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Congresso Nacional: a história da Democracia é em grande parte a saga de uma desmoralização anunciada
Congresso Nacional: a história da Democracia é em grande parte a saga de uma desmoralização anunciada| Foto: Pixabay

Se você ainda acredita que o elogio dos “avanços tecnológicos” é um imperativo moderno, está mais do que na hora de atualizar suas configurações de avanço e de tecnologia. Aliás, perdoe-me estragar a festa: no século IV a.C., o genial Aristóteles já advertia, em sua Política: “Quando as ferramentas trabalharem sozinhas, os senhores não precisarão mais de escravos — e o escravo desaparecerá”.

É natural que o vínculo entre liberdade e tecnologia aponte para a Antiguidade grega. Afinal, foi ali que brotou a ideia matricial de Democracia, que hoje (mais do que em outras épocas) é a pedra de toque de toda discussão política minimamente promissora. De um jeito ou de outro, a maioria das palavras desse campo semântico aponta inexoravelmente para ela. O problema — alerta de non sequitur! — é que isso também coloca num mesmo balaio um bocado de gatos de raças diferentes. Trocando em miúdos: democracia e liberdade podem até andar juntas, mas é bom ter cautela na hora de as convidar para a mesma mesa.

Na verdade, a história da Democracia é em grande parte a saga de uma desmoralização anunciada. Mas, uma vez mais, engana-se quem pensa que o estrago essencial é obra recente. Que tal visitarmos os gregos?

No princípio, era mesmo a Grécia...

Num giro rápido capaz de espremer 25 séculos em poucas linhas, podemos dizer que de fato, como reza a lenda, a ideia e a palavra democracia surgiram na Antiguidade clássica, na cidade-estado de Atenas. E, sim: desde seus inícios, o conceito designa o tipo de administração em que o povo “toma as rédeas” de seus destinos e interesses, mediante reuniões em praças públicas que decantam (nos dois sentidos) a suposta vontade da maioria, elevada idealmente no comando para então decidir por todos. Nossa súmula histórica indica também que o termo caiu em desuso na Idade Média,  só voltando a renascer das sombras por volta do século XVIII, durante as revoluções burguesas que eclodiram no ocidente (a Francesa e a Inglesa, para citar as mais notórias). Por fim, no século XX, voltou a despertar interesse, sobretudo a partir da década de 1950, mas dessa vez num cenário de terra arrasada após duas Grandes Guerras e uns tantos conflitos violentos e pontuais.

A cada passo, o ponto frágil deste ídolo de barro parece sempre o mesmo: as proverbiais maiorias de que falam os livros nunca foram lá tão “maiores”. Mesmo no âmbito das cidades-estado gregas, a ideia não correspondia ao que os dicionários definem:

Maioria, s. f., Segmento de um conjunto maior que reúne a maior quantidade de elementos; o maior número; pluralidade.”

Em Atenas, por exemplo, a “maioria” capacitada a governar se limitava aos chamados cidadãos. Ou seja: apenas homens livres e maiores de 18 anos que tivessem propriedades e fossem gregos naturalizados podiam opinar nas assembleias ou atuar na vida política. Ficavam automaticamente excluídos as mulheres e as crianças, os estrangeiros e os escravos. E de lá para cá, nada mudou tanto assim. Ainda hoje, não se pode afirmar de forma irrestrita que a Democracia é o governo de todos. A rigor, talvez nem mesmo da “maioria”.

