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A ideia que fazemos quanto ao que constitui um ser humano só nos parece óbvia porque foi forjada há 2.000 anos.
A ideia que fazemos quanto ao que constitui um ser humano só nos parece óbvia porque foi forjada há 2.000 anos.| Foto: Pixabay

A lição mais importante que a história nos ensina é a do acaso. As coisas nem sempre saem como esperamos. Pegue, por exemplo, a resposta que nossa civilização historicamente dá à mais importante pergunta de todas: “O que significa ser humano?” Desde o Iluminismo, muitas pessoas no Ocidente têm a impressão de que responder a essa pergunta é fácil, que basta observar empiricamente o comportamento humano ao longo do tempo e espaço e tirar algumas máximas universais a partir dos dados. Essa é a fé contemporânea: a de que somos capazes de apreender a verdade sobre nós mesmos a partir dos registros naturais, da mesma maneira que fazemos ao lermos uma história num livro.

O exemplo fundamental disso é o preâmbulo da Declaração de Independência dos Estados Unidos, escrita no auge do Iluminismo por uma de suas mentes mais fervorosas:

“Acreditamos que essas verdades são óbvias: todos os homens são criados iguais e o Criador lhes deu certos Direitos inalienáveis, entre eles os da Vida, Liberdade e busca da Felicidade”.

Para Thomas Jefferson, e para nós que vivemos hoje iluminados pelas palavras dele, é “óbvio” que “a humanidade não nasce encilhada nem uns poucos nascem com botas e esporas para montá-la”. Mas muitas pessoas, em muitos lugares e épocas, não pensavam isso sobre o ser humano. A ideia de que somos personalidades únicas, cada qual com dignidade e direitos invioláveis é rara e relativamente paroquial. O mundo existia sem essa ideia (assim como parte do mundo ainda existe assim) e pode voltar a esse estágio facilmente se nos esquecermos da origem da ideia e do que a sustenta há tanto tempo.

Podemos localizar a origem da palavra “pessoa” na palavra prosopon (máscara), do grego antigo. Ela foi usada pela primeira vez no contexto da tragédia grega. Os atores usavam prosopons do papel que interpretavam no teatro. Mas logo a palavra ganhou um sentido político e social, sobretudo na sociedade romana. A palavra latina para prosopon é persona, de onde vem a palavra “pessoa”.

De acordo com o vernáculo romano, a persona de alguém é seu papel social e jurídico dentro da comunidade. Esse papel variava imensamente de uma pessoa para outra, do nobre para o senador, do comerciante para o servo, e não expressava a igualdade contida na palavra “pessoa” de hoje em dia. Classes sociais distintas eram vistas quase como espécies diferentes, sem nada em comum, e não se esperava que ninguém tivesse uma existência individual diferente do papel que se interpretava no Estado. Os escravos romanos, por exemplo, costumavam ser chamados de non habens personam (os que não têm pessoa” ou “não-pessoa”), porque as funções sociais deles eram braçais e repetitivas. Quem os escravos eram como “pessoas”, no sentido contemporâneo do termo, não importava.

Os sentidos da palavra no teatro grego e na política romana têm uma coisa importante em comum. Em nenhum dos casos é o indivíduo único que está por trás da máscara ou exercendo o papel social que lhe foi designado. O teólogo John Zizioulas explica isso assim: “Muitos escritores representam o pensamento da Grécia antiga como algo essencialmente ‘não-pessoal’. Em sua variação platônica, tudo de concreto e ‘individual’ se refere à ideia abstrata que constitui sua base e justificação”.

Como eles próprios reconhecem, as pessoas na Antiguidade existiam apenas na medida em que participavam de um projeto maior, seja ele um Estado ou cidade, que constituía a “base e justificação” para eles. Zizioulas escreve ainda que “a identidade — esse componente vital do conceito do homem que torna um diferente do outro e o que o torna quem ele é — era garantida e definida pelo Estado ou por um grupo organizado”. Por isso, o historiador Larry Siedentop escreve que, na Antiguidade, “não havia noção de direitos individuais contra os ditames da cidade ou dos deuses. Não havia liberdade formal de pensamento e ação. (...) Os cidadãos pertenciam às cidades, de corpo e alma”. Se o indivíduo tinha algum valor era apenas em relação a um coletivo organizado qualquer.

O advento do Cristianismo pôs fim a essa velha ordem da Antiguidade, que tinha reinado mais ou menos sem contestação desde os primórdios da civilização até a primeira manhã de Páscoa em Jerusalém, há dois mil anos. A afirmação dos primeiros cristãos — a de que Deus se tornara homem — obliterou o conceito de pessoa que predominou na Antiguidade. Se Jesus é uma “persona”, como defendiam os pais da Igreja, e ele morreu e ascendeu como representante de toda a humanidade, então somos mais do que aquilo que a sociedade e o Estado dizem que somos. Abre-se uma lacuna entre nossa identidade e nossas obrigações sociais. Pela primeira vez o indivíduo surge no palco da história humana. “Não há judeu ou grego, escravo ou homem livre, homem ou mulher, porque todos estão em Jesus Cristo”. Ou, como escreve Siedentop:

“Para Paulo, a crença em Cristo possibilita o surgimento de um protagonismo compartilhado igualmente por todos (“a igualdade de almas”), enquanto os papeis sociais tradicionais — seja o de pai, filha, autoridade, sacerdote ou escravo — se tornam coadjuvantes. A esse papel principal uma infinidade de papeis sociais pode ser acrescentada como características de um sujeito, mas não são eles que definem o sujeito. Essa é a liberdade que o conceito de Cristo apresenta à identidade humana.”

