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Detalhe da capa do livro “O Homem Mais Perigoso do País”, de R. S. Rose | Divulgação
Detalhe da capa do livro “O Homem Mais Perigoso do País”, de R. S. Rose| Foto: Divulgação

Até mesmo em sua morte, quando um Boeing 707 da Varig caiu em Paris em 1973, Filinto Müller esteve envolvido em fatos marcantes da vida nacional. Mas foi pelo que fez em vida – e pelas vidas que ajudou a terminar – que Filinto se tornou, desde o subterrâneo, um personagem fundamental do século XX brasileiro. Chefe da polícia de Vargas, comandante da repressão, ele colaborou tanto com a ditadura do Estado Novo quanto com aquela instaurada em 64, deixando um rastro de sangue pelo caminho. Filinto Müller, a certa altura, chegou a ser considerado “o homem mais perigoso do país” – expressão que dá título à nova biografia sobre ele, do brasilianista americano R. S. Rose, recém-lançada por aqui.

Filinto nasceu no Mato Grosso, em 1900, em uma época em que Cuiabá não passava de 30 mil habitantes e em que, no interior, as disputas políticas às vezes eram resolvidas jogando os corpos dos adversários nos rios para que as piranhas os devorassem. No primeiro capítulo de O homem mais perigoso do país (Civilização Brasileira, 405 páginas, R$ 64,90), os anos iniciais do futuro torturador se confundem com a própria história mato-grossense de princípios do século passado.

Müller era neto de um médico alemão que havia vindo para o Brasil estudar doenças tropicais e, numa triste ironia, acabou morrendo prematuramente de malária (ou de infecção, as razões nunca ficaram totalmente claras). 

Crescendo no seio de uma importante família dos círculos da elite cuiabana da época, Filinto partiu ao Rio de Janeiro ainda na adolescência em busca do sonho de se tornar militar. Frequentou a Escola Militar do Realengo e, com os contatos estabelecidos nesse período, formou simpatias dentro do movimento tenentista, que bateu de frente com os governos finais da República Velha e desestabilizou a lógica da política brasileira até então.

Quando Getúlio Vargas tomou o poder à força, em 1930, Filinto Müller seria um dos personagens a se beneficiar rapidamente com o novo regime. Após colaborar decisivamente para debelar a chamada Revolução Constitucionalista de 1932, em São Paulo, ele escalou os organogramas governamentais até assumir a poderosa chefia da polícia do Rio, então capital federal, implementando um aparelho de espionagem, prisão, tortura e morte de opositores políticos. 

Mitos e verdades

A mais completa reconstituição da trajetória de Filinto Müller já publicada foi resultado de uma extensa pesquisa do brasilianista Robert Sterling Rose nos arquivos do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, da Fundação Getúlio Vargas. No CPDOC, encontram-se conservados mais de 66 mil documentos, cerca de 500 recortes de jornais e materiais impressos, além de 165 itens visuais doados pelas herdeiras de Müller – um material que ainda não havia sido devidamente esmiuçado por pesquisadores brasileiros. 

Rose, autor de livros sobre o período varguista como Uma das coisas esquecidas: Getúlio Vargas e o controle social no Brasil 1930-1954 (Companhia das Letras, 2001), agora decidiu romper o insistente desinteresse na vida do comandante da repressão de Vargas. A escassez de obras a respeito de Filinto “pode ser colocada na conta do jornalista marrom David Nasser”, afirma R. S. Rose, em entrevista à Gazeta do Povo.

“Nasser recebeu ordens de Assis Chateaubriand para distorcer Filinto. O produto de seus esforços, o livro Falta alguém em Nuremberg: torturas da polícia de Filinto Strubling Müller, é parte mito e parte fato, mas influenciou pensadores e o público em geral por gerações”. 

A começar pelo título: Filinto nunca usou o sobrenome Strubling, sonoramente alemão e parte do passado de sua família, que foi resgatado por Nasser para “nazificá-lo”, aponta Rose. O nome da obra, lançada em 1947, também fazia referência ao Tribunal de Nuremberg, em que alguns dos principais líderes nazistas foram julgados imediatamente após o final da Segunda Guerra Mundial e, em muitos casos, condenados à morte. 

