Em 26 de julho de 1974, uma nota do Departamento de Polícia Federal chegou à redação do Jornal do Brasil, no Rio de Janeiro, com ordens claras em linguagem telegráfica: “fica proibida divulgação através meios comunicação social falado, escrito, televisado, entrevistas pelo Sr. Ministro da Saúde sobre meningite, qualquer divulgação de dados e gráficos sobre frequência de meningite, noticiário sobre quantidade e datas de chegadas vacinas importadas, bem como referências necessidades previsão”. E prosseguia: “fica igualmente proibido divulgação de matérias sensacionalistas ou exploração tendenciosa através da imprensa, qualquer assunto relativo a meningite”.
O documento dizia vir “de ordem superior, atendendo solicitação”. Naquela altura, o Brasil já estava em seu quarto ano da pior epidemia de meningite vivida pelo país. Identificada pela primeira vez em solo brasileiro no início do século 20, trazida por imigrantes portugueses vindos da Ilha da Madeira, a doença já havia provocado surtos em 1923 e 1945, mas nenhum foi tão duradouro quanto o vivido sob a ditadura militar (1964-1985). Os casos iniciais foram vistos na zona Sul de São Paulo, ainda em 1971, mas pouco a pouco foram tomando conta da capital paulista e, de lá, espalharam-se para os demais estados. A dimensão exata que a epidemia adquiriu, porém, continua em dúvida — justamente pela pesada censura imposta ao assunto na imprensa.
Foi isso que Clóvis Rossi, então chefe de redação do jornal O Estado de S. Paulo, tentou demonstrar em uma coluna intitulada “A epidemia do silêncio”. Previsto para ser publicado no mesmo mês de julho de 1974 em que, no Rio, o Jornal do Brasil recebeu a proibição de tocar no assunto, o texto de Rossi acabou censurado. Dizia: “[o surto] não é lamentável apenas por suas consequências ou por revelar dramaticamente a precariedade do sistema de Saúde Pública do Estado que se orgulha de ser o mais rico da Federação. Talvez ainda pior do que tudo isso seja o fato de que, com ele, atingiu o seu ponto mais alto também a epidemia de desinformação e ocultamento de fatos que as administrações públicas, a todos os níveis, resolveram desencadear faz já algum tempo”.
Proibido, o artigo crítico ao governo acabou tendo que ser substituído, uma prática comum na época — especialmente sob o governo de Emílio Garrastazu Médici (1969-1974), que havia acabado de se encerrar, em março. Não eram só textos opinativos que precisavam ser retirados às pressas após um canetaço do censor: mesmo uma matéria objetiva e com dados informando sobre o avanço da doença podia ser enquadrada pelo que o controle de imprensa da ditadura entendia como “sensacionalismo” em torno do tema. Na mesma época em que a coluna de Rossi foi barrada, o Estadão também seria impedido de publicar uma nota informando que o Paraná já registrava mais de mil casos e 110 óbitos atribuídos à meningite, que avançava rapidamente no país inteiro.
Como forma de protesto e pela própria falta de tempo hábil para substituir os textos por algum conteúdo relevante, era comum que os jornais ocupassem o espaço com receitas culinárias ou clássicos literários. No Estadão, havia preferência por versos de Os Lusíadas, de Camões, algo que o próprio Rossi já citava no escrito que não veio à luz: “Hoje, o que se pode ter é apenas um lado da verdade: o lado oficial, asséptico, geralmente otimista, ufanista o mais das vezes. Quem não aceita só esse lado, que leia poesias”.
Problema conhecido e silenciado
Colunas denunciando abertamente o ocultamento da crise sanitária não vinham por acaso. Naquele mês de julho de 1974, só em São Paulo, a meningite havia matado mais de 200 pessoas. Ao fim daquele ano, considerando apenas a região metropolitana da capital paulista, foram ao menos 25 mil casos e 1.796 mortes atribuídas à doença — até onde fora possível descobrir. O problema, no entanto, não era novo e nem ignorado pelo governo. Aliás, a própria imprensa já o havia denunciado, antes de o regime intensificar o acobertamento da situação: em outubro de 1972, a revista VEJA chegou a estampar na capa a manchete “Meningite: a epidemia da desinformação”. Dois anos mais tarde, no agravamento definitivo da crise e diante dos hospitais de referência superlotados, a revista seria também censurada e impedida de se aprofundar no assunto.
Crianças, as principais vítimas
Caracterizada por uma inflamação das meninges, o nome dado às membranas que revestem o cérebro e a medula espinhal, a meningite pode ter diferentes causas, incluindo fungos, vírus e bactérias. As mais graves, porém, costumam ser ocasionadas por bactérias como a Neisseria meningitidis — os chamados meningococos.
Além de provocar febre e vômitos, dores de cabeça e na nuca, uma de suas características mais identificáveis é a rigidez na área do pescoço, que pode impedir o afetado de encostar o queixo no peito — um dos sinais típicos em crianças que faz os pais procurarem ajuda médica.
Os casos não tratados podem deixar sequelas neurológicas, incluindo convulsões, perda de audição e paralisia cerebral, e os mais graves podem evoluir a óbito. Tudo isso com uma característica extra que torna a epidemia dos anos 1970 bastante distinta em relação à que se vive agora com a Covid-19: embora a doença possa ocorrer em qualquer idade, a parcela da população mais afetada são predominantemente bebês e crianças com menos de cinco anos, com uma letalidade ainda mais elevada no primeiro ano de vida — até 20% dos casos identificados.