É quase impossível para nós entendermos como o milênio que se seguiu à Páscoa foi revolucionário para a nossa civilização. Em nossa moral e visão de mundo básica, somos tão influenciados pelo cristianismo que só com muita imaginação conseguimos perceber isso do ponto de vista pré-cristão. Não conseguimos sentir em nosso âmago o que significava um non habens personam como Jesus falando com um governante poderoso como Pilatos, como contado no Evangelho de João. Quanto à crucificação em si, o teólogo David Bentley Hart tem razão ao escrever que:

“Por mais que tentemos, somos incapazes de ver a humanidade destruída, humilhada e fadada de Cristo como algo obviamente desprezível e ridículo; em vez disso, estamos, num sentido muito real, destinados a vê-la como algo que abarca o próprio mistério da nossa humanidade: uma fragilidade sublime, ao mesmo tempo trágica e magnífica, digna de pena e maravilhamento”.

O caráter aleatório de tudo o que consideramos decente e valioso para nós e nossa sociedade e que foi criado a partir das dores e do triunfo deste único homem, em cujas sombras claras vivemos pelos últimos 2.000 anos, consistentemente nos engana. Esquemos que, de uma forma historicamente demonstrável, o Ocidente deve sua ideia de humanidade universal comum a Jesus e à Igreja. Até mesmo os menores detalhes da história da Páscoa, como as lágrimas de São Pedro depois de ter traído Jesus, apontam para o disrupção radical da revolução cristã em relação ao que havia antes, a tal ponto que não conseguimos mais enxergá-la. Como diz emocionantemente Hart:

“O que é óbvio para nós — a alma ferida de Pedro, a profundidade de sua devoção ao seu Mestre, o tormento da sua culpa, o fato de saber que a morte iminente de Cristo acaba com a possibilidade de ele ser perdoado pela traição — é óbvio em grande parte porque herdamos uma cultura que, de certa forma, nasce das lágrimas de Pedro. Para nós, esse detalhezinho comum na narrativa é inquestionavelmente um enfeite na história, algo que a enobrece, mostra sua gravidade e aumenta o alcance dela no que tange à nossa humanidade compartilhada. De certa forma, todos nós — até mesmo os que não acreditam — somos “cristãos” em nossas expectativas morais quanto ao mundo. Para as classes esclarecidas da Baixa Antiguidade, contudo, a história do choro de Pedro deve ter parecido um erro estético, já que Pedro, um homem rude, não poderia ter sido objeto da solidariedade de um homem nascido em berço de ouro, nem sua dor poderia trazer consigo uma dignidade trágica a ponto de merecer o olhar alheio. (...) Isso não vai contra apenas o bom gosto; isso é um ato de rebeldia.”

Como conta Siedentop em Inventing the Individual: The Origins of Western Liberalism [Inventando o indivíduo: origens do liberalismo ocidental], os séculos que se sucederam entre a primeira Páscoa e hoje foram uma tentativa demorada, irregular e imperfeita de traduzir a crença cristã numa dignidade humana universal para realidades sociais e políticas. Ao contrário do que alegam os inimigos da cristandade, o Iluminismo não rompeu com o que o precedia, e sim produto de séculos de osmose de moral cristã: não foi um retorno repentino à razão depois de séculos de ignorância imposta. O estudioso Brian Tierney nota que, já em 1.300, vários direitos eram regularmente defendidos com base na ideia cristã de pessoa humana: “Entre eles estão o direito à propriedade, o direito à autodefesa, os direitos matrimoniais e os direitos processuais”, e também medidas criadas para se garantir esses direitos. Enquanto nos enxergarmos como indivíduos portadores de direitos com responsabilidades reais, somos artefatos culturais da Páscoa.

Mas o duradouro choque cultural da Ressurreição do Filho de Deus parece estar perdendo força no Ocidente, como sugere pesquisas sobre os hábitos religiosos dos norte-americanos. Semana passada mesmo, o Instituto Gallup divulgou um novo estudo mostrando que a filiação a igrejas nos Estados Unidos caiu para menos de 50% pela primeira vez. Mesmo sem esses dados, contudo, é possível perceber nisso pelo estado da sociedade e política norte-americana. Cada vez mais nos aproximamos de uma forma de lidarmos uns com os outros que se assemelha à forma da cultura pagã que o Cristianismo suplantou. Zizioulas descrevia a sociedade pagã como uma sociedade “impessoal”, na qual o indivíduo “está subordinado à ideia abstrata que constitui sua base e justificação”. Nos Estados Unidos de hoje, os indivíduos estão submetidos à ideia abstrata política que constituir sua “base e justificação” na ordem social.

Nós nos vemos cada vez mais como simples avatares de nossos coletivos abstratos, a partir dos quais nasce nosso senso de solidariedade e de sentido da vida. Somos republicanos, democratas, antimáscara, antivacina, defensores da vida, defensores do aborto. A única pessoa irrepreensível que jaz sob todos esses rótulos, a pessoa pré-política que Jesus nos deu na Cruz, está sendo sufocada. Além disso, não temos motivo para acreditar que ela sobreviverá ao abandono cultural da fé. Mas temos algo com o que nos consolar: ainda que a primazia da identidade esteja em declínio no Ocidente, ela encontrará uma forma de sobreviver. Nenhum de nossos fracassos, sejam eles pessoais ou políticos, podem retardar a chegada do reinado que Cristo governa inabalado pelos revezes do tempo.

Cameron Hilditch é bolsista William F. Buckley de Jornalismo Político no National Review Institute.

© 2021 National Review. Publicado com permissão. Original em inglês 
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