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A economista e historiadora Deirdre McCloskey, que esteve no Brasil | Divulgação
A economista e historiadora Deirdre McCloskey, que esteve no Brasil| Foto: Divulgação


A economista e historiadora Deirdre Nansen McCloskey, 75, é uma das maiores intelectuais em atividade no mundo. Ainda desconhecida do grande público brasileiro, McCloskey escreveu 17 livros e centenas de artigos que vão desde a economia e a estatística, passando pela história e pela literatura, até chegar à ética das virtudes. Seu reconhecimento internacional, porém, começou por seus trabalhos técnicos em economia, disciplina que lecionou entre 1968 e 1980, ao lado de Milton Friedman,  na famosa Escola de Chicago, celeiro liberal de prêmios Nobel. 

Também ela liberal convicta, McCloskey tornou-se mais e mais crítica aos métodos estatísticos sem lastro na realidade e à corrente tradicional do pensamento econômico, uma faceta de suas ideias que pode ser apreciada em “Os Pecados Secretos da Economia”, que a editora Ubu está lançando no Brasil. Ao mesmo tempo, a economista foi cada vez mais se aproximando da história, da literatura e da filosofia, de questões concretas próprias do feminino, embora sem nunca perder o refinamento abstrato atribuído ao masculino. Características femininas e masculinas, como ela as vê, são importantes na retórica de McCloskey. Até os 53 anos de idade, Deirdre era Donald. Em 1995, tomou a decisão de mudar de gênero. 

McCloskey recebeu a Gazeta do Povo em São Paulo, onde esteve para participar do ciclo de conferências do Fronteiras do Pensamento e falar ao público sobre as mudanças do mundo moderno, suas causas, e o papel da liberdade nisso tudo. “Foi isto que aconteceu desde o século XIX: a libertação da criatividade humana, precedida por uma mudança na atitude e na forma de falar sobre a liberdade”, diz, resumindo a tese fundamental exposta ao longo das 1800 páginas dos três volumes de “A Era Burguesa”, sua obra fundamental, publicada nos últimos 10 anos. 

McCloskey diz que o liberalismo fez mais pelos pobres do que qualquer outro sistema na história e que a desigualdade não é um problema em si mesmo. Isso não a torna, entretanto, uma economista insensível a considerações éticas. Ao contrário, uma parte central do pensamento de McCloskey envolve o esforço de articular uma ética das virtudes para uma época de comércio. “O comércio não é necessariamente corruptor, é possível ser burguês e ser alguém virtuoso”, diz. 

Confira a íntegra da entrevista abaixo:

Gazeta do Povo: Você diz que “o grande mistério das ciências sociais” é explicar isto que você chama de “o grande enriquecimento”: como nós nos tornamos tão ricos desde o início do século XIX. Ao mesmo tempo, você escreve que “uma grande mudança na opinião corrente sobre os mercados e a inovação causou a revolução industrial e o mundo moderno – as histórias econômicas materialistas não parecem funcionar”. Por quê? 

McCloskey: O que estou tentando explicar é algo tão grande, que supera qualquer cálculo razoável, por exemplo, de comércio internacional. É claro que sou a favor do livre comércio internacional, mas ele só nos faz um pouco mais ricos. Veja: o grande enriquecimento representou um aumento de 3000% na renda per capita, o que é incrível. A dinastia Chang, na China, foi uma época próspera, mas o aumento da renda foi de 100% e o grande enriquecimento foi, repito, de 3000%. 

Há três categorias tradicionais de explicação para isso. A primeira, que podemos chamar conservadora, diz que a razão foi a acumulação. O problema é que, historicamente, sempre houve acumulação desde o início da agricultura. Sempre houve investimento privado e público. Os chineses construíram grandes canais e a muralha da China. Os romanos construíram pontes, aquedutos. Sempre houve grandes cidades. Há também um problema econômico nessa explicação: o investimento se esgota se não houver novas ideias. 

