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“Moscou Não Acredita em Lágrimas”, filme de 1980.| Foto: Reprodução

Exercício de imaginação: se tivesse vivido no século XX, e não no XIX, teria Liev Tolstói (1828-1910) formulado a conhecidíssima frase de abertura de Anna Karênina com o sinal trocado? Ao invés de “Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira”, ele observaria o país ao seu redor e diria que toda família feliz é feliz à sua maneira, mas cada família infeliz se parece?

Pois, a depender de diretores de cinema – arte que o grande escritor russo não viveu para ver se desenvolver a pleno – que moram/moraram no Leste Europeu e ambientaram suas histórias no período de existência da União Soviética (1922-1991), da qual a Rússia era a líder, os incômodos, problemas e sofrimentos criados pelo regime socialista foram muito semelhantes para vários dos povos que o vivenciaram (e esses juízos, como se lerá, são corroborados por relatos de jornalistas e escritores que visitaram o então bloco comunista). Lá prevaleciam a tirania, a escassez de produtos, a habitação precária, os projetos pessoais frustrados pela burocracia e pela repressão política, a infelicidade. Um estado de coisas promovido por um Estado totalitário que chegou ao fim há 30 anos.

Daquela série de acontecimentos que chacoalharam o mundo no final da década de 1980 e início da 1990, um nome se ergue como incontornável: Mikhail Gorbatchev. Quase 70 anos após a revolução de 1917 que conduziu à instauração da URSS em 1922, e seguindo-se às ditaduras de Vladimir Lênin (durou de 1917 a 1924), Joseph Stálin (um dos maiores genocidas da História esteve no poder de 1924 a 1953), Nikita Kruschev (1955 a 1964; morreu em 1971 no esquecimento e sem receber honras de estado, por ter denunciado os crimes de Stálin), Leonid Brezhnev (1964 a 1982) e Yuri Andropov (1982 a 1984), o então Secretário-Geral do Partido Comunista assumiu o governo em 1984 percebendo – antes tarde do que nunca – que havia algo de muito podre no reino do comunismo. Para tentar salvá-lo, propôs duas reformas liberalizantes: a Glasnost, abertura política, e a Perestroika, reestruturação econômica. Gorbatchev só não imaginava que, por essas pequenas brechas no sistema, vazariam décadas de insatisfação represada. Com as medidas, os 15 países que compunham a URSS passaram a atuar com mais autonomia e até a reivindicar separação. Demandas populares e crises econômicas se avolumaram. Infelicidades, todas parecidas, vinham à tona em cada canto.

Inclusive nas nações “satélites” da Rússia via-se muita agitação social: em setembro de 1989, a Hungria abriu a fronteira com a Áustria, estimulando milhares de pessoas da então Alemanha Oriental, socialista, a fugir para lá a fim de alcançarem o Oeste, democrático; em novembro do mesmo ano, “empurrado” por essa fuga em massa e pelas passeatas nas ruas, veio abaixo o Muro de Berlim; pouco mais de um mês depois, na Romênia, o ditador Nicolae Ceausescu, frente a protestos, tumultos e greves que forças oficiais tentaram mas não conseguiram reprimir, caiu e, ao lado da esposa, foi preso, condenado e executado em 48 horas; na Polônia, um ano depois, o líder do sindicato independente Solidariedade, Lech Walesa, ganhou as eleições presidenciais.

No Kremlin, Gorbatchev assistia à rápida agonia do comunismo sem buscar interferir, o que fez a linha dura do Partido Comunista Soviético e a KGB darem um golpe de estado, em 19 de agosto de 1991, enquanto ele passava férias na Crimeia. Quem capitaneou a resistência foi outro nome fundamental nessa história: Boris Yeltsin. Em três dias, apoiado pelos milhares de cidadãos que barravam a passagem de tanques do exército nas ruas, o então presidente russo conseguiu reverter a situação. Gorbatchev voltou a Moscou, porém, ainda que vencidos os golpistas, na prática ele já não mandava mais. Com diversas repúblicas (Letônia, Estônia, Lituânia, Ucrânia...) declarando independência da URSS sob anuência dele, Gorbatchev definhou em importância até o dia 25 de dezembro, quando enfim renunciou, num discurso televisionado para o mundo inteiro. Naquele Natal, a União Soviética morreu.

