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O problema é que queremos ter ideias brilhantes sem sacrifícios. Para aprendermos, temos de rejeitar os ídolos do conforto, riqueza e prestígio.
O problema é que queremos ter ideias brilhantes sem sacrifícios. Para aprendermos, temos de rejeitar os ídolos do conforto, riqueza e prestígio.| Foto: Pixabay

Há alguns anos, visitei o Monastério de Grande Chartreuse, casa-mãe da Ordem dos Cartuxos, localizado nos Alpes, perto de Grenoble, na França. Depois de atravessar um pasto, avistei o monastério ladeado pelas montanhas. Os visitantes não podem entrar no monastério, mas um cartaz os convida a irem até uma capelinha escavada no rochedo. Aquilo me dizia que Deus estava esperando minha chegada para encontrá-Lo lá dentro. Eu só precisava entrar e o encontraria em silêncio.

Lembro-me da capela e do cartaz ao ler Lost in Thought: The Hidden Pleasures of an Intellectual Life [Imerso em reflexões: os prazeres ocultos da vida intelectual], de Zena Hitz. Hitz, tutora na St. John’s College, em Annapolis, nos convida a apreciarmos a beleza do silêncio e da vida interior. O problema no âmago da crise das ciências humanas é “sobretudo uma questão de afeto, juntamente com o fracasso da imaginação”, argumenta ela. Os acadêmicos perderam contato com a atividade intelectual humana comum e não conseguem mais justificar por que instituições dedicadas a essa mesma atividade importam.

A solução é lembrar que a vida intelectual é uma dádiva humana importante. Deve-se buscá-la por si só, não como uma forma de participação cívica, memória cultural, justiça social ou produtividade econômica, por mais que tudo isso seja importante.

Um problema da alma

O livro tem uma estrutura religiosa, embora seja voltado a todos os pensadores humanistas, independentemente da convicção religiosa. Hitz acredita que o problema com a educação contemporânea é um problema de alma, uma questão de ideias ruins e sobretudo uma questão de amor equivocado. Ela sugere discretamente que existe uma corrupção comum à vida intelectual e propõe que se estude adequadamente a pesquisa intelectual. Os argumentos e exemplos por ela mencionados se combinam para fazer de Lost in Thought um exame de consciência ou um manual de discernimento para aqueles que se preocupam com a vida intelectual.

O primeiro exemplo mencionado por Hitz é ela mesma. A família dela considerava a prática intelectual uma forma de passatempo que tinha valor em si mesmo, não um meio para se alcançar outro fim. O tempo que ela passou estudando literatura na St. John confirma a importância da vida intelectual, por isso ela decidiu se matricular num doutorado em filosofia em Princeton. Mas as faculdades transformaram a vida intelectual numa forma de buscar aprovação e prestígio à custa dos outros, como parte do que C.S. Lewis chamava de “círculo íntimo”. Seus estudos já não eram livres e abertos, para que não prejudicassem sua posição na hierarquia social acadêmica.

Hitz começou a subir na hierarquia, convertendo-se ao catolicismo ao longo do caminho. Questionando a relevância prática de seu trabalho, ela buscava oportunidades de ajudar os pobres e vulneráveis. Ao fazer isso, ela começou a perceber uma dissonância entre o “caráter anônimo da educação contemporânea” e a conexão pessoal de seu trabalho voluntário. Os acordos e expectativas institucionais da universidade contemporânea praticamente impossibilitavam o tipo de aprendizado de que ela gostava. Um período de reflexão vocacional esclareceu as inconsistências dessa vida: “Percebi que não podia viver uma vida da mente e amar meu próximo como hobby. (...) Tinha de amar o próximo