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Mudar um idioma realmente faria diferença na vida de pessoas com gêneros diversos que sofrem com a intolerância?
Mudar um idioma realmente faria diferença na vida de pessoas com gêneros diversos que sofrem com a intolerância?| Foto: Bigstock

Está em alta ultimamente a discussão sobre a implantação de uma possível “linguagem neutra”.

Segundo seus adeptos, o uso de pronomes, adjetivos ou substantivos neutros seria uma forma de acolher e incluir pessoas que não se identificam como masculino ou feminino, chamados de “não-binários”, “no-gender” ou “gênero fluído”. Para eles, o uso de uma desinência neutra (e, x ou @) poderia resolver o problema.

Mas será que um idioma tão complexo como o nosso seria capaz de aceitar uma mudança tão radical? Além de ser uma tarefa hercúlea, a inserção do gênero neutro através de uma desinência não conseguiria cobrir a variedade gigantesca de tipos de palavras em português.

Implantar um pronome pessoal neutro, como elu, não é nem de longe suficiente. O que fazer com pronomes como “meu”, “minha”? Seria preciso modificá-los por completo. E de que adianta um pronome neutro, se o oceano de substantivos, adjetivos e artigos não tiverem também sua versão neutra?

Em língua portuguesa, o gênero das palavras não tem relação com o gênero da coisa nomeada. “A pedra” é feminina, “o fogo” é masculino, mas nenhuma dessas coisas tem sexo.

Da mesma forma, “a pessoa” é uma palavra feminina, embora a pessoa de quem falamos possa ser um homem. Os gêneros de substantivos em português são completamente arbitrários, tendo mais a ver com a evolução do latim do que com gêneros reais de pessoas.

Além disso, a letra final de uma palavra não indica seu gênero. Trocar um “a” por um “e” não faz com que uma palavra seja neutra. “A alface” é feminina; “o elefante” é masculino, e isso nada tem a ver com suas letras. Há quem diga, porém, que palavras como “atendente” e “estudante” são neutras. Não são. Elas são ambivalentes, mas, dentro de um contexto, sempre terão um gênero: o estudante, ou a estudante.

Para um estrangeiro, aprender português é um enorme desafio, justamente por conta dos gêneros, que não são fáceis de identificar na própria palavra. Como explicar para um iniciante, por exemplo, que “pijama” e motorista” são palavras masculinas, mesmo terminando em “a”? Ou que “ação”, “depressão”, “intenção”, são femininas, todas terminadas em “o”?

Nós, que nascemos falando português, decoramos os gêneros das palavras por repetição, mas qualquer pessoa que não fale o idioma terá muita dificuldade para dizer se uma palavra é feminina ou masculina só de olhar para ela.

Existem palavras mais óbvias, como “menino” e “menina”. Essas talvez possam receber uma desinência neutra. Mas, como já explorado, seria muito difícil fazer a concordância correta caso outras palavras não tão óbvias aparecessem na mesma frase, algo muito provável de acontecer.

Os adjetivos são mais complexos ainda, terminando em uma infinidade de letras diferentes e podendo mudar ou não de acordo com gênero: feliz, triste, alerta, inteligente, veloz, admirável, poliglota, etc.

Idioma neutro, para quê?

A conclusão é que, se realmente fosse possível transformar o português num idioma neutro, seria preciso investir em um artigo neutro muito mais do que em desinências ou pronomes.

Ainda assim, isso seria ignorar que o português tem estruturas neutras herdadas do latim. Os próprios pronomes “isto”, “isso” e “aquilo” são neutros. O gênero neutro do latim se fundiu ao masculino no português, e por isso nossas generalizações são feitas com palavras “masculinas”.

O argumento da evolução linguística sempre é levantado, mas quem o usa esquece que mudanças no idioma são geralmente pequenas, lentas e regionais.

Incluir toda uma nova categoria de palavras não seria uma mudança linguística, mas sim a criação de uma nova língua.

A última reflexão que deixo é: mudar um idioma realmente faria diferença na vida de pessoas com gêneros diversos que sofrem com a intolerância?

Se assim fosse, por que em países que falam inglês, alemão, japonês, todos idiomas neutros, existe também violência, machismo e perseguição contra esses grupos? Mudar o idioma mudaria a forma de pensar do brasileiro, ou só desviaria o foco do que realmente importa, que é proteger e respeitar pessoas, e não palavras?

*Vivian Mansano é licenciada em Letras pela FMU, professora de idiomas e autora de contos e romances.

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