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Guarda Municipal de Balneário Camboriú invade o apartamento da bailarina Natacha Horana: limites da lei
Guarda Municipal de Balneário Camboriú invade o apartamento da bailarina Natacha Horana: limites da lei| Foto: Reprodução

Na madrugada de segunda-feira, dia 20, a Guarda Municipal de Balneário Camboriú, no litoral norte de Santa Catarina, invadiu, com apoio da Polícia Militar, um apartamento onde 20 pessoas realizavam uma festa. O imóvel havia sido alugado para o fim de semana. Com base num decreto municipal, instaurado pela prefeitura local, que proíbe reuniões privadas durante a pandemia, os guardas entraram no imóvel e prenderam a bailarina Natacha Horana, de 28 anos.

Alegando que ela resistiu à prisão, por não abrir a porta de seu quarto e, na sequência, tentar filmar a abordagem policial, os guardas detiveram, imobilizaram e algemaram Natacha, sobre a cama onde ela estava sentada, sozinha. Ela foi conduzida para uma delegacia da Polícia Civil. Lá, permaneceu calada e assinou um termo circunstanciado.

O decreto municipal local prevê multa de R$ 5 mil para o organizador da festa (no caso, a própria Natacha) e de R$ 5 mil para o proprietário do imóvel. Os demais participantes da festa foram abordados e obrigados a fornecer nome e dados pessoais. Estão sujeitos a denúncia do Ministério Público estadual.

Em nota à imprensa, a bailarina afirmou: “Após receber um chamado, guardas municipais invadiram o apartamento juntamente com fiscais municipais, sem que ninguém da casa permitisse o ingresso dos agentes”. O relato prossegue: “A bailarina estava dentro de seu quarto durante todo o período da reunião e por não estar participando, acreditou que não seria necessário abrir a porta do cômodo em que já estava acomodada. Exaltados e sem paciência para explicação, rapidamente os agentes da Guarda Municipal de Balneário Camboriú, então, arrombaram a porta do cômodo”.

Na mesma nota, o advogado da bailarina, Carlos Felipe Guimarães, afirma: “Inadmissível a postura dos agentes, pois não havia situação de flagrante delito que justificasse a invasão do apartamento, bem como detiveram Natacha à força sob fundamentos ilegais, além dos guardas usurparem a função da Polícia Militar, estabelecida na Constituição Federal”.

Ouvido pela reportagem, um dos funcionários da prefeitura que participou da ação, e depois pediu exoneração, Ed Rocha Júnior, alega que a bailaria reagiu com agressões quando os agentes entraram no imóvel. "A fiscalização tem que entrar para confirmar que não tem festa -- não precisa de mandato, é uma denúncia. Há um decreto. No caso, ali, era uma festa. Era uma média de 20 a 30 pessoas. A gente tem que filmar a partir do momento que a gente entra no espaço. Essas imagens não são para imprensa, são para provar o que aconteceu, caso a pessoa queira recorrer", ele relatou. "Quando eu entrei na porta da casa, veio um homem grande e essa mulher. Começaram a me empurrar para trás. Ela deu um tapa no equipamento da filmagem".

Só então, segundo o funcionário, a dançarina teria se abrigado no quarto. O agente prestou queixa contra a dançarina. "Ninguém é preso pela festa. Ela foi presa por me agredir, eu estava como servidor público".

Sobre o arrombamento, o agente disse que "não é orientação arrombar a porta. Eles vão acompanhados de alguém do prédio."

“Brutalidade lamentável”

Outros casos semelhantes vêm se repetindo em todo o país. Em abril, em Tibau do Sul, no Rio Grande do Norte, um organizador de uma festa de aniversário foi detido pela Polícia Militar, também com base em um decreto local que proíbe aglomerações.

Em Brasília, em junho, um morador de condomínio, que vinha realizando reuniões em sua casa, foi proibido por liminar de continuar levando convidados para encontros em seu imóvel particular, sob pena de multa de R$ 5 mil. Em São Paulo, em maio, o Tribunal de Justiça local concedeu uma liminar proibindo um morador de realizar reuniões e festas durante a pandemia.

“Do ponto de vista constitucional, agentes policiais não podem entrar na casa das pessoas. É absolutamente arbitrário”, afirma o advogado e professor de direito Igor Silva de Menezes, procurador do município de Mesquita, no Rio de Janeiro. “Do ponto de vista legal, essa moça foi vítima de uma brutalidade lamentável”.

O advogado afirma que a lei federal 13.979, de 2020, que prevê as ações governamentais relativas à pandemia, não autoriza a invasão de propriedade. E por um motivo claro: “Nenhuma lei ou decreto pode desrespeitar o artigo 5º da Constituição, que prevê que a casa é asilo inviolável do indivíduo. Essa é a regra geral: não posso entrar na casa do indivíduo, exceto com o consentimento do morador, salvo flagrante delito à lei penal ou em caso de desastre, para prestar socorro”. Logo, “nenhuma lei municipal pode afetar a inviabilidade do domicílio, nem por decreto, nem por lei”.

Decreto x lei 

Na avaliação do advogado Valdinar Monteiro de Souza, em artigo publicado sobre o assunto, decretos são diferentes de leis no sentido da obrigatoriedade da aplicação. “Lei e decreto não são a mesma coisa, são atos normativos distintos, com força e funções diferentes”, ele afirma. “A lei obriga a fazer ou deixar de fazer, e o decreto, não. É o princípio genérico da legalidade, previsto expressamente no artigo 5.º, inciso II, da Constituição Federal, segundo o qual ‘ninguém será obrigado a fazer ou deixar alguma coisa senão em virtude de lei’”.

O especialista prossegue: “Somente a lei pode inovar o Direito, ou seja, criar, extinguir ou modificar direitos e obrigações. No atual regime constitucional brasileiro, não se obriga nem desobriga a ninguém por decreto, nem mesmo pelo doutrinariamente chamado decreto autônomo, cuja discussão não cabe aqui”.

A diferença, em resumo, diz o advogado, é clara: “Dentre as funções do decreto, a principal é a de regulamentar a lei, ou seja, descer às minúcias necessárias de pontos específicos, criando os meios necessários para fiel execução da lei, sem, contudo, contrariar qualquer das disposições dela ou inovar o Direito”. A diferença é relevante porque as medidas municipais e estaduais que têm baseado a invasão a propriedades privadas têm se apoiado em decretos.

Procurada para comentar as ações que restringem as reuniões privadas em imóveis particulares, a prefeitura de Balneário Camboriú enviou uma nota em que afirma: "Após denúncias, os fiscais, Guardas Municipais e Policiais Militares encerraram uma festa clandestina. Uma mulher foi detida por desacato". Também procurada para comentar as medidas, a Ordem dos Advogados do Brasil, seccional Santa Catarina, não se manifestou.

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