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A democracia é a pior forma de governo existente, exceto todas as outras que foram tentadas, diz a célebre frase eternizada por Winston Churchill em 1947. De fato, pelo menos nos últimos dois séculos, há um entendimento bastante difundido de que o ideário que fundamenta as democracias liberais é a referência principal para as instituições políticas e de poder, baseado no pensamento de que, pelo menos em tese, o poder emana do povo e em nome dele deve ser exercido. Entretanto, como tornar efetivo esse conceito na prática é um desafio que muitas democracias contemporâneas ainda têm dificuldade em enfrentar.

Atualmente, na maioria dos países democráticos, a democracia representativa substituiu a democracia direta – uma cabeça, um voto, para as decisões do dia a dia de um Estado – por dois motivos principais. O primeiro, pela dificuldade de chamar milhões de pessoas de um país para decidir o tempo todo. O segundo, para aplicar, também às decisões do povo, o chamado sistema de pesos e contrapesos, já que a população também deve respeitar as leis e os direitos fundamentais de todos (impedindo assim que uma massa descontrolada, no calor de um determinado momento, cause injustiças). 

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A democracia representativa, porém, mais do que representar a voz do povo, tem sido mal utilizada pelos políticos. Essa contestação fez crescer em todo o mundo o desejo de implantar um modelo mais afinado, que congregue a democracia representativa com uma maior participação popular – mais ou menos o que ocorre na Suíça atualmente.

“A democracia representativa é um modelo falido”, diz Alexsandro Melo Medeiros, professor de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas. Para Medeiros, os detentores do poder têm deixado claro que não estão lá para atuar em benefício da sociedade, mas principalmente em prol de seus interesses pessoais e no interesse dos grupos partidários que eles representam. “Existe uma insatisfação generalizada com a situação política no país, o que se reflete na percepção que o cidadão tem sobre a própria democracia e na falta de representatividade política por parte dos partidos políticos e seus representantes”, analisa o professor. 

A busca por novos modelos políticos para substituir a democracia representativa em crise dura, pelo menos, duas décadas, como explica Claudia Gurgel, professora de Direito da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Segundo ela, a representação política, por si só, não está mais em sintonia com os modernos arranjos sociais.

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“Decerto que este discurso é, pelo menos, tão antigo quanto a própria representação política e os princípios que nortearam a construção dos governos representativos desde o século XVIII”, explica a professora. “Todavia, a sociedade civil moderna, com forte conscientização democrática, em razão de suas conquistas políticas históricas, passou a exigir mudanças na estrutura dos governos representativos, impondo uma maior participação nas questões públicas”, analisa Gurgel.

“Desde fins do século XX vem surgindo um movimento social e intelectual que visa recuperar o núcleo original da prática democrática, ou seja, uma maior participação da sociedade civil no processo decisório”, explica Alexsandro Medeiros.

“O reconhecimento dos limites da democracia representativa nos remete à busca de alternativas e um modelo que diferentes teóricos, das mais diferentes áreas de estudo, chamam de democracia participativa e/ou deliberativa e apostam na capacidade de a sociedade civil atuar junto ao poder público contribuindo para sua democratização”, considera o professor de filosofia.

Releitura do ideal clássico e o federalismo

O ideal típico de democracia retoma a herança clássica, o berço da democracia: a ágora ateniense como o local onde todos os cidadãos livres se encontram para decidir os caminhos da polis. Mas esse arranjo tem evidentes limitações práticas em sociedade mais numerosas. Por isso, comunidades pequenas e descentralizadas compõem campo mais fértil para uma maior participação direta da sociedade no campo político. “No Brasil como alhures é no âmbito local onde esses instrumentos melhor se desenvolvem em números de participantes, pois estão mais próximos da realidade do cidadão”, diz a professora Claudia Gurgel.

