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Manifestantes protestam contra a morte de George Floyd | FOTO: Matthew Hatcher/Getty Images/AFP| Foto: Matthew Hatcher/Getty Images/AFP

A morte do americano George Floyd foi sem dúvida um caso horrível de abuso policial. Mas teria sido esse também um exemplo de racismo? Ou ainda, seria essa uma evidência de que a polícia americana está sistematicamente vitimizando negros? A julgar pela reação de parte considerável da sociedade americana (grande parte da mídia, de celebridades, de movimentos sociais, de universidades e acadêmicos) a resposta é um enfático sim para os dois casos. Mas até que ponto essa narrativa é justificada pelos dados?

Na linha de frente do movimento que alega viés racial na polícia está o grupo Black Lives Matter (BLM). Em seu site, o grupo deixa claro que acredita existir “violência desenfreada e deliberada perpetrada pelo estado contra os negros” e que “vidas negras são sistematicamente alvo de eliminação”.

Os protestos alinhados ao BLM deram início a uma reação em cadeia de magnitude extraordinária. Fotos e vídeos de manifestantes destruindo estátuas nos EUA foram tão presentes na mídia que seria desnecessário repeti-los aqui. O alvo das acusações de racismo também foi muito além da polícia. Usa-se muito a expressão “racismo sistêmico” para designar a suposta existência de um racismo mais sutil que, dizem, permeia praticamente todo o tecido social. Até as instituições científicas estão sendo acusadas de racismo sistêmico e por parte dos próprios cientistas. A renomada revista Nature publicou um editorial com sérias acusações:

[…] aos pesquisadores negros há muito são negados espaços e plataformas em instituições e publicações estabelecidas como esta. Reconhecemos que a Nature é uma das instituições brancas responsáveis pelo viés na pesquisa e nas bolsas de estudos. O empreendimento da ciência tem sido — e continua sendo — cúmplice no racismo sistêmico e deve se esforçar mais para corrigir essas injustiças e ampliar as vozes marginalizadas.

A igualmente renomada revista Science também publicou um editoral na mesma linha:

A empreitada científica nos EUA é predominantemente branca, assim como as instituições dos EUA às quais os autores da Science estão afiliados. A evidência de racismo sistêmico na ciência permeia esta nação. Por que tão poucos autores de ciências de faculdades e universidades historicamente negras? Por que os Estados Unidos falharam em atualizar suas formas de ensinar ciências quando os dados mostram que as pessoas de cor aprendem melhor com métodos mais inclusivos? […] Chegou a hora do estabelecimento científico enfrentar essa realidade e admitir seu papel em perpetuá-la. O primeiro passo é a ciência e os cientistas dizerem em voz alta que se beneficiaram da, e falharam em reconhecer, a supremacia branca.

Não quero aqui entrar no mérito de se as instituições científicas americanas são racistas ou não, embora nos meus dez anos nesse meio, três deles nos EUA, eu pessoalmente nunca vi evidências disso. Mas vale notar que os editoriais acima sugerem que a medida (ou “evidência”) do racismo sistêmico seria a baixa representatividade de negros na ciência. Essa “evidência” aparece constantemente nesse tipo de argumento. O problema é que a baixa representatividade pode ter várias causas que não o racismo. A menos que se possa identificar a causa, a representatividade por si só não quer dizer muita coisa.

Voltando às alegações de racismo na polícia americana, como poderíamos testar se elas são verdadeiras? Citar apenas casos isolados de negros sendo vítimas de violência policial, como George Floyd, claramente não é suficiente. É possível encontrar casos muito parecidos onde a vítima era branca, como o de Tony Timpa que morreu depois de ter sido imobilizado por 14 minutos com o joelho do policial nas suas costas. Ou de Daniel Shaver, que morreu baleado (e desarmado) ao tropeçar tentando seguir as ordens confusas do policial.

Também não é suficiente apontar a alta representatividade de negros como vítimas de violência policial pelo mesmo motivo apontado acima no caso da ciência. Disparidades de representatividade podem ter várias causas e aqui é possível identificar a mais provável: a alta representatividade de negros nas estatísticas de crimes violentos.

Se negros cometem mais crimes violentos proporcionalmente que brancos por exemplo, é bastante evidente que eles vão ter proporcionalmente mais encontros com a polícia que brancos. E, consequentemente, maior risco de serem vítimas de violência policial.

Basta supor, como é razoável, que uma dada proporção de encontros policiais irá terminar de maneira trágica (policiais são seres humanos) para que essa conclusão seja inevitável e sem que o racismo tenha qualquer coisa que ver com isso.

