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A crença de que o mérito não existe causa danos à ideia de justiça e transforma todos, antes sujeitos e agentes, em objetos e vetores. (Imagem: Pixabay)
A crença de que o mérito não existe causa danos à ideia de justiça e transforma todos, antes sujeitos e agentes, em objetos e vetores. (Imagem: Pixabay)| Foto:

Umas poucas palavras são capazes de expressar, ou deixar implícito, muita coisa. Eis aqui, por exemplo, uma frase de uma crítica que apareceu no Guardian sobre um livro intitulado 'Scroungers' [Aproveitadores], de James Morrison, uma polêmica contra a ideia de que a irresponsabilidade, a preguiça, os maus costumes e características culturais danosas possa ter qualquer efeito sobre o destino daqueles que vivem na base da hierarquia social nas sociedades modernas. Como diz o crítico, o autor do livro “defende que, ao focar sua atenção em subgrupos notadamente dignos de mérito, como os idosos, jornalistas bem-intencionados sem querer internalizaram uma mentalidade que privilegia os ‘meritórios’ em relação aos que ‘não têm mérito’”.

Por que “meritórios”, com aspas, em vez de meritórios, sem, e “não têm mérito”, com aspas, em vez de não têm mérito, também sem? A implicação das aspas aqui é clara: do ponto de vista do crítico, tais categorias são inválidas – a humanidade toda seria igualmente meritória simplesmente por ser capaz de respirar.

Essa crença de que o mérito não existe é desumanizadora em suas implicações. Ela causa danos à ideia de justiça e transforma todos, antes sujeitos e agentes, em objetos e vetores. Isso promove o mau comportamento: quando a atenção e a ajuda são alocadas com base na necessidade, sem levar em conta o mérito, os que se comportam mal podem, portanto, se tornar os mais necessitados e, assim, acabar recebendo mais atenção e ajuda. Ao longo do processo, os que têm mais mérito são negligenciados.

Os que tentam expurgar a ideia de mérito de suas mentes acabam por expurgar também a compaixão. Afinal, para aqueles que não são santos – isto é, para a grande maioria – é simplesmente impossível expressar compaixão em igual medida por todas as pessoas, independentemente de como elas se comportam, tenham elas bons modos, por um lado, ou um comportamento agressivo e ofensivo, por outro.

A demanda de que a comiseração deveria ser igualitária endurece o coração, como se observa facilmente em qualquer repartição pública onde a ajuda é dada de acorda com a necessidade, sem referência ao mérito. Além disso, o que é dado como direito, e não por mérito, raramente é recebido com gratidão, e sim com uma má vontade queixosa, como se fosse até inadequado.

Claro que a ideia de merecimento pode levar à crueldade em casos em que se aplica um padrão moral rígido demais. Jamais esquecerei que, num hospital psiquiátrico onde trabalhei, havia mulheres que tinham sido internadas há sessenta anos, apenas porque tinham dado à luz crianças geradas fora do casamento. Desde então, elas se habituaram tanto ao internamento que não eram mais capazes de viver em outro lugar. Além disso, os filhos dessas mulheres provavelmente passaram ao menos seus primeiros anos vivendo com um estigma, como se fossem culpados pela própria situação.

A avaliação do mérito deveria sempre ser feita com compreensão, mas não a ponto de se abdicar da avaliação em si. Na verdade, exigir que pessoas não devessem fazer tal avaliação é exigir o impossível. O próprio crítico do Guardian que diz duvidar da validade da categoria de mérito escreveu naquela mesma frase sobre “subgrupos notadamente dignos de mérito como os idosos”. Dignos de mérito em comparação ao que e a quem? Claro que só pode ser em comparação com os indignos ou menos dignos, não é?

Tradução de Paulo Polzonoff Jr.

©2019 City Journal. Publicado com permissão. Original em inglês.

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