Ao longo dos tempos, mesmo no plano conceitual (que costuma anteceder e antecipar a ação concreta), a Boa Nova democrática nunca desfrutou de opiniões unânimes e lisonjeiras. Já na alvorada da civilização, o historiador grego Políbio (203 a.C.-120 a.C.) foi pioneiro em apontar o perigo que lhe parecia implícito nessa forma de governo. A páginas tantas de seu clássico 'Histórias', ele cunhou o conceito de Oclocracia, para nomear aquilo que considerava uma variante "mórbida” ou “patológica" do governo popular. Do grego transliterado okhlokratia (literalmente, “governo da turba”), o neologismo de Políbio tem servido desde então para definir também as formas de abuso que se instalam num governo “democrático”, quando a multidão se assenhora dos negócios públicos, a ponto de intimidar as autoridade legítimas. Em breve síntese: oclocracia é a ausência (ou “falência múltipla”) do processo democrático. Desde então, a ideia original nunca mais foi a mesma.

Se a imagem que lhe vem à mente é a da Revolução Francesa, com suas hordas violentas e sanguinárias, você acertou em cheio, caro leitor. Aquilo que o historiador grego vislumbrou como redutio ad absurdum do ideal democrático acabou saltando para as ruas e vielas francesas, num pesadelo em plena luz do dia. Em seus ouvidos, ecoavam por certo as ideias delirantes de um Jean-Jacques Rousseau, que com sua leviandade costumeira repetia, na contramão das próprias atitudes nada exemplares: “Se houvesse um povo de deuses, esse povo se governaria democraticamente”. Foi por certo a pretensa superioridade de deuses do Olimpo que acabou por justificar o morticínio torrencial daqueles loucos anos. O resto é História — e muitos cadáveres, e uma confusão irreparável.

Vale insistir: no plano das ideias — da chamada “vida por escrito” —, o elogio rasgado da Democracia pode ter sido até intenso e extenso, mas nunca foi feito (nem levado) muito a sério. No geral, limitou-se aos arroubos histriônicos, misturando exagero e comicidade. Por exemplo: o sempre espetaculoso presidente Lincoln (que por ironia poética seria assassinado num teatro) deve ter lançado um olhar discreto ao redor para conferir o efeito de suas célebres palavras: “A democracia é um governo do povo, para o povo e pelo povo”.

Em qualquer antologia de citações sobre o tema, sempre haverá destaque para um Churchill, com seu sarcasmo de ribalta, a entoar que a democracia é “a pior forma de governo, com exceção de todas as outras experimentadas de tempos em tempos pelos homens”. Aliás, apesar de moderados nos hábitos, os ingleses nunca economizaram veneno na hora do “elogio” da Democracia. Lorde Byron, por exemplo, o expoente do movimento romântico, revelou-se ao mesmo tempo realista e imaginoso: “O diabo foi o primeiro democrata”. E, sem sair ainda das fronteiras britânicas, o pensador liberal Thomas Macaulay expressou desconfiança bem semelhante: “Faz tempo que estou convencido de que, mais cedo ou mais tarde, as instituições puramente democráticas vão destruir a liberdade ou a civilização — ou quem sabe as duas”.

Franceses também não deixaram por menos. O escritor Georges Bernanos que o diga: “A democracia não é o oposto da ditadura: é sua causa”. (Basta ver como a noção de direitos humanos impõe agora às pessoas novas formas tirânicas de controle do comportamento: Bernanos estava dizendo mais do que um mero jogo de palavras.) E haveria ainda Alex de Tocqueville, autor não de uma ou duas frases, mas de livros inteiros sobre o assunto — em especial, 'Da Democracia na América' e 'O Antigo Regime e a Revolução', mostrando como os ideais democráticos não eram solução, mas faziam parte do problema.

Do lado de cá do Atlântico, a Democracia não se saiu melhor. O estadista americano Benjamin Franklin, paladino das liberdades, nem por isso economizou veneno e acidez:  “Democracia são dois lobos e uma ovelha decidindo sobre o que comer no jantar”. E Thomas Jefferson, principal autor da declaração de Independência dos Estados Unidos, acrescentaria que a democracia “não é nada mais do que a ditadura da multidão, onde 51% das pessoas podem tirar os direitos dos outros 49%”. O argentino Jorge Luís Borges, conservador assumido, é igualmente direto: “A democracia é um erro estatístico, porque nela a maioria decide, e a maioria é composta de imbecis”.