Criminalidade

Existem duas fontes principais de dados sobre criminalidade nos EUA. Uma delas é a National Crime Victimization Survey (NCVS), uma pesquisa feita anualmente com uma amostra representativa de 169 mil cidadãos. A outra é o Uniform Crime Report (UCR), um levantamento feito pelo FBI com dados coletados dos órgãos públicos responsáveis pela aplicação da lei.

Como praticamente metade dos crimes não são reportados à polícia, o NCVS providencia um panorama mais fidedigno do crime que o UCR. Porém, por ser uma pesquisa sobre crimes experimentados pela pessoa entrevistada, o NCVS exclui homicídios. Deve-se atentar também que o UCR não diferencia brancos de latinos mas o NCVS sim.

O que esses dados têm a dizer sobre criminalidade e raça? De acordo com as pesquisas mais recentes (NCVS de 2012 a 2018 com exceção da de 2016, que não disponibilizou os dados da mesma maneira) negros cometeram 23% dos crimes violentos (excluindo homicídios). Tendo em vista que 12% da população americana é negra, vemos que esse grupo comete mais crimes que a sua representação na população. Para ser exato, 1,9 vez mais.

Essa super-representação é ainda mais elevada nos dados sobre homicídio do UCR. Entre os anos 2014 e 2018, negros cometeram 37% dos homicídios. Porém o UCR não tem dados sobre raça em cerca de 30% dos casos. Se extrapolarmos a mesma distribuição racial dos dados conhecidos para os desconhecidos, obtemos que 49% dos homicídios entre 2014 e 2018 foram perpetrados por negros. Esse número impressiona, mas é plausível pois é quase o mesmo encontrado em um levantamento anterior para os anos de 1980 a 2008 (52.5%, tabela 7, página 12). Sendo assim, a representação dos negros nos homicídios é cerca de 4,1 vezes maior que na população em geral.

No entanto, tendo em vista que os homicídios representam apenas uma pequena fração do total de crimes violentos (cerca de 0,28%, de acordo com meus próprios cálculos) essa alta representatividade nos homicídios não tem um impacto significativo na representatividade nos crimes violentos em geral. Portanto, 23% é provavelmente a melhor estimativa para a representação dos negros no crime violento em geral.

A título de comparação, no mesmo período de 2012-2018, brancos foram responsáveis por 48% dos crimes violentos excluindo homicídio, latinos por 14% e asiáticos por 2%. Sua parcela na população em geral é: brancos 62.3%, latinos 17.1%, asiáticos 6.3% (NCVS de 2018, tabela 12). A tabela abaixo contém a maior parte desses dados. Os dados sobre homicídios para outros grupos que não o negro são mais complicados de se analisar pois o banco de dados do UCR não diferencia brancos de latinos e agrupa todas as outras raças na categoria “outros”.

grupo% da população(1)% crime% homicídios (3)% crime violento com homicídio
negros12234923
latinos17,114 n.d.(4) n.d.
brancos 62,348 n.d.(4) n.d.
asiáticos6,32n.d.(4) n.d.

1. Dados do NCVS de 2018. 2. Dados do NCVS entre 2012 e 2018. 3. Dados do UCR entre 2014-2018. 4. Não disponível. O UCR não distingue latinos de brancos e agrupa os asiáticos com índios americanos e outros grupos.

Tendo estabelecido que negros estão de fato super-representados nas estatísticas de crimes violentos (23%), resta checar se esse grupo tem representação semelhante nas estatísticas de prisões e violência policial. Relembrando que se esse for o caso, então a maior taxa de criminalidade entre os negros — e não o racismo — é o que melhor explica a maior taxa de prisão e vitimização policial desse grupo.

Prisões

Os dados sobre prisões podem ser encontrados nos mesmos relatórios anuais do UCR do qual retirei os dados sobre homicídio acima. No entanto, a definição de crime violento do NCVS não é igual a do UCR, o que dificulta a comparação direta entre a incidência desses crimes e as prisões.

Outro complicador é o fato que uma porcentagem significativa, de fato a maior parte, dos crimes violentos identificados pela pesquisa do NCVS não são informados à polícia. Em 2018, 57.4% desses crimes não foram informados e em 2017, 55.1% (NCVS 2018, tabela 5). Dos crimes que são informados à polícia, os dados sobre raça estão disponíveis apenas para os homicídios. A tabela abaixo contém esses dados:

grupo% população (1)% homicídios (2)
negros134952
brancos763945

1. Dados do censo americano, inclui latinos. 2. Dados do UCR, extrapolação dos dados conhecidos para os desconhecidos, média dos anos 2014-2018.

Os dados acima mostram que há pouca discrepância entre a representações de brancos e negros nos boletins de ocorrência de homicídio e nas prisões pelo mesmo motivo. Não há portanto indício de que a polícia esteja prendendo negros em proporção maior que a sua representação nas estatísticas de perpetradores desse crime. Os dados sugerem inclusive que, comparado com negros, os brancos são presos em proporção ligeiramente mais alta, (45÷39)÷(52÷49)=1,09 vez ou 9% mais para ser exato.