Os Estados Unidos da América, com seus 325 milhões de habitantes, foram capazes de inserir a participação comunitária em uma escala populacional maior a partir da construção histórica de um federalismo que de fato permite estados e municípios decidirem um amplo leque de assuntos de forma independente do governo central. Um exemplo ilustra isso: juntamente com a escolha do presidente do país nas eleições de 2016, os eleitores de diferentes estados americanos foram instados a opinar sobre temas do cotidiano: nove estados consultaram a população sobre a flexibilização de leis de uso de maconha, South Dakota perguntou se os eleitores eram favoráveis a uma redução do salário mínimo e, na Califórnia, houve até um referendo sobre uma lei que obrigaria atores a usar preservativos em filmes pornôs. 

Em contraste, o Brasil permanece como um estado nacional centralizador, que traz para o nível federal o poder decisório sobre quase todos os assuntos, mesmo aqueles que, por definição, deveriam competir à esfera local, tais como a regulamentação urbana das cidades.

Um exemplo é a lei federal que regulamenta o transporte privado de passageiros por aplicativos, sancionada em março deste ano, que definiu regras nacionais sobre um tema absolutamente local.

Participação direta no Brasil

No Brasil, as ferramentas de participação direta da sociedade nas decisões políticas começaram a se desenvolver a partir da década de 1980. Entre as formas mais comuns de ouvir a sociedade estão as iniciativas de orçamento participativo, nas quais a população opina sobre a alocação de recursos no município, a realização de audiências e consultas públicas no processo de elaboração de políticas públicas e a existência de conselhos e conferências temáticas, principalmente em áreas de saúde, educação, assistência social, meio ambiente e urbanismo. Na análise da professora Claudia Gurgel, esse conjunto de ferramentas possui uma função importante na construção de uma democracia participativa. “Quanto mais atuantes e presentes no cotidiano do cidadão maior o empoderamento e engajamento político e social do cidadão com as questões que dizem respeito diretamente ao cotidiano de sua vida na polis”, diz a doutora em Direito da Cidade.

Em que pese os aspectos positivos da participação direta da população nas decisões políticas, o resultado prático dessa participação é muitas vezes questionado, uma vez que, via de regra, os decisores políticos não são obrigados a aceitar as deliberações apresentadas pela sociedade. O que ocorre na prática é que apenas algumas das sugestões e recomendações são acatadas – por coincidência, justamente aquelas que coadunam com o que já pensavam os formuladores estatais. 

Em uma dissertação apresentada ao Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo em 2017, o pesquisador Fernando Peres Rodrigues, ao analisar a efetividade dos conselhos municipais de habitação, concluiu que a taxa de implementação das decisões tomadas nos canais de participação existentes é bastante baixa.

As dificuldades de implementação mascaram um problema muito maior da participação direta na política, que é a inversão do papel de cidadania. Por definição, se o poder emana do povo e o povo delega aos seus representantes (os políticos) o mandato de organizar a sociedade para o benefício de todos, em tese são os políticos que devem atuar dentro dos limites impostos pela sociedade – e não o contrário. Por exemplo, numa sessão de orçamento participativo, os cidadãos escolhem entre opções previamente elencadas pela estrutura do estado, não podendo, por exemplo, decidir entre nenhuma das opções apresentadas, sem a possibilidade, por exemplo, de simplesmente economizar aquele recurso. O mesmo ocorre nas consultas públicas e conselhos: a sociedade opina, mas quem tem a decisão final é sempre a esfera política. 

Outros caminhos possíveis

Inverter a lógica de cidadania regulada e recuperar o protagonismo da sociedade nas escolhas políticas é o desafio para aprofundar o verdadeiro significado de democracia como o governo do povo. Para que isso ocorra, é necessário que as iniciativas que surgem de forma espontânea na sociedade sejam efetivamente incorporadas pela esfera política – e não esperar que os políticos concedam espaços de participação. 

Um exemplo positivo é o de organizações da sociedade civil que acompanham e fiscalizam as contas públicas, como é o caso da Associação Contas Abertas, no Brasil, e da iniciativa Ojoconmipisto, na Guatemala. Sem que ninguém tenha dado permissão para que essas organizações façam esse acompanhamento, o trabalho realizado por elas causa impacto concreto na melhoria dos processos de controle das despesas públicas. Afinal, é a sociedade que deve estar sempre fiscalizando o governo – e não o contrário.