A Getúlio o que é de Getúlio

Não que a biografia de Rose inocente Filinto Müller de seus crimes, mas a investigação do pesquisador norte-americano procura mostrar outras nuances do aparato repressivo – particularmente, o protagonismo de Getúlio Vargas na busca por fortalecer um Estado de inspiração fascista e totalitária, verdade inconveniente que os estudos hagiográficos do passado tentaram minimizar por muito tempo. 

Um caso sintomático é a deportação de Olga Benário, companheira do líder comunista Luís Carlos Prestes (eles nunca chegaram a se casar de fato), entregue ainda grávida ao governo nazista nos anos 30 e morta no campo de extermínio de Bernburg em 1942. Filinto ainda hoje é apontado como o maior culpado pela expulsão de Olga, mas a ação não poderia ter ocorrido sem a anuência de Vargas, que a utilizou como maneira de cair nas graças dos nazistas – de quem ainda tentava se aproximar. 

“O leitor deve lembrar que a deportação de ‘estrangeiros perigosos’ começou mais cedo do que o caso de Olga Benário. Ao longo do período de ascendência do movimento anarquista nos primeiros anos do século XX, houve deportações de pessoas que promoviam os direitos dos trabalhadores”, destaca Rose.

“O que fez o caso de Olga diferente foram três coisas: que ela era vista como a esposa de Prestes; que Prestes tinha conduzido uma recente tentativa malsucedida de derrubar Vargas; e que ela era comunista e judia. Esses três itens vinham bem a calhar para a política da época. Vargas entregou-a a Hitler como um pequeno presente durante os dias de aproximação em 1936. Para esta importante prisioneira, Filinto pode ter tido sua opinião, mas Vargas deu a ordem”, diz o biógrafo. 

Mandato pela Arena

Com o tempo, o próprio Filinto acabaria se desgastando frente a Getúlio e sendo visado pelas arbitrariedades do governo, deixando a direção da polícia em 1942. Mas nunca abandonou sua lealdade a Vargas, nem sua predileção por governos repressivos: desde a juventude, há quem tenha ouvido Müller afirmar que “a solução é uma ditadura que iria fazer de tudo uma tábula rasa”, como cita Rose em sua biografia.

Após o fim do Estado Novo, Filinto Müller se reelegeu sucessivamente ao Senado e, na sequência do golpe de 1964, converteu-se em um dos políticos mais proeminentes da Aliança Renovadora Nacional, a Arena, partido oficial da ditadura. 

Admirado pelo novo governo em função do aparelho de vigilância e perseguição política que havia comandado sob Vargas, Filinto assumiu a presidência da Arena justamente na etapa mais repressiva do regime militar: em 1969, no rescaldo do AI-5, quando Emílio Garrastazu Médici estava em vias de se tornar Presidente da República e o Parlamento permaneceu fechado à força por dez meses.

Nos anos seguintes, Filinto foi instrumental para dar uma aparência democrática ao governo, ao mesmo tempo em que, por trás dos panos, a Arena se valia de intimidação e violência para impedir qualquer força real da única oposição permitida, o Movimento Democrático Brasileiro (MDB). 

O então senador Filinto Müller morreria em 11 de julho de 1973 – exatamente no dia de seu 73º aniversário –, quando um avião da Varig teve que fazer um pouso de emergência ao se aproximar de Paris. Um incêncio, acredita-se que iniciado por um cigarro mal apagado em um dos banheiros (na época era permitido fumar em qualquer local da aeronave), encheu a cabine de fumaça tóxica. Foi a tragédia mais letal da aviação comercial brasileira até então: 123 pessoas morreram, a maioria asfixiadas – apenas um passageiro sobreviveu, além de dez tripulantes, que contavam com máscaras de oxigênio. 

O legado sombrio de Müller, porém, permanece ainda hoje, quase meio século após a sua morte. Se a cultura de repressão e violência policial no Brasil não começaram com ele, são de seu período algumas criações que sofisticaram ainda mais o aparato do Estado – fosse no combate a criminosos comuns ou a opositores políticos. “A minha opinião é que as pessoas condenam esse homem pelas razões erradas”, acredita Rose. “O que é importante ha história de Filinto Müller foi a criação do Quadro Móvel [espécie de “polícia secreta” de Vargas], que em essência se tornou o primeiro esquadrão da morte na era moderna das Américas. Os esquadrões ainda estão conosco”.

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