Analisando períodos mais antigos (2001) pesquisadores encontraram resultados similares, o que reforça as conclusões acima.

Tiroteios policiais

Não existe um banco de dados oficial sobre tiroteios policiais, mas o jornal Washington Post mantém o que melhor se aproxima disso. Ali podemos encontrar todos os casos de morte por tiro policial de 2015 até hoje. O banco de dados contém informações sobre a raça das vítimas, se elas estavam ou não portando algum tipo de arma, a reação da vítima ao ser abordada, etc.

Um dado interessante é o número absoluto de mortes: entre 2015 e 2019 morreram 1.181 negros e 2.254 brancos. Ou seja, morre quase o dobro de brancos que negros nas mãos da polícia. No entanto, não parece ser essa a percepção de muita gente.

Conduzi duas pesquisas nas redes sociais, uma no Facebook e outra no Twitter, e em ambas o resultado foi o mesmo: a maioria acha que há, em número total e não relativo, mais vítimas negras que brancas. Pode ser que muitos dos respondentes, a grande maioria brasileira, simplesmente não conheça as proporções de brancos e negros na população americana. Ou pode ser que a maioria tenha adquirido uma ideia muito distorcida da realidade.

O que queremos saber é se negros estão representados em proporção mais alta que a da sua representação nos crimes violentos. Analisei tanto a porcentagem de mortes por tiro policial no total quanto nos casos em que a vítima estava desarmada. Morrer desarmado é provavelmente a mais injusta das mortes nesses casos. Porém note que uma pessoa desarmada não deixa de apresentar risco para a vida do policial ou de outras pessoas ao redor. Ela pode agir de maneira a levar o policial a pensar que esteja armada, pode de fato tentar agredir alguém, tentar agarrar a arma do policial etc. Logo mortes de desarmados nem sempre significam mortes injustas.

Passemos aos dados:

grupo% da população (2)% crime% mortes por tiro policial (2)% mortes por tiro policial e desarmado (2)
negros12232435
latinos17,1141718
brancos62,3484641
asiáticos 6,3222

1. Dados do NCVS de 2018. 2. Dados do Washington Post para os anos 2015-2019

O mais importante a observar é que a representação dos grupos nas mortes totais por tiro policial está muito próxima da representação dos mesmos no crime violento, o que corrobora a tese de que é o crime (violento em particular) — e não o racismo — o melhor preditor de morte nas mãos da polícia.

Onde existe uma discrepância significativa é no subgrupo dos que foram mortos desarmados. Podemos ver que negros e latinos estão mais representados aqui do que no crime violento, 1,5 e 1,3 vez mais respectivamente. Seria essa uma evidência de racismo policial?

Talvez. Mas vale a pena fazer algumas considerações antes de tirar uma conclusão forte como essa. A primeira é que negros e latinos desarmados podem estar reagindo à prisão mais que brancos e asiáticos. Reagir à prisão sempre vai aumentar significativamente as chances de ser morto pela polícia, ainda mais nos EUA, país com a maior taxa de porte de armas do mundo. A segunda consideração é que o subgrupo de mortos desarmados é muito pequeno (65 por ano em média) e, portanto, essas discrepâncias podem ser flutuações estatísticas sem maior significado.

É importante lembrar que essa análise não permite identificar casos isolados de policiais racistas. É possível, de fato provável, que existam policiais racistas. O que ela mostra é que no geral o impacto das ações desses policiais nas mortes de negros ou é muito pequeno ou está sendo compensado por racismo dirigido aos outros grupos raciais.

Censura benevolente

Se uma análise fria dos dados parece dar pouco ou nenhum suporte para a conclusão do racismo policial, por que há tanta certeza do contrário? Um dos motivos é a censura com boas intenções ou censura benevolente.

A história dos EUA é de fato manchada por capítulos racistas, algum desses ainda bem recentes. As leis de Jim Crow, que estabeleciam um apartheid racial no sul dos EUA, só foram revogadas por completo em 1965. Mas essa muito bem-vinda mudança nas leis parece ter sido acompanhada de uma virada tão completa na opinião pública que o viés agora tende a ir na direção oposta. O mero ato de questionar — a base do pensamento crítico — qualquer alegação de racismo é visto como uma manifestação do próprio racismo e, portanto, intolerável.