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A tecnologia é um elemento que vem encurtando a distância das pessoas com as esferas decisórias. Coisas que antes eram logisticamente impensáveis, como colher a opinião de milhões de pessoas sobre determinado assunto, vem se transformando em algo factível. Enquetes e petições online são o começo dessa mudança: a Câmara dos Deputados e o Senado Federal tem costumado elaborar enquetes para ouvir a opinião das pessoas sobe assuntos polêmicos em discussão no Pode Legislativo. O vereador Gabriel Azevedo, de Belo Horizonte, criou o aplicativo “Meu Vereador”, pelo qual recebe a opinião de seus eleitores – as quais, segundo ele, balizam seus posicionamentos na Câmara Municipal. Em São Paulo, uma empresa de tecnologia criou o App Cívico, uma plataforma com soluções tecnológicas para aprimorar a gestão pública e aumentar a participação dos cidadãos. São exemplos de iniciativas em estado inicial de desenvolvimento, que ainda não podem ser consideradas como a expressão real da democracia, mas que indicam um caminho promissor.

Para além das fronteiras tradicionais, algumas organizações que contam com membros de diversas nacionalidades têm criado experiências inovadoras de aprofundamento da democracia. Uma delas é a Democracy Earth, que propõe uma mudança conceitual com base em três conceitos: democracia líquida, dados descentralizados e governança sem fronteiras. 

A democracia líquida significa usar a tecnologia para produzir, na prática, uma combinação entre democracia representativa e democracia direta. A ideia é transformar o voto em um instrumento de procuração, mas de caráter precário. O cidadão escolhe um representante (político) para assuntos gerais do cotidiano, mas caso queira se posicionar sobre um assunto em particular, chama para si a responsabilidade e opina diretamente, indicando que seu representante não pode decidir por você naquele tema específico – uma revogação temporária do voto. 

A democracia líquida pode ser perigosa se deixada à rédea solta em mãos de uma massa enfurecida, mas se não se consolidar em uma anarquia ou em um movimento libertário (zero Estado) pode ser sim uma carta a colocar na mesa das discussões sobre democracia participativa.

As tentativas aqui e acolá de aumentar a parceria entre o estado e a sociedade civil já existem, mas devem crescer. Na Holanda, o governo se associou a organizações para construir uma iniciativa em conjunto. Uma delas é a organização ProDemos, que se intitula a “casa da democracia e do estado de direito” e busca criar na estrutura do estado a cultura da participação. A organização desenvolveu uma ferramenta que mostra aos servidores públicos quais as situações e de que forma é mais efetivo envolver as pessoas nos processos decisórios do governo. 

“Os cidadãos têm ideias para dar sobre seu bairro, sua cidade ou sua vila. Eles também querem ter influência nos processos de tomada de decisão que afetam sua vizinhança, além das eleições de representantes a cada quatro anos”, diz Anna Domingo, líder de projeto da ProDemos. “Não achamos que os cidadãos tenham que se envolver em todas as questões, mas é importante saber qual questão precisa de participação, em que momento e quais métodos podem ser usados”, completa. 

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A organização propôs a alguns municípios um desafio ainda mais ousado: o chamado “direito ao desafio”. Um grupo de pessoas se une e propõe realizar diretamente um serviço público, de forma privada. Se funcionar melhor, segue em frente. “Isso é realmente novo e ainda não sabemos como vai funcionar”, explica Anna. Como toda a experimentação, os resultados ainda precisam ser testados, mas a inovação já é mais uma forma buscar novos significados para a boa e velha democracia.

Outra iniciativa interessante, criada na Argentina, foi o software DemocracyOs. Uma das suas idealizadoras, Pia Mancini, explicou seu projeto em um TED. Por meio desse aplicativo, os cidadãos são chamados pelos seus representantes para debater os projetos de lei apresentados no Congresso. Após um desprezo inicial por parte dos políticos, um partido criado com a promessa de utilizar a plataforma antes de tomar decisões, caso seus deputados fossem eleitos, teve uma votação expressiva nas eleições de 2013. Tanto assim que o Congresso argentino decidiu utilizar, no ano seguinte, pela primeira vez na história do país, uma consulta no DemocracyOs para discutir com os cidadãos três projetos de lei. 

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