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Artigo leva leitora a revisitar "Construção", de Chico Buarque, bem como a questionar "crítica pela crítica".
Artigo leva leitora a revisitar “Construção”, de Chico Buarque, bem como a questionar “crítica pela crítica”.| Foto: Antonio Costa/ Gazeta do Povo

Resposta ao artigo de Paulo Polznoff Jr.

No dia 26/05, li com certo espanto o artigo do colunista Paulo Polzonoff Jr. para a Gazeta do Povo. O artigo em que ele comenta o já famigerado prêmio Camões dado a Chico Buarque. Meu primeiro espanto veio da percepção de termos um traço cultural brasileiro de desmerecer nossos pares. De criticá-los ou tentar a qualquer custo buscar tropeços que possam botar em cheque seu sucesso. O texto de Polzonoff me trouxe à memória um longínquo artigo de Diogo Mainardi intitulado "Chega de Drummond", ou algo assim, já se vão muitos anos desde essa leitura, mas ali aconteceu meu inaugural espanto por essa prática de crítica vã, da crítica pela crítica em si. Para ser do contra? Ora, sejamos honestos! Olhemos para a extensão, qualidade e diversidade da obra de Chico Buarque. Olhemos para a obra. Deixemos o Chico entre os Chicos, ao menos para fazermos uma análise de sua poética. Não que o homem esteja completamente desvinculado de sua obra, mas este homem de Hollanda vai passar e, garanto, sua obra ficará. Por que não premiá-la?

Apontar alguns versos fracos ou rimas pobres que, por volição pessoal, possam não ser os seus preferidos, Polzonoff, não macula o conjunto da obra produzida por esse autor. Você já leu o romance "Quatro Pessoas" do Mário de Andrade? É um mau romance. Difícil de chegar ao final. E por isso o escritor, pensador, folclorista, missivista e crítico literário Mário pode ser menos reconhecido em sua importância? Penso que não. Dessa forma, quando leio sua incursão por "Construção" com o subtítulo de "Proparoxítonas" fazendo uma aproximação ou, quem sabe, comparação com "Robocop Gay" não posso sentir outra coisa senão o repetido espanto.

Poema visual

"Construção" é toda elaborada em versos alexandrinos, de 12 sílabas poéticas, com exceção das duas últimas estrofes que são em versos bárbaros, com 15 sílabas, e dos versos "Deus lhe pague". Dá para imaginar o labor poético envolvido em tal tarefa? Talvez ele seja apenas comparado com o trabalho de assentar um tijolo sobre o outro em meio ao cimento. E aí está o irretocável merecimento dessa composição. A estrutura alexandrina, por ser rigidamente construída, deixa ver, na forma, o trabalho desses tantos homens e, por vezes, mulheres, que constroem os lugares que moramos e frequentamos.

Visualmente, o poema "Construção" é um prédio. Isso sem falar no conteúdo do texto. Essas rimas pobres que você viu no texto (exemplificando com o uso de última e última) começam a se movimentar ao longo dos versos de forma que as palavras vão descendo os andaimes e construindo novas imagens poéticas que balançam entre o mágico e o absolutamente real. Por exemplo, "comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe", "e flutuou no ar como se fosse um pássaro" em oposição à crueza de "bebeu e soluçou como se fosse máquina" e "E se acabou  no chão feito um pacote flácido".

E toda essa construção está nos aproximando do voo de um homem simples, invisível, que morreu. Como todos nós morreremos. Porém, este teve o infortúnio de, com sua morte, atrapalhar o tráfego público em pleno sábado. Não é possível que isso não nos humanize, não nos faça mergulhar andaime abaixo (que seja pelos minutos que duram a música ou nossa leitura) junto com esse príncipe náufrago homem. Não é possível que, talvez, depois dessa breve morte, já que saiamos a salvo ao final do poema, não guardemos uma compaixão diferenciada pela condição humana e pelas condições de nossa, nem sempre, humana sociedade.

Penso que, frente à potência do equilíbrio entre forma e conteúdo que "Construção" nos apresenta, uma rima ou outra que possa ter fugido ao nosso gosto particular não se torna o mais importante. Por que não mencionar a singularidade de uma imagem como "andaimes pingentes", essas estruturas que balançam como pérolas no pescoço?