Fechando essa algazarra de citações patentemente engraçadas, também existe lugar para o humor profissional — e aqui podemos citar dois mestres no assunto. De um lado do oceano, o britânico Bernard Shaw: “A democracia é apenas a substituição de alguns corruptos por muitos incompetentes”. Do outro, a pitada ferina do irreverente Millor Fernandes: “O problema da democracia é que ela acaba sempre na mão dos democratas”.

Na vida real ou na lenda, na História ou na Literatura, não é difícil concluir que a Democracia nunca saiu muito bem na fita, no verdadeiro longa-metragem de sua trajetória, com vários finais sugeridos, mas sem chance de unanimidade. Em suma, a forma de governo que preconiza o consenso está muito longe de ser… consensual. Talvez haja um único ponto em que todos concordam (ou pelo  menos a proverbial “maioria”): para o bem e para o mal, um fantasma ronda o Teatro da Democracia – o fantasma do igualitarismo.

“Liberté, Egalité, Fraternité”

Os Revolucionários franceses fizeram de tudo para nos convencer de que Liberdade e Igualdade caminham pela mesma trilha, num doce compasso “fraternal”. Para piorar as coisas, a confusão também foi consagrada nos dicionários, onde o verbete Democracia contempla tanto a ideia de “Governo em que o povo exerce a soberania direta ou indireta” quanto a de “Igualdade política e social”.

De um jeito ou de outro, desde a Grécia Antiga a igualdade vem sendo apregoada como um dos pilares teóricos da Democracia. Nas atuais Constituições democráticas, isso costuma encabeçar a lista de “direitos fundamentais do homem” — e não é diferente com a nossa Constituição Federal, cujo Artigo 5o. Etc., estabelece: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, etc., etc.”. Mas, apesar de ser defendido na letra da lei como “a fórmula ideal” da Democracia, na prática o casamento Liberdade-Igualdade raríssimas vezes aconteceu. (E o uso do superlativo – raríssimas – corre por conta do “benefício da dúvida”, pois a memória é falha, e o mundo sempre é um vasto mundo…)

Liberdade e igualdade não frequentam a mesma mesa. Sociedades livres nunca são igualitárias. E, definitivamente, sociedades igualitárias nunca são livres. Parece que a igualdade (ou melhor, sua falta) constitui o ponto cego que ninguém consegue controlar, na hora de seguir em frente. Fazer o quê, então? Desde já, arrisco-me a dizer que nenhuma solução milenarista ou messiânica servirá de remédio. Mas também não é justo ou necessário que este seja o fim do artigo — e muito menos o fim da Democracia, relegada ao ostracismo ou aposentada como se fosse um brinquedo inútil.

Fazer o quê, então?... Digamos que a saída mais clara — não a mais fácil — seja a de superar a ideia obsessiva de igualdade, mas sem cair em novas falácias como “autogestão” ou “diversidade” (de longe, a pior de todas). E para isso o estatístico italiano Corrado Gini pode vir em nosso auxílio, com uma ferramenta criada em 1912 mas que até agora não é muito aplicada fora dos campos da Lógica e da Matemática: o seu Coeficiente de Gini, que calcula os graus de desigualdade de um país.

Em linhas gerais, o Coeficiente de Gini consiste em um número entre 0 e 1, onde 0 corresponde à completa igualdade (no caso de rendimentos, por exemplo, toda a população receberia por hipótese salários iguais) e 1 expressa a desigualdade total (onde uma pessoa recebe todo o rendimento e as outras nada recebem). Talvez fique mais fácil de entender se multiplicarmos o número do coeficiente por 100 — já que de percentagens todos entendemos um pouco… Vamos também pular a parte maçante dos cálculos e chegar direto ao resultado: o próprio coeficiente.