70 anos de comunismo se refletem em livros, peças e filmes

Acabavam ali as sete décadas sob o comunismo, um tempo que, feito uma ferida ainda não de todo cicatrizada, é constantemente lembrado e comentado pelas sociedades da Europa Oriental – e isso, é claro, se reflete em parte nas produções culturais. O tema aparece em livros, como os da nobelizada bielorrussa Svetlana Aleksiévitch e os da nobelizável Liudmila Ulítskaia, só neste ano publicada no Brasil; em peças de teatro, a exemplo das escritas pelo romeno Matéi Visniec, e muito também no cinema, uma arte que os russos, por sinal, sempre desempenharam bastante bem, tanto o tipo mais “cabeça”, de diretores como Andrei Tarkovski e os pioneiros Serguei Eisenstein e Dziga Vertov, quanto o mais “acessível”, como o de Moscou Não Acredita em Lágrimas, produção da própria URSS que foi o último dos três títulos soviéticos a serem escolhidos Melhor Filme Estrangeiro na história do Oscar, em 1981.

O diretor, Vladimir Menshov, morreu em julho último, de Covid-19, aos 81 anos. Da Romênia, em 2009, veio o divertidíssimo Contos da Era Dourada, reunião de seis narrativas que transcorrem nos últimos 15 anos da ditadura de Ceausescu; e da Polônia, o também premiado (Melhor Roteiro no Festival de Berlim) Estados Unidos Pelo Amor, de 2016, cuja história se desenvolve naquele 1990 recém-saído do comunismo. Encontráveis no streaming e no YouTube, os três filmes são ótimos – densos sem serem chatos – e permitem obter uma ideia de como era a vida no Leste Europeu antes e logo depois do colapso dos regimes socialistas. Vamos a eles.

Os russos também choram

Entrega dos prêmios Oscar, 1981, categoria Melhor Filme Estrangeiro. “And the winner is...”, fala a jovem atriz Brooke Shields antes de passar o envelope ao diretor italiano Franco Zeffirelli, que enfim anuncia : “Moscow Does Not Believe in Tears”. Sobe ao palco para receber a estatueta, no entanto, não o diretor Menschov ou as suas atrizes Vera Alentova e Irina Muravyova, e sim o adido cultural da embaixada da União Soviética em Washington, Anatoli Dyuzhuv. Faz um discurso de agradecimento protocolar, “I would like to express many thanks to the Academy...” etc., e pronto, sem afetar muita alegria pela visita à celebração americana. Estava incomodado com o uso da palavra “winner”, usada na entrega do prêmio antes de a Academia mudar a frase para “And the Oscar goes to...” e tão antipática a um ouvido formado por uma ideologia de oposição à competição, à valorização do mérito e outros princípios do sistema capitalista? Não parecia. Até porque o filme ali contemplado não deixa de ser uma história de ambição e de busca por liberdade e, de novo, felicidade, sentimentos e valores que Karl Marx talvez não tenha percebido (ou querido perceber) serem desde sempre acompanhantes do ser humano e que, também por isso, o modelo “justo” que ele desenhou numa prancheta, e que Lênin pôs em prática na Rússia, não conseguiu reprimir por muito tempo.

Presumivelmente, por ter sido feito antes da Glasnost, Moscou Não Acredita em Lágrimas é um filme um tanto generoso com o cotidiano da União Soviética. Abre com planos bonitos da capital russa, sob os créditos em fonte cirílica, aliados à canção Aleksandra, Aleksandra, composta para a trilha sonora – a letra, segundo uma tradução disponível no YouTube, diz que “Moscou não escondia as suas preocupações/ Moscou já viu de tudo/ (...) O amor de Moscou não se conquista rápido/ mas é fiel e puro”. Um comentário, é claro, das trajetórias das amigas Lyudmila, Toña e a protagonista Katia, as quais, ficamos sabendo, partiram do interior da Rússia para tentar uma vida melhor na capital e, quem sabe, até casar com um diplomata, médico ou acadêmico moscovita (atitude que pode causar espanto na fatia do público atual que avalia filmes de décadas atrás com régua do tempo presente).

