No dia 11 de julho foram expedidos mandados de prisão na operação que investiga a chamada “Abin paralela”. Em conversas, agentes da Abin manifestavam a intenção de “achar podres” sobre desafetos do governo Bolsonaro – entre ministros do STF, jornalistas e parlamentares, como Kim Kataguiri, Joice Hasselmann ou Randolfe Rodrigues –, o que se traduzia em monitorar a sua localização sem indícios prévios de fatos relevantes e sem interesse público, mas apenas, segundo a PF, para abastecer as comunicações governistas com eventuais informações desabonadoras encontradas. Os fatos teriam ocorrido desde o primeiro ano do governo Bolsonaro, em 2019.
Se verdadeiros, os fatos apontam um desvio de função de um órgão de Estado, afastando-o do interesse público para atuar em favor de interesses privados do grupo político que circunstancialmente ocupa o governo. Mas grande parte dos cidadãos costuma aplaudir o uso do Estado para perseguir grupos políticos adversários ao deles próprios.
“E o PT?”
Quando essas pessoas são confrontadas sobre a sua posição, a resposta, invariavelmente, é apontar que o grupo rival também adota as mesmas práticas quando está no poder; logo, o seu grupo deixar de fazer o mesmo quando tem a chance seria uma estratégia masoquista, quiçá suicida.
No caso da “Abin paralela”, em particular, muitos apoiadores do governo Bolsonaro vêm apontando reportagens antigas na imprensa que denunciavam uso político da Abin por governos petistas contra adversários.
A resposta convencional a alegações do tipo é estigmatizá-las com rótulos (como “falácia tu quoque”, que significa “você também” em latim), memes (como os populares quadros estáticos mostrando personagens da série japonesa Kamen Rider Den-O, acompanhados da legenda “E o PT?”) e provérbios (como “Dois errados não fazem um certo”).
No entanto, há um fundo de razão no argumento, e é raramente eficaz tentar demover as pessoas de algo ignorando completamente as parcela legítima das premissas que sustentam a queixa.
A política é um jogo de turnos
Uma das premissas verdadeiras é que a política pode ser legitimamente concebida como um jogo sequencial repetido, onde cada agente tem a sua vez e está jogando para maximizar os seus próprios interesses (no caso, implantar as políticas que prefere). Se os economistas usam esse modelo até para descrever relações dentro de uma família, não se pode condenar os cidadãos por pensarem a política da mesma forma.
Grande parte dos brasileiros mal e mal aceitou ser governada pelo presidente Bolsonaro e seu grupo político. Se não puderam evitá-lo, certamente gostariam, como segunda melhor opção, que esse grupo exercesse o poder com a máxima contenção possível na sua vez de jogar — seja na Abin, seja em qualquer outra área.
A única forma de convencê-lo a fazer isso é dando a garantia de que devolverão o favor quando for a sua própria vez. Essa é, no fundo, a função das leis e da Constituição: são acordos onde todos os jogadores se comprometem a respeitar um limite estabelecido.
No caso da nossa Constituição, o limite estabelecido foi o mais rigoroso possível: em tese, todo aquele que ocupa a Administração Pública deve abrir mão de usá-la para favorecer interesses privados, dele ou de seu grupo, e só pode usá-la para avançar o interesse comum.
Quando um dos agentes decide descumprir a sua parte do eventual acordo, as consequências podem ser muito mais longas do que o tempo pelo qual ele ocupa o poder. Isso é porque, na previsão da teoria dos jogos, não existe, em tese, um cenário de equilíbrio quando apenas um agente coopera, porque isso significaria os outros aceitarem ser explorados, dando a sua cota de sacrifício de interesses sem receber a contrapartida. Em vez disso, ou bem todos cooperam, ou a tendência é a situação degringolar rapidamente para uma rixa desenfreada e difícil de reverter. Isso vale para famílias, para países inteiros, e para todos os níveis intermediários de organização.
Círculo vicioso
É fácil perceber em qual dos dois equilíbrios o Brasil se encontra. Prova disso é que a investigação que avança sobre a “Abin paralela” é, ela própria, exemplo do mal que diz combater.