Dando um exemplo concreto, vamos comparar a situação econômica da Etiópia e a dos Estados Unidos. Ao longo das últimas décadas, o país africano tem alcançado uma pontuação média de 0,3 (ou 30%) enquanto os Estados Unidos atingem a casa de 0,4 (ou 40%). Nesse sentido, de acordo com o Coeficiente de Gini, a Etiópia seria cerca de 10 pontos percentuais mais igualitária do que os EUA. Até aqui, todas as sociologias chegaram — mas o “pulo-do-gato” do próprio estatístico italiano fica por conta de suas conclusões: apesar de tudo, qualquer pessoa vai preferir a desigualdade americana à etíope. Em outras palavras, é melhor ser pobre na América do que na África… Vejam como a ideia de Democracia ganha um novo fôlego quando consideramos que o problema principal não é a desigualdade, mas a pobreza —  sobretudo a extrema pobreza, que se aproxima da miséria.

Será mesmo possível encontrar uma alternativa à Democracia? Uma sociedade sem um Estado dominante — em suma, uma sociedade livre e cooperativa?

E o futuro? Ou: Indo além da Democracia

O historiador americano Thomas E. Woods observa que a liberdade política é mais factível onde existirem “jurisdições menores e mais liberais”. E aponta como exemplo a própria história da Europa Ocidental, onde a fragmentação num punhado de pequenos países permitiu que as pessoas fugissem de lugares onde a opressão reinava e fossem para áreas mais liberais. Se isto já foi possível no passado, atualmente poderá parecer uma vaga utopia — mas deixa de ser utópico se ponderarmos que já existe (e em pleno funcionamento) um modelo equivalente de descentralização. Acertou quem disse: a internet.

Mais do que o sistema democrático em si, arrisco-me a dizer que as novas tecnologias da web têm grande potencial para se tornarem uma força “democratizadora” — não nos termos de uma capilarização do poder, mas como sua fragmentação até torná-lo inócuo. Para maiores detalhes, leiam o pequeno livro 'Além da Democracia', de Karel Beckman e Frank Karsten — que traz o subtítulo provocador “Por que a democracia não leva à solidariedade, prosperidade e liberdade, mas sim ao conflito social, a gastos descontrolados e a um governo tirânico” (o grifo é meu).

Lançado há quase dez anos (o que já o torna um tanto “obsoleto”) 'Além da Democracia' pode ser acusado de obsolescência precoce, na medida em que passa ao largo das mudanças velozes perpetradas por tiranos, hackers e criaturas da dark web, entre outros inimigos do Bom, do Verdadeiro e do Belo — pois a esta altura é melhor elevarmos definitivamente nosso referente teórico ao patamar de virtudes, acima de mesquinharias políticas. Mas onde muitos podem enxergar agora uma “visão ingênua e ultrapassada”, prefiro degustar o opúsculo de Beckman-Karsten como uma pitada de otimismo, um gole de esperança. Não é disto que estamos precisando agora?

“Creio que um dia mereceremos que não haja Governos”, sentenciou Borges, no mesmo texto em que fez profissão de fé de seu conservadorismo. O exímio Cego argentino enxergava longe: de fato, conservadores advogam princípios e padrões morais — não sistemas políticos. Se a democracia concede a uma “maioria” o direito de governar sobre todas as minorias, quem sabe os avanços tecnológicos, incessantes e imprevisíveis por definição, venham a oferecer ao indivíduo o poder de conduzir e gerenciar suas vidas livremente... Enfim: se a democracia confiscou o poder das pessoas, a tecnologia talvez seja capaz devolver, numa forma descentralizada – o que, aliás, é inerente à própria estrutura da internet. Não era isso o que o velho Aristóteles estava dizendo, ao relacionar tecnologia e liberdade? Fica a dica... Mas certamente isto já é assunto para um outro artigo. O que eu quis escrever termina aqui.

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