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Piers Corbyn, irmão do político marxista inglês Jeremy Corbyn, é um dos maiores nomes do movimento antivacina no Reino Unido
Piers Corbyn, irmão do político marxista inglês Jeremy Corbyn, é um dos maiores nomes do movimento antivacina no Reino Unido| Foto: Divulgação/Channel 4

“Uma nova verdade científica não triunfa pelo convencimento de seus oponentes”, disse em sua 'Autobiografia Científica' (1950) o físico Max Planck, “é raro acontecer de Saulo se tornar Paulo. O que de fato acontece é que os seus oponentes gradualmente saem de cena pela morte”. Essa visão trágica do progresso científico, que assim aconteceria um funeral por vez, felizmente não é verdade para todos os envolvidos. Mas parece ser verdade para pessoas como Andrew Wakefield, retratado em detalhes no documentário 'A Conspiração Antivacina', no catálogo da HBO Max Brasil, originalmente do britânico Channel 4. O filme, de pouco mais de uma hora, é um documento importante e bem-produzido sobre os efeitos de crenças sem base a respeito das vacinas.

Wakefield, 65, é um ex-médico britânico que alegou, em um artigo publicado em 1998 pela revista The Lancet, que a vacina tríplice viral (para sarampo, caxumba e rubéola) causaria autismo nas crianças, pela via de uma inflamação intestinal. Tentativas de repetir os achados de Wakefield falharam. O Conselho Geral Médico britânico cassou a licença de Wakefield em 2010, após conduzir um inquérito e concluir que ele cometeu uma série de negligências, incluindo maus tratos a crianças com deficiência.

Investigações jornalísticas também revelaram que ele tinha conflito de interesses: se sua hipótese fosse aceita, ele lucraria milhões de dólares anualmente com um teste. No mesmo ano de 2010, a Lancet removeu o artigo. Nada disso serviu para convencer Wakefield a pelo menos tentar refazer o seu estudo. Em vez disso, como mostra o documentário, ele se mudou para os Estados Unidos e fez parceria com praticantes de “medicina alternativa”, e agora é um ativista antivacina em tempo integral. Mora na Flórida, onde tem boa vida.

Nos Estados Unidos, o fundador do movimento antivacinas encontrou apoiadores endinheirados, incluindo uma herdeira da fortuna da farmacêutica Johnson & Johnson. Celebridades como Jim Carrey e Robert DeNiro começaram a levantar dúvida sobre a segurança das vacinas. Donald Trump deu ouvidos a Wakefield, mas o movimento sempre transcendeu as barreiras políticas: um dos antivax mais atuantes no Reino Unido hoje, por exemplo, é Piers Corbyn, irmão mais velho de Jeremy Corbyn, que durante uma temporada recente na liderança do partido Trabalhista tentou aproximá-lo do socialismo marxista.

Os efeitos da popularização da rejeição às vacinas logo começaram a aparecer. Surtos de sarampo e caxumba começaram a voltar, inclusive nas comunidades ao redor das melhores universidades americanas. Elites naturebas progressistas estavam parando de vacinar seus filhos. A pandemia trouxe uma grande oportunidade para o movimento antivax. Em 2020, quando foram anunciadas vacinas de alta eficácia da Moderna, Pfizer e Janssen, os antivax em geral e Wakefield em particular já “sabiam”, antes de olhar qualquer dado, que seriam um "embuste", quando não alegavam que o novo coronavírus e a pandemia eram invenções.

O documentário mostra que o que os antivax têm a seu favor é uma mera coincidência: o mesmo período em que a tríplice viral é administrada, dos 18 meses a dois anos de idade, é quando as crianças que têm autismo começam a dar sinais de seu neurodesenvolvimento diferenciado. O autismo hoje é explicado na maior parte por variantes genéticas comuns em combinações raras e variantes genéticas raras. Com base na pesquisa com outras características complexas, como a altura, a perspectiva é que a parte inexplicada seja esclarecida, em parte também em variantes raras ainda não conhecidas.