Em tempo, da mesma forma, penso que "Juntos e Shallow now", apesar de mostrar uma solução melódica questionável, tem um problema, a meu ver, maior. É que a música, sendo uma versão da canção "Shallow", não faz jus à sua origem. Na música de Lady Gaga e compositores parceiros, a mensagem que fica é exatamente a da possibilidade de quebrar a superfície e mergulhar num nível mais profundo em que os encontros possam acontecer de forma verdadeira. "I'm off the deep end, watch as I dive in" ("Estou na beirada, veja como mergulho") / "Crash through the surface, where they can´t hurt us / we're far from the shallow now" (Rompendo com a superfície, onde eles não possam nos machucar / estamos longe do raso agora").

Ou seja, "Juntos e Shallow now" mantém-nos no raso e a ideia é justamente afastar-se dele. A propósito, fiquei pensando no motivo de trazer essa canção para figurar num artigo sobre o prêmio Camões dado a Chico Buarque, assunto que, por si só, renderia todas as suas linhas. Eu compreendo que não está fácil  atrair leitores para sequer começar um texto, imagine terminá-lo (essas minhas páginas que o digam). "Juntos e Shallow now" é uma boa estratégia para aproximar aqueles pouco afeitos a jornais, porém, ainda acho que somente o Chico daria conta do recado.

Angústia da influência

Quando você menciona a angústia da influência, se alinhando com Bloom, eu prefiro a companhia de Jorge Luis Borges em seu "Kafka e seus precursores". É sempre bom lembrar que Borges foi um conservador, antiperonista declarado, o que causava total desconforto entre seus pares de esquerda, e isso em nada, absolutamente nada, diminui a obra genial do escritor. De novo, não é preciso matar o autor, mas é preciso resguardar certa distância entre o autor e sua obra para que possamos lê-la de forma mais livre. Veja só, o conservador Borges, infelizmente, já se foi. Duvido que algum "Funes", memorioso como era, se vá. Em "Kafka e seus precursores", Borges relata ler Aristóteles, Kierkegaard, Browning por meio de Kafka. Que beleza chegar até Shakespeare e Jorge de Lima (que também gostava dos dodecassílabos) por meio de Chico. Eu duvido que qualquer grande escritor sinta uma gota sequer de angústia por se saber múltiplo. Eles reconhecem, desde o início, que não estão sozinhos. E, ao fim e ao cabo, em literatura, a originalidade e a novidade, para pensar num conceito tão caro à nossa atualidade, não é o que importa, de fato. O que se diz não é novo, como se diz é. E como Chico disse o que disse, só ele o fez.

Por fim, e continuando a investir nessa sutil distância que temos que guardar entre a literatura e, digamos, a vida "real", não é possível haver qualquer julgamento de valor em "Meu guri", ah, como não é! Posso lhe dizer pelo meu exemplo, que ouço essa música desde muito pequena, que nunca guardei qualquer dúvida sobre atos que seriam certos ou errados no meio da convivência social porque ouvi "Meu guri". Pelo contrário, me causava tal ternura ouvir aquela balada e pensar numa mãe vendo seu filho morto que, de fato, algo mais sublime do que a malgrada profissão do filho  me tocou e me toca até hoje.

A justiça, ou a falta dela, que impera nos nosso dias, não é exatamente a medida da canção. Ela passa por um olhar materno tão contraditório de ingenuidade e aproveitamento material que nos impacta de forma a deslocar essas certezas de "bem" e "mal" que herdamos e podemos, de novo, tocar na condição humana com maior compaixão. Penso que a boa literatura não faz outra coisa a não ser nos tornar mais humanos para remirar a vida. Releia "Budapeste". É um grande livro. Mesmo que, em opiniões várias, ele não esteja no panteão de outras veredas, é um grande livro. Nos torna mais humanos. E, talvez, sendo mais humanos possamos olhar para nossos pares com menos farpas, nos afastando, assim, daquele traço brasileiro  de desmerecimento gratuito.

A César o que é de César. A Deus o que é de Deus. E a Francisco, o que é de Francisco.

Foi muito bom ter lido seu artigo. Me movimentou a pensar nessas questões e, mais do que isso, a expressá-las. Principalmente, me fez retocar na matéria poética tão bela de "Construção". Por isso fico agradecida. Mas não sou feita só de gratidão. Algo de feroz também me ronda e, aqui, escolho citar um escritor, desses bons, sabe, que diz, e eu digo como ele, que "às vezes o perdão me escapa e baixa em mim um espírito justiceiro que não aceita o que ouço, o que vejo, o que leio, simplesmente porque não é possível que aparentemente todo mundo à minha volta tenha desistido de alcançar uma espécie de santidade, de elevação, de transcendência". Releve qualquer tom de discórdia desse meu diálogo e entenda essas linhas como dedicação ao seu fazer jornalístico e literário.

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