A narrativa começa no ano de 1958, com Katia lamentando-se às duas amigas, com que divide um quarto de uma pensão chamada "Residência do Trabalhador", por não ter passado no teste para o curso de Engenharia. Em seguida, o filme nos apresenta os cotidianos das moças: os cortejos e namoros, o trabalho barulhento na fábrica de materiais de aço, as pressões dos sindicalistas (“Quando você vai colaborar com o sindicato? Sabe há quanto tempo você não paga?”, pergunta um senhor a uma colega de Lyudmila), a curiosidade dirigida a quem visitara países ocidentais (“Rodolfo disse que, no Ocidente, todas as festas são feitas em restaurantes. É lá que eles dão refeições deliciosas?”).

As amigas mentem aos pretendentes que são moscovitas genuínas e ricas, o que para Katia, em específico, rende consequências maiores do que só embaraços: após descobrir a mentira, o seu namorado a deixa, mesmo sabendo que ela, como convém a um bom melodrama, está grávida. Ao pedir-lhe ajuda para fazer um exame, Katia ouve: “Vá para a clínica da fábrica, mesmo. Afinal, temos o melhor serviço médico do mundo”. Como se isso não bastasse para o público concluir que está diante de um “novelão”, Katia ainda resiste à ex-futura sogra que oferece dinheiro para ela os “deixar em paz” e decide criar a filha, a Aleksandra da canção, sozinha.

O roteiro, então, dá um salto temporal, e passamos a ver Katia promovida a um cargo de chefia (conquistado, o filme dá a entender, com estudo e esforço, daí a observação de três parágrafos acima) e membro do Soviete de Moscou; no amor, porém, a vemos ainda um tanto iludida e infeliz, até que lhe surge aquele tovarich bacana que sempre surge em histórias assim – mas que, em outra postura que pode chocar olhos contemporâneos, fala à mesa do jantar que “Quem decide tudo aqui sou eu, porque sou o homem da casa”, para Katia responder com um simples “Perdoa-me”. Sim, na Rússia socialista.

As pessoas se chamando de “companheiro” e “trabalhador”, as gôndolas dos mercados com pouca variedade de produtos e a circulação dos carros Lada e Trabant também são traços da vida na URSS que Moscou Não Acredita em Lágrimas exibe. Estão ali ainda a arquitetura construtivista dos prédios e a decoração simples dos apartamentos. Aliás, logo na primeira cena, a das amigas no quarto de pensão, notamos este aspecto da sociedade comunista sempre lembrado: as condições desconfortáveis de moradia.

Uma testemunha disso foi o americano Will Rogers (1879-1935), cronista e humorista que acaba de ter uma coletânea de textos publicada no Brasil (Ed. Gryphus, org. e trad. Lucas Colombo). No artigo "Um Relato sobre a Rússia", de 1934, produzido após uma viagem ao país, Rogers conta que, lá, viu “muita construção civil também. Los Angeles, mesmo no auge, não estava construindo tanta coisa quanto os russos estão. Os prédios todos parecem do tipo baixo custo: cinco ou seis andares de apartamentos. Por isso, quando alguém na Rússia diz que tem um apartamento, não significa que tenha um apartamento como nós conhecemos. Tem um quartinho. E uma divisória não é como a gente conhece. É um lençol pendurado entre uma pessoa e as outras do mesmo cubículo. E podem ser, sei lá, quatro pessoas – quatro desatinados vivendo no mesmo apartamento. O problema da habitação lá é horrível”. Quase uma descrição do cenário da sequência que abre o filme.

Assistimos também, na primeira fase, a uma cena em que as moças, na então Praça Maiakovski, passam por um homem que discursa para um grupo de pessoas embaixo da estátua do “poeta da Revolução”. Prática que, ainda segundo Will Rogers, parecia mesmo corriqueiro por lá: “Tentam manter o patriotismo sempre em alta. A Rússia funciona como um time de futebol, o tempo todo com palavras de estímulo. Se o cidadão não está trabalhando, está ouvindo um outro discursar e discursar e discursar, é assim o tempo inteiro”. E por falar em estátuas, outra personalidade representada por muitas delas na Rússia comunista – e ainda hoje – não faltou ao olhar do cronista americano: “Para os jovens, Lênin é o único grande homem de que já se ouviu falar. Bom, nós temos os nossos heróis também, existem muitos deles e conhecemos os heróis dos outros países, porque nos é permitido ler toda a literatura do mundo. Mas os russos conhecem só um. Por aí se vê como ele foi transformado em uma religião no sistema deles."