A parte mais chocante do filme são as “terapias alternativas” para autismo que ocorrem entre os antivax. A pior delas é chamada por um de seus fabricantes de “Solução Mineral Milagrosa”. Na verdade, é uma solução de água sanitária. Esses pais administram água sanitária para suas crianças por via oral ou anal. Em contato com a mucosa, a água sanitária a transforma em sabão. A criança então expele tecido morto da luz intestinal, que é tratado como um sinal de que a criança está sendo purgada das toxinas das vacinas e curada do autismo. Sem dúvida, uma grande ignorância e preconceito contra o espectro do autismo acompanha essas intervenções e a crença de que a “culpa” é das vacinas.

Onde o documentário poderia ganhar mais nuance

A Conspiração Antivacina é um ótimo filme para apresentar ao público os perigos do movimento iniciado por Wakefield e da formação de crenças de forma irracional. Famílias são rompidas, vidas são perdidas, recursos são desperdiçados.

Há partes em que o documentário poderia ter sido mais nuançado. Por exemplo, as vacinas tradicionais são tratadas como a mesma coisa que as novas vacinas de mRNA. Mas há um importante debate semântico a respeito disso. Alguns propõem que os produtos de mRNA da Moderna e da Pfizer não são vacinas, mas terapia gênica.

Nenhuma das duas coisas é óbvia à primeira vista. Já que vacina consiste em apresentar uma versão enfraquecida do patógeno ao sistema imune, apresentar uma única molécula do patógeno pode ser essa versão enfraquecida, então esses produtos seriam vacinas. Mas essa molécula, a proteína S, não é apresentada diretamente, mas fabricada pelas nossas próprias células a partir da instrução do mRNA, o que lembra algum tipo de terapia gênica. Há alguma plausibilidade aí, mas poderia ser forçada.

A função de uma terapia gênica é prover alívio para alguma insuficiência provocada por mutações ou outros defeitos genéticos. Pode ser que se desenvolva terapia gênica cujo tratamento é administração do mRNA, mas isso seria um subconjunto. Haveria terapia gênica de outros tipos: baseada em iRNA (RNA de interferência), por exemplo, e baseada em modificar o DNA, o que não é o caso dos produtos da Pfizer e da Moderna. Então chamá-los de terapia gênica é como chamar cidade de vila: às vezes é, às vezes não é.

Mais importante que a semântica é o fato de que ainda estão em aberto questões a respeito das vacinas de mRNA como a miocardite em homens jovens, que ainda não podemos afirmar com certeza se é mesmo menos preocupante que a própria COVID-19. Se alguns espectadores interpretarem o documentário como se endossasse que toda preocupação com efeitos colaterais é igual ao dogmatismo inconsequente do Wakefield, isso seria um problema.

O documentário não faz esforço em dissipar essa má interpretação, e não traça distinção entre preocupações liberais legítimas com o autoritarismo sanitário e o movimento antivacinas. O único que parece preocupado com liberdade no documentário é Wakefield, falando por um telão na Trafalgar Square em Londres. É preciso mostrar que a defesa da liberdade não é inimiga da vacinação, e nisso o filme falha.

Nos últimos dez minutos, especialmente, o documentário conta que os negros americanos são especialmente propensos a recusar as vacinas e aceitar a mensagem dos antivax por serem uma minoria que desconfia do governo. Como sabem todos os que acompanharam política americana durante a pandemia, um dos maiores responsáveis por inflar essa desconfiança foi o movimento Black Lives Matter e seus apoiadores na academia, na grande mídia e nas artes, que fazem sensacionalismo com casos não representativos de encontros da polícia com a população negra do país para confirmar os dogmas da ideologia identitária.

Não que não haja motivos para desconfiar das autoridades, e, em especial, das farmacêuticas, cuja ficha suja não é tocada no documentário. Nem todas as crenças absurdas dos antivax são completamente destituídas de alguma correspondência longínqua com a realidade. Apesar desses problemas, o documentário vale a pena.

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