Inserida no Inquérito das Fake News, a investigação foi distribuída sem sorteio ao ministro Alexandre de Moraes, embora o ministro esteja entre as vítimas dos supostos crimes (teria tido a localização monitorada), tendo, portanto, inevitavelmente, interesse privado na solução do caso.
O Inquérito das Fake News foi originalmente aberto de ofício em 2019, em violação a normas processuais, por alguém que também era vítima dos supostos crimes a investigar; qual seja, o ministro Dias Toffoli. O inquérito é um dos mais notórios casos de abuso da força coercitiva do Estado para satisfazer interesses privados dos agentes que ocupam o poder; ao longo de cinco anos, já foi usado contra os mais diversos desafetos de ministros do STF, inclusive por condutas relativamente inócuas, como a postagem de hashtags pedindo impeachment de ministro. Além disso, o Inquérito e seus desdobramentos se tornaram ferramenta explícita de perseguição contra grupos políticos determinados.
Esses fatos são amplamente conhecidos; o que é menos comentado, no entanto, é que os próprios ministros do STF, para defenderem a instauração e manutenção do inquérito, fizeram uso do mesmo argumento “tu quoque”, no sentido de que seria uma reação legítima a um descumprimento prévio de normas por adversários. A narrativa é de que membros do Ministério Público e da Receita Federal estariam, igualmente, abusando de seus poderes para vazar documentos sigilosos e investigar alguns dos ministros. Um dos atos do Inquérito das Fake News já no primeiro ano foi, justamente, ordenar o afastamento de auditores da Receita Federal que estariam investigando as contas dos ministros para “achar podres”; supostamente, em retaliação à atuação dos ministros. Não é muito diferente do que se acusa em relação à Abin
Por sua vez, o suposto clima de retaliação aos ministros do STF, que teria dado causa ao Inquérito em 2019, seria devido à indignação com um dos mais vastos esquemas da história envolvendo abuso de poder para fins privados, qual seja, os escândalos de corrupção investigados pela Operação Lava Jato. A imprensa apurou à época que o estopim para a instauração do Inquérito teria sido um artigo publicado por procurador da Lava Jato afirmando a iminência de um “golpe” do STF à operação. O vocabulário empregado pareceria sugerir que o procurador partia da presunção de que os julgamentos atendiam a putativas motivações alheias à legalidade, que seria a motivação de interesse público. É fácil entender como esse tipo de suposição poderia levar agentes públicos a considerarem justificado violar regras em resposta.
Feudos dentro do Estado
Seria possível estender a cadeia de causalidade até 1500. O resultado é um país onde vige um cenário generalizado de não-cooperação e corrida para tomar o Estado para fins particulares antes que o inimigo consiga fazê-lo.
O Estado brasileiro vai se parecendo cada vez mais com um conjunto de feudos controlados por guerreiros em batalha. A Abin, convertida em órgão de investigação bolsonarista; o STF, em vez de tribunal, força política empenhada em “derrotar” (nas palavras de um dos ministros) grupos políticos determinados; a PF, transformada em agência de investigação particular de ministros do STF (em depoimento ao Senado, um alto diretor da PF admitiu que o órgão estava proativamente examinando manifestações na internet contra a honra de ministros do STF).
O que fica ao léu enquanto isso é o interesse público, abandonado até pelo próprio público, que seria teoricamente o seu titular. Até mesmo os setores tradicionalmente encarregados dessa defesa – como imprensa, sempre guardiã da liberdade de expressão, ou a OAB e os juristas, vigilantes do Estado de direito – abandonaram essa posição e se tornaram verdadeiros cúmplices dos senhores feudais na perseguição aos súditos indefesos.
Uma das previsões da teoria dos jogos é o círculo vicioso pode ser quebrado se um dos agentes tomar a iniciativa de perdoar o adversário e passar a cooperar com as regras na próxima rodada, desde que o adversário responda com reciprocidade. Até o momento, não há quem se habilite.
Hugo Freitas Reis é mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.
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