No mais, em Moscou Não Acredita em Lágrimas vão certos clichês de filme romântico, em meio a alguns bons diálogos (“Você não era tão cruel assim”, diz o ex-namorado de Katia ao reencontrá-la muitos anos depois; “Eu tive professores muito bons...”, retruca ela). E as cenas de choro que não pouco aparecem fazem pensar que o título do filme carrega certa dose de ironia.

Comédias da vida pública

Contos da Era Dourada, de 2009. Foto: Reprodução.
Contos da Era Dourada, de 2009. Foto: Reprodução.

Embora as derrame, Moscou pode até não acreditar em lágrimas, mas Bucareste e outras cidades da Romênia parecem crer em lendas urbanas relacionadas ao período que a propaganda comunista chama de “Era de Ouro” do país, o governo Ceausescu (1965-1989). Algumas, por certo, até bem ilustrativas de como eram a vida “oficial” e a cotidiana nos últimos anos da ditadura. Tanto que fizeram um filme a partir delas. Saiamos, portanto, do melodrama do título anterior e vamos à ótima comédia Contos da Era Dourada, conjunto de curtas-metragens que vão da ironia à caricatura sem deixar de ressaltar o humor involuntário emanado de quase toda situação em que uma dúzia de burocratas tenta definir os rumos e o modo de pensar de uma sociedade inteira.

Dos seis episódios, todos muito bem contados, quatro são os mais engraçados e representativos. Em "A Lenda da Visita Oficial", a prefeitura de uma comunidade pacata do interior que prepara a visita de uma alta autoridade, com toda a breguice exigida – bandeira nacional e do Partido, coral infantil que entoa canção ufanista, encenação de júbilo ao ver a comitiva –, acaba presa a uma situação ridícula provocada por um burocrata que supervisiona e decide por todos.

"A Lenda do Ativista Zeloso" mostra um tovarich convocado a dar aulas numa aldeia remota e precária, com 10% de analfabetos, para a qual ele ruma com todo o fervor do cumprimento da missão educadora, logo frustrada (“Mas se todos souberem escrever, quem vai cuidar das ovelhas?”, pergunta um camponês).

Em "A Lenda dos Vendedores de Ar", um casal jovem, formado numa festa em que a principal “atração” era uma sessão clandestina de Bonny and Clyde num videocassete aparentemente contrabandeado, aplica um golpe: mentindo ser funcionário do “Ministério da Química”, passa nas casas e pede garrafas com amostras da água e do ar (?!), sob o pretexto de aferir-lhes a qualidade (a indústria pesada comunista poluía muito), e depois as revende (“Ninguém vai me prender. Meu tio é secretário do Partido. Um telefonema e estou fora”, diz o rapaz).

E, por fim, em "A Lenda do Fotógrafo Oficial", segmento que merece especial atenção, vemos um jovem cuja tarefa é retocar elementos “politicamente inapropriados” nas fotos a serem publicadas no jornal oficial, distribuído “aos trabalhadores” e ao Partido, sempre sob a decisão final de um comitê de burocratas-editores/censores. Numa dessas imagens, em que o “comandante supremo” Ceausescu aparece com chapéu retirado e numa posição mais baixa que a do presidente francês ao seu lado, o que poderia ser lido como submissão à “sociedade capitalista”, o fotógrafo é obrigado a fazer consertos em poucos minutos. É claro que algo sai errado.

Pois sim: pode-se dizer que essa história trata da produção do que hoje chamamos de fake news. Eis uma prática de que os comunistas podem não ter sido precursores, mas que aprimoraram muito e, é claro, deixaram como “ensinamento” a alguns adversários ocidentais (se bem que, como observa este artigo da revista The New Yorker sobre um livro que compilou fotos manipuladas pelo stalinismo, as mentiras contadas hoje nas disputas políticas da parte de cá do globo, comparadas com as “intencionais, cruas e generalizadas” modificações de registros históricos que os soviéticos faziam, são quase brincadeira de criança).