Um exemplo dessa censura benevolente em ação é o caso recente envolvendo a advogada e escritora Heather Mac Donald. Em um artigo de opinião para o Wall Street Journal intitulado “O mito do racismo sistêmico na polícia", Heather chega a conclusões muito parecidas com as que cheguei aqui:

"Afro-americanos foram um quarto dos mortos pela polícia no ano passado (235), uma proporção que tem se mantido estável desde 2015. Essa parcela de vítimas negras é menor do que poderíamos predizer dada a taxa de crimes cometidos por negros, já que as mortes pela polícia são uma função da frequência que oficiais encontram suspeitos armados e violentos."

A seguir, Heather cita um artigo científico recente com uma metodologia diferente da que usei acima. Os pesquisadores construíram o seu próprio banco de dados sobre tiroteios policiais e com isso tentaram prever a raça das vítimas. As conclusões, contudo, foram bem semelhantes:

Não encontramos evidências de disparidades anti-negras ou anti-hispânicas nos tiroteios, e os oficiais brancos não são mais propensos a atirar em civis minoritários do que os oficiais não brancos. Em vez disso, as taxas de criminalidade específicas de cada raça predizem fortemente a raça do civil.

Officer characteristics and racial disparities in fatal officer-involved shootings
David J. Johnson, Trevor Tress, Nicole Burkel, Carley Taylor, Joseph Cesario
Proceedings of the National Academy of Sciences Aug 2019, 116 (32) 15877-15882; DOI: 10.1073/pnas.1903856116

Curiosamente, pouco tempo depois de Heather ter feito a citação acima, os autores pediram que seu estudo fosse retirado da revista em que foi publicado (PNAS). Por quê? Eles alegam que o estudo vinha sendo mal interpretado e citam como exemplo os textos da própria Heather. Mas não vi nenhuma inconsistência entre a interpretação dela e as conclusões do artigo.

Um artigo científico é moeda valiosa na carreira de um pesquisador e a última coisa que ele quer é ter que abrir mão de um, especialmente quando não há, como afirmam os próprios autores, nenhum problema metodológico. Heather acha, e eu concordo, que os autores simplesmente praticaram autocensura pela pressão social decorrente de terem publicado dados que não condizem com a narrativa política dominante.

Apesar das aparentes boas intenções, o problema com essa e qualquer outro tipo de censura é que ela impede o pleno funcionamento do melhor mecanismo corretor de erros que conhecemos: o embate de ideias. Favorecer apenas uma narrativa e demonizar a crítica torna mais provável que ideias ruins não sejam corrigidas. E ideias ruins podem prejudicar justamente quem se intenciona ajudar.

Negros são as maiores vítimas da violência

 <em>Cartaz espalhado nas ruas de Boston durante as manifestações anti-racismo do Black Lives Matter</em>
Cartaz espalhado nas ruas de Boston durante as manifestações anti-racismo do Black Lives Matter

O cartaz acima, espalhado pelas ruas de Boston durante as manifestações antirracistas desse ano, é um exemplo disso. Nele podemos encontrar nada mais nada menos que a proposta de abolição da polícia. Crimes não-violentos, segundo a proposta, deveriam ser descriminalizados e chamadas de emergência atendidas por assistentes sociais. Como exatamente um assistente social vai prender um assassino, sequestrador ou estuprador que apresente alguma resistência não é informado. Linchamento popular? Talvez seja isso o que a alternativa proposta de “responsabilidade comunitária (ajuda mútua)” se refira.

É difícil acreditar que em condições normais essa proposta receberia qualquer atenção. Mas como ela é defendida por movimentos ditos antirracistas, inclusive por uma congressista negra recém-eleita, ela recebe espaço até no New York Times. E criticá-la traz consigo o risco altíssimo de ser tachado de racista.

O mais irônico é que se uma proposta dessas fosse realmente levada a cabo ela prejudicaria justamente o grupo mais afetado pela violência: os próprios negros. Esse é outro fato que por não se encaixar muito bem na narrativa do racismo tem recebido menos atenção do que merece.

Os dados mais recentes (entre 2014 e 2018) mostram que negros tem 1,13 vez mais chances de serem vítimas de crimes violentos (excluindo homicídios) que brancos, 1,17 vezes mais que latinos e 2,24 vezes mais que asiáticos. Quanto aos homicídios, a prevalência é ainda maior. Negros têm seis vezes mais chances de serem vítimas que brancos. E dentre as vítimas negras, 93% foram mortas por outros negros.

Essa talvez seja a grande tragédia desse tabu que se formou ao redor das questões raciais nos EUA: a supressão de opiniões e dados que poderiam ajudar a diminuir o problema da violência na comunidade negra e a perda de tempo com ideias que podem inclusive piorá-la.

*André Luzardo é criador e editor do Raciocínio Aberto. Pesquisador postdoc em Ciências Cognitivas na Boston University (USA). PhD em Ciências da Computação pela City, University of London e Matemático pela University of Edinburgh (UK).

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