Noticiário "inconveniente"
Mas, apesar de saber que a meningite circulava de forma cada vez mais ampla desde 1971 e até investir precocemente no desenvolvimento de uma vacina — em 1972, um imunizante testado em São Paulo em crianças de seis meses a seis anos só produziu resposta naquelas que tinham a partir de dois anos —, o governo seguia dedicando esforços não só para conter o avanço dos casos e mortes, mas também para impedir que a população fosse devidamente informada. Documentos confidenciais hoje conservados pelo Arquivo Nacional e revelados em reportagens e por historiadores ajudam a entender como o governo encarava a perspectiva de se deparar com um noticiário “inconveniente”.
“Se não forem tomadas cuidadosas medidas preventivas, pode-se prever que anualmente a cidade [de São Paulo] será atormentada pela incidência dessa doença. Fácil é prognosticar-se, ainda, que a desídia da administração pública, no setor saúde, terá reflexos negativos no curso da campanha eleitoral, que agora se inicia”, dizia um informe do Serviço Nacional de Informações (SNI) ao presidente Ernesto Geisel no final daquele mês de julho de 1974, quando o governo passou a agir mais claramente para coibir a circulação de notícias.
Objetivo eleitoral
Aquele ano acabaria sendo considerado, em retrospecto, o pico da epidemia de meningite. Embora sob ditadura não houvesse votação direta para presidente (o próprio Geisel havia sido nomeado sucessor de Médici desta forma, em janeiro), ainda havia a possibilidade de escolher representantes no Congresso dentro dos dois únicos partidos autorizados pelo regime: a governista Aliança Renovadora Nacional (Arena) e a oposição tutelada do antigo Movimento Democrático Brasileiro (MDB) voltariam a disputar vagas parlamentares em 15 de novembro de 1974.
O temor do governo corrobora análises de pesquisadores do período: se a epidemia descontrolada tivesse espaço nos jornais, a narrativa oficial de tranquilidade social e sucesso econômico — vivia-se, ainda, a fase do “Milagre Econômico”, com o PIB tendo crescido quase 14% em 1973 — poderia perder espaço e prejudicar o poder absoluto que a Arena tivera durante os anos de Médici, marcados por um recrudescimento na repressão a opositores e na censura à imprensa.
Na prática, falar da meningite, mesmo em termos objetivos, virava um ato comparável a veicular críticas ao regime, e precisava ser vetado — como as circulares enviadas às redações dos jornais deixaram bem claro na metade de 1974.
A saída da crise
Tanto segredo em torno do combate à epidemia acabaria jogando contra o governo e levantando dúvidas e suspeitas de superfaturamento e possíveis desvios de verbas. Faltou esclarecimento maior sobre a escolha, por exemplo, dos fornecedores da ampicilina, uma versão sintética, de aplicação mais simples (mas também maior custo) da penicilina utilizada no tratamento das infecções.
Dependendo da procedência, o grama da ampicilina podia custar até 400% a mais: a Fundação do Remédio Popular (Furp) fornecia o medicamento por Cr$ 2,50, já a ampicilina produzida pelo Laboratório Fontoura White custava Cr$ 12,68 o grama. Também neste caso, porém, a imprensa não pôde ir mais longe na revelação das suspeitas e dos critérios para a escolha de quem fabricava e de quanto saía dos cofres públicos para bancar os tratamentos.
Ainda em 1974, Geisel criaria a Comissão Nacional de Controle da Meningite. No ano seguinte, agora com um imunizante importado (e que já existia no início da crise) em mãos, uma campanha de vacinação massiva conseguiu avançar rapidamente para finalmente controlar o ritmo dos contágios, no quinto ano de uma epidemia silenciada e cujo impacto real vidas perdidas permanece pouco conhecido. Em maio de 1975, buscando incentivar a vacinação que o governo havia protelado ao negar a epidemia nos anos anteriores, o próprio presidente recebeu uma dose do imunizante, aplicada pelo ministro da Saúde, Paulo de Almeida Machado. Na sequência, Geisel perguntou aos repórteres presentes se já haviam sido devidamente vacinados contra a doença.
Mas já era tarde demais para conter um dos temores do presidente em relação ao que estava por ocorrer no final do ano anterior: apesar da tentativa de censurar a cobertura para não ser prejudicado nas eleições de novembro, Geisel ainda assim foi surpreendido por um fracasso nas urnas. Na Câmara, o MDB quase dobrou sua representação, passando de menos de 90 para 160 nomes eleitos. No Senado, a Arena manteve apenas 6 das 22 vagas em disputa.
Acossado e temendo um fim antecipado do regime, Geisel responderia às urnas com novas medidas para barrar o crescimento da oposição: em 1976, veio a Lei Falcão, que limitou a propaganda política; em 1977, após um fechamento temporário do Congresso, o governo impôs a criação dos “senadores biônicos” — manobra que, ao garantir a ocupação de um terço da Câmara Alta por nomes indicados pelo presidente, na prática impediram que a Arena perdesse o controle da casa pelo voto popular.
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