A respeito dessa faceta do regime, a jornalista e historiadora americana Anne Applebaum, brilhante pesquisadora dos resultados nefastos da experiência socialista no Leste Europeu, comentou, em entrevista ao jornal Zero Hora em julho deste ano, que “[Os comunistas russos] procuraram espalhar mentiras. Uma delas, inclusive, muito famosa, é que a CIA inventou a Aids. Os soviéticos tinham um projeto para vender essa ideia ao mundo, usando supostos cientistas. Levou muitos anos para desmascarar a mentira, e isso hoje pode ser feito rapidamente. Acho que os russos foram os primeiros a entender como essas coisas funcionam. E, mais recentemente, foram os primeiros a criar o ecossistema de redes e fake websites que fazem ecoar outros sites e ideias que se replicam em uma velocidade espantosa. Nos países vizinhos, como a Ucrânia, eles fazem isso há mais tempo”.

Além disso, Contos da Era Dourada, com as muitas cenas, algumas reais, que se ambientam em gabinetes, convenções do Partidão e órgãos públicos com retratos de Ceausescu na parede, também vai ao encontro do que disse outro grande jornalista e escritor, Paulo Francis, num artigo de 1985 (reproduzido na seleta Diário da Corte, de 2012) no qual o tema é a URSS sob a Glasnost – mas o que ele afirma pode ser estendido a todo o então bloco comunista: “Na URSS há constantes de pobreza e de corrupção. Ninguém está no desemprego. O Estado garante alguma coisa. A corrupção é que em todas as estatais (em suma, em toda a economia) há arranjos que permitem a todo mundo, de acordo com a hierarquia, ‘levar algum por fora’. A URSS é uma vasta repartição pública, em moldes muito parecidos com os brasileiros. [...] Tudo é planejado de cima para baixo, sem consulta, teste, de quem está embaixo. A justificativa disso é que a livre concorrência é coisa do capitalismo, e é mesmo”.

(Uma observação sobre Francis: ele está na lista de escritores e intelectuais que professaram o socialismo na juventude e depois, ao saber dos crimes cometidos na União Soviética e na China maoísta, o abandonaram; lista que contém ainda nomes como o dos franceses Simone Weil e Albert Camus e o inglês George Orwell. E há também, naturalmente, a lista daqueles que morreram agarrados às velhas ilusões, na qual se inclui Jean-Paul Sartre, que no fim da vida chegou a apoiar até o tenebroso cambojano Pol Pot.)

Amor livre

Estados Unidos pelo Amor, de 2016. Foto: Divulgação.
Estados Unidos pelo Amor, de 2016. Foto: Divulgação.

Nosso terceiro e último filme não é uma comédia como o segundo, é um drama arguto sobre quatro mulheres envolvidas em relacionamentos, ou quase relacionamentos, desconcertantes. Em conteúdo, portanto, aproxima-se de Moscou Não Acredita em Lágrimas; em forma, contudo, se afasta: o tom não é cândido como o daquele. A fotografia acinzentada e os planos longos e, por vezes, fora de esquadro também são bem menos “digeríveis”.

E é um filme muito interessante. Dirigido por Tomasz Wasilewski, Estados Unidos Pelo Amor mostra a atmosfera de redemocratização daquela Polônia do começo da década de 1990 reverberando nas quatro personagens que ele acompanha. A liberdade que chegava ao país desperta nas professoras Renata e Iza, na ex-miss Marzena e na atendente de recém-aberta videolocadora Agata uma inquietação pessoal. Elas, como o país, também estão mudando, mas num sentido mais íntimo. Dão-se conta de que, até então, tinham vidas... infelizes (é mesmo impossível fugir desse tópico) e sentem-se motivadas a realizar velhos e novos desejos.

Fiquemos nas trajetórias de Marzena e de Agata, as mais significativas. Marzena, entre uma aula e outra de dança “estilo Hollywood” que ela dá num ginásio, recebe fitas VHS gravadas pelo marido exilado no Oeste e, encorajada pela abertura do seu país, sonha em se tornar uma modelo internacional, mas é ludibriada; e Agata, entediada com o casamento, apaixona-se pelo padre que, voltando a Polônia a viver sob liberdade religiosa, acabara de se instalar na cidade e, sem perder tempo, visita as casas para benzê-las e distribuir imagens santas.

