflito sempre se passava em algum ponto vagamente abstrato no imaginário popular, longe demais da vida cotidiana. De certeza, apenas, que a guerra era necessária para a manutenção da paz e segurança (“Guerra é Paz”, dizia um dos slogans do Partido), e que ela nunca tinha um fim.

Nos EUA, Barack Obama chegou à presidência com um discurso que prometia pôr fim ao envolvimento norte-americano nos conflitos do Oriente Médio. Suas falas prometendo esperança, prosperidade e pacificação renderam uma honraria tão inesperada quanto criticada pela comunidade internacional: ainda em seu primeiro ano de governo, quando não havia cumprido qualquer promessa nesse sentido, Obama ganhou o Prêmio Nobel da Paz. A condecoração tornou-se cada vez mais irônica conforme os oito anos de sua gestão foram passando: exaltado por seu discurso de paz, Obama não viveu um único dia de seu governo sem que os EUA estivessem envolvidos em alguma guerra.

Como em 1984, os conflitos eram sempre distantes e abstratos: em muitos casos, nem mesmo com envolvimento direto de soldados – Obama tornou-se notório por ser o primeiro presidente a contar com a tecnologia para empregar ataques massivos empregando drones. Apesar de alguns avanços na retirada de soldados, o ex-presidente nunca concluiu o projeto de encerrar definitivamente os conflitos no Oriente Médio. A guerra, afinal, continuava sendo apresentada como uma necessidade para garantir a paz futura. A ameaça infinita da guerra nunca deixa de estar presente no imaginário americano, mesmo que o adversário mude: foi a União Soviética na Guerra Fria, o Oriente Médio após o 11 de setembro, e cada vez mais vem se tornando a Coreia do Norte.

(Os trechos citados do livro foram retirados da edição brasileira de 1984 publicada pela Companhia das Letras em 2009, com tradução de Alexandre Hubner e Heloisa Jahn)

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