A segunda explicação, de que a esquerda gosta, diz que foi a exploração. Mas sempre houve exploração, especialmente de mulheres, de escravos e de pessoas pobres. O que é a agricultura senão um homem armado em cima do cavalo cobrando taxas de alguém preso à terra? Há a explicação [variante] do imperialismo, mas, por mais que o imperialismo seja ruim para os povos coloniais, isso não ajudou a metrópole, só algumas pessoas na metrópole. O melhor exemplo é o Congo do Rei Leopoldo. Ele beneficiou o belga comum? Não. O rei usou os lucros para construir castelos no sul da França. Aliás, mesmo a África foi uma sociedade de escravos e o grande enriquecimento não aconteceu lá. 

A terceira explicação diz que foram as instituições. Mas instituições jurídicas, como regras de propriedade e contratos, existem desde muito antes. A lei inglesa já estava relativamente completa no século XIII. E mais: a lei inglesa de fato começou a mudar, mas em 1830, e isso não explica o que aconteceu antes. 

E a retórica e a linguagem? 

Esse enriquecimento todo tem de ter uma explicação mais profunda, mais ampla, que abarque mais pessoas. Uma mudança na ideologia, em como as pessoas falam sobre empreendimentos e como se implementa na política esse sentimento, isso é que importa. A liberdade. Um ponto central do meu argumento, que ainda precisa ser comprovado cientificamente, é que dar o direito de as pessoas tentarem – ou seja, não ter escravos, não escravizar as mulheres, libertar os pobres, permitindo que eles façam coisas e encontrem empregos, libertar as pessoas de corporações e, hoje, dos sindicatos, libertar os povos coloniais, libertar as pessoas LGBT, libertar os deficientes –, toda essa liberdade traz massas de pessoas para o campo do empreendimento. Se você é pobre e resolve abrir um salão de beleza na vizinhança porque percebe que não tem nenhum por perto, isso melhora a situação de todo mundo. Agora, multiplique isso milhões de vezes – é imensamente criativo. Então, foi isso que aconteceu desde o século XIX: a libertação da criatividade humana, precedida por uma mudança na atitude e na forma de falar sobre a liberdade.

Você tem uma grande estima pela retórica, pela conversa, e isso aparece em vários de seus livros. Ao mesmo tempo, você sente a necessidade de retomar uma ética das virtudes como fundamento dessa “grande conversação”. Qual o sentido de dedicar o primeiro volume de A Era da Burguesia para falar sobre o amor, a fé, a esperança, a coragem, a temperança, a prudência e a justiça? 

Esta é a ideia liberal fundamental – de Adam Smith, John Stuart Mill, Mary Wollstonecraft, Voltaire: deixar as pessoas falarem. Agora, o argumento desde Marx, e até antes, é que o comércio é terrivelmente corruptor, que não é possível ter virtude no comércio, que você é apenas uma pessoa gananciosa. Isso é uma bobagem. Quem está no comércio provê serviços para outras pessoas: o que há de errado nisso? Existe essa crença persistente, principalmente entre a intelligentsia [clerisy, um termo emprestado do escritor Colleridge], de que o comércio nos corrompe, essa mania de olhar com desprezo para o trabalho. 

Por exemplo, eu discuto os “Barões Ladrões” [Robber barons] e “A Era Dourada” [Gilded Age] nos Estados Unidos. Essas são frases conhecidas das pessoas letradas, mas são bobagens. A maioria dos barões ladrões só estava melhorando as coisas. Rockfeller reduziu o preço do transporte de petróleo. É claro que há ocasião para “pecados” no mercado, mas essas ocasiões existem na aristocracia e no socialismo também. Então, era importante estabelecer no livro, em detalhes, que o comércio não era necessariamente corruptor, que é possível ser burguês e ser alguém virtuoso. 

Você sempre diz que cada sociedade deve ser julgada não pela igualdade, mas pelo “aperfeiçoamento com base no mercado”, que o melhor programa de bem-estar é o crescimento econômico e que você não se importa com a desigualdade por si só. Por quê? 

Sim. É preciso distinguir as desigualdades que provêm de maus comportamentos, como o roubo ou a corrupção – e em parte precisamos colocar a discussão sobre heranças aí no meio do caminho –, das desigualdades que provêm do fornecimento de melhores bens e serviços. Esse tipo de desigualdade é necessário e deve ser encorajado. Alguém que inventa algo incrível e que facilita a vida das pessoas ganha muito dinheiro. Isso não me incomoda, porque sei que isso não é permanente. Se você simplesmente deixa as coisas acontecerem – sem intervenção para garantir o monopólio do inventor –, as pessoas começam a imitar e o preço cai. Isso é um fato básico da história econômica. Não há nada a temer nas inovações. Cada mudança em um cenário de liberdade é uma situação de “ganha-ganha-ganha-ganha-perde”. Nós precisamos decidir se, para evitar a perda, vamos ficar sem os ganhos, ou se temos de compensar e proteger de alguma forma quem perde. Mas essas são questões éticas. 

Ainda sobre a desigualdade, há este argumento de que as pessoas não estariam felizes com uma renda objetivamente maior, porque o desejo é profundamente irracional e mimético (e agora ainda temos as redes sociais), de forma que os pobres não estariam preocupados com estarem mais ricos que seus ancestrais, mas com a riqueza do vizinho. A grama do vizinho é sempre mais verde. Então, a desigualdade seria um problema por si só. Como você responde a isso? 

Primeiro, se você fundamentar a política na inveja, será insaciável. Você começa invejando a grama do vizinho, depois os eletrodomésticos, depois o cabelo dele. Os vícios são insaciáveis. Segundo, há o problema da métrica da felicidade. Eu critico essa visão econômica da felicidade como prazer. Eu não me importo com que as pessoas estejam felizes, eu me importo com que elas tenham vidas plenas, que elas floresçam, que elas tenham possibilidades. Você poderia ser um escravo feliz colhendo café: você colhe os grãos, dança samba e faz suas preces. Mas você não sabe ler, nunca foi além da sua plantação local. É com isso que eu me importo. 

Mas a inveja é um fato, mesmo que ruim. E parece que estamos falando novamente de virtude. Como se ensina as pessoas a serem virtuosas? 

Não sendo populista, não sendo fascista, não sendo socialista. Não sendo indulgente. O ódio, por exemplo. O que os políticos deveriam estar fazendo é nos ensinando a não ser odientos. Eu não votei no [Barack] Obama, mas ele fazia bem isso. Há políticos conservadores nos Estados Unidos que fazem isso muito bem também. Há um momento maravilhoso na campanha presidencial de 2008 em que o John McCain estava em um comício e uma mulher disse “vou votar no senhor, porque esse Obama é muçulmano” e, na televisão, ele a interrompe e diz: “Senhora, isso não está correto. Ele é cristão, e mesmo se fosse muçulmano não haveria problema, ele é um bom homem – eu só discordo dele”. Foi um momento de ouro na campanha: um político estava ensinando o povo a não ser odiento. As pessoas têm todo tipo de vícios e defeitos e a política não deve ser um esforço pelo mínimo denominador comum – aliás, eu sou uma professora, você é um jornalista, nós também temos a responsabilidade de levantar a voz contra esse tipo coisa. 

Estamos de volta aos intelectuais. Embora o grande enriquecimento tenha melhorado a vida da humanidade de modo inédito na história, nem todo mundo parece saber disso. Por que os intelectuais falam tão mal do capitalismo? 

É absurdo como tanto a esquerda quanto direita ignorem que o grande enriquecimento tenha acontecido. Esse é um problema profundo. Hayek e muitos outros tentaram entender porque os intelectuais, jornalistas e acadêmicos são tão anticapitalistas, tão anti-burgueses. Eu mesmo não entendo bem: eu sei quando aconteceu, ali por volta dos anos 1830, na França. Depois o fenômeno se espalhou, particularmente na Alemanha. Os alemães tinham muita vergonha do seu estado de desenvolvimento – como os brasileiros têm hoje – e ficavam furiosos com a competição inglesa. De certa forma, o romantismo alemão foi uma reação ao iluminismo escocês e inglês. 

Então, há esse tumulto. Ele aparece em muitos escritores: Turgueniev, Flaubert. Gente até mais culta do que eu escreveu sobre isso. É interessante notar que muitos antiburgueses são filhos da burguesia – especialmente os filhos, não as filhas. É interessante notar que a própria ideia do socialismo começa a decolar no Ocidente quando as pessoas começam a enriquecer. Se você pensar bem, não há nada mais socialista que uma família burguesa: as crianças não têm qualquer contato com a realidade material do trabalho, o dinheiro aparece do nada, a mãe é uma espécie de autoridade central planejadora. É um grande mistério. Quem explicar historicamente esse fenômeno vai ganhar um Nobel. 

Você escreveu que “A grande história econômica dos nossos tempos não é a grande recessão de 2007-2009 (...), mas que os chineses, em 1978, e os indianos, em 1991, adotaram ideias liberais na economia e começaram a atribuir uma dignidade e uma liberdade antes negada à burguesia. E então a China e a Índia dispararam em crescimento econômico”.  Eles inventaram um modelo alternativo ao Ocidental?

A China quer que você acredite que eles inventaram um modelo novo,  mas as pessoas prósperas não toleram ser governadas, elas querem ser livres. A questão é que as pessoas primeiro se interessam pela liberdade econômica, pois isso tem uma ligação mais direta com a vida de cada um. O Partido Comunista Chinês está diante de um dilema. Eles estão montados em um tigre, como na velha fábula: se você cai, você é comido pelo tigre. Se eles não forem capazes de sustentar o crescimento econômico – e há alguns indícios de que eles podem não conseguir –, se eles não reagirem às questões ambientais, haverá revoltas, como já houve muitas. Isso é algo paralelo ao século XVIII inglês, quando havia revoltas populares do povo comum, que não tinha direito a voto nenhum, mas que reagia às crises – e isso é o começo da democracia. Até o momento, eles estão sustentando a barganha, em troca de liberdade econômica – pelo menos quando comparada ao que havia antes. E, dentro de uma geração, a China terá uma renda igual à dos Estados Unidos hoje. Se isso for sustentável, talvez eles permaneçam no poder. É uma questão em aberto. A Índia, porém, é um desafio imenso a essa visão chinesa, porque a Índia é um país livre. É um país maluco, uma democracia barulhenta, corrupta, mas é uma democracia. O caso indiano aponta que esse caminho é possível. De qualquer forma, a histórica econômica já mostrou que, na média, as tiranias vão muito mal. 

A China vai alcançar os Estados Unidos em uma geração e a Índia, em duas. O Brasil, no ritmo atual, em cinco gerações. Onde foi que nós erramos? 

Esse resultado é patético. O problema é que o Brasil se apegou a um tipo de desenvolvimento econômico e a teorias que enfiaram nas nossas cabeças nos anos 1960. Havia essa ideia de que os países estavam presos a ciclos insuperáveis, que eles nunca se desenvolveriam. Havia também a noção de dependência do Raul Prebisch, que se alastrou pela América Latina, e as esperanças do socialismo, que criaram resultados horríveis – até hoje, veja a Venezuela. A Argentina é um paradigma: era um dos países mais ricos do mundo um século atrás, hoje subsidia e protege todo mundo. Não faz sentido nenhum. O Brasil poderia ser rico, mas se prende ao chão com protecionismo, subsídios e regulação excessiva do mercado de trabalho, por exemplo.

Novamente, olhe para a Índia, que poderia ser um grande modelo para o Brasil. Por 40 anos, desde a independência, a Índia foi governada por uma espécie de “socialismo à la London School of Economics”. Depois ideologia das pessoas mudou. Isso pode ser visto no cinema de Bollywood: nos anos 1950 e 1960, o comerciante era sempre o vilão e o policial ou o funcionário público, o mocinho. Nos anos 1970 e 1980, isso se inverteu. As pessoas decidiram empreender e a Índia, em 1991, aderiu ao liberalismo e isso funciona melhorando a vida de todo mundo, inclusive dos indianos mais pobres. Todo mundo achava que a Índia nunca seria capaz de se alimentar sozinha e hoje é uma exportadora de grãos, graças à revolução verde – à qual, aliás, a esquerda se opôs. Desde os anos 1990, a renda indiana disparou. O Brasil quer um conselho? Sejam liberais.

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