São várias, aliás, as cenas ambientadas numa igreja, a simbolizar a intensa retomada da prática da religião pelos poloneses, no pós-comunismo. Vale lembrar que o Papa João Paulo II, que era polonês, foi, naqueles anos 1980 em que o seu pontificado começava, uma das forças inspiradoras para a derrubada do regime: disse “Não tenham medo” à multidão que foi ouvi-lo na primeira visita a Varsóvia como Papa, em 1979, e deu apoio moral ao Solidariedade e a Lech Walesa nos anos seguintes (sobre a campanha antirreligiosa travada pelos comunistas na URSS, esta matéria da Gazeta traz muitos detalhes).

O diretor Wasilewski tem o cuidado de inserir nos diálogos e nos enquadramentos alguns signos da cultura ocidental capitalista que entravam no país, na época. A cena de abertura já situa bem o espectador na conjuntura histórica: sentados à mesa de jantar, os personagens conversam sobre o refrigerante Fanta, os novos eletrodomésticos e as bonitas calças jeans que tinham comprado. Noutra, falam de viajar para o exterior, algo que, caída a Cortina de Ferro, tornara-se bem mais fácil. Noutras, vê-se um pôster da cantora pop americana Whitney Houston na parede do quarto de Marzena.

A curiosidade e a empolgação dos povos do então minguante bloco comunista pelas marcas e hábitos ocidentais, representadas nesses momentos de Estados Unidos Pelo Amor, foram bastante registradas pela imprensa do período. A reportagem "McDonald’s em Moscou", feita por Jonathan Steele para o The Guardian em fevereiro de 1990 e incluída em O Grande Livro do Jornalismo (Ed. José Olympio, 2008), por exemplo, apresenta como foi o primeiro dia de funcionamento do restaurante símbolo do capitalismo finalmente liberado para operar na URSS: “Mais de 20 mil pessoas passaram pelo restaurante da terra da fantasia, que não apenas é maior que qualquer outro no mundo, mas também mais pródigo na decoração. A maioria dos fregueses jamais comera um hambúrguer na vida. [...] Muita gente comprara várias porções para levar para casa. [...] Antes, a fila chegara a dois mil, serpeando por um zigue-zague de barreiras na extremidade da praça Pushkin [...]. O McDonald’s agiu diferente [das outras empresas ocidentais]. Seu vice-presidente, George Cohon, lembra o momento em que um russo olhou a placa diante da porta que diz que o serviço é por rublos. – Isso é Perestroika – disse, radiante”.

Tema inesgotável

O lançamento, dois meses atrás, de DAU. Natasha, longa-metragem que buscou recriar o horror do totalitarismo soviético (e recriar em escala real: ergueu-se um cenário de 12 mil metros quadrados, com milhares de figurantes que passaram a viver lá, e há cenas de violência explícita), é mais um indicativo de que o legado de infelicidade e autoritarismo que o bloco comunista deixou ao se desintegrar vai permanecer como um tema inesgotável, abordado com frequência pelo cinema e por outras expressões culturais. Afinal, a arte também colabora para acertos de contas com o passado. E que passado. “Nosso país, apesar da promessa de seu slogan ‘Tudo em nome do povo!’, parece na verdade haver feito muito pouco pelo povo. Nenhum volume de conquistas na ciência e na tecnologia, agricultura e indústria, balé e viagem espacial pode ajudar alguém a se compreender e a compreender os outros. Nada disso pode nos ajudar a viver e a encontrar soluções para as crises emocionais que nos assediam”, diz a reportagem "O Último Passo", publicada em 1989 no jornal Ogonyok, descrito por, novamente, O Grande Livro do Jornalismo, em que ela está republicada, como “a nau capitânia da Glasnost na falecida União Soviética”, um veículo que foi sucesso de vendas ao abraçar então a defesa da liberdade política. Liberdade que enfim veio, mas cheia de falhas, e depois de cobrar um preço alto.

Foi há 30 anos. Agora é com a História. E com o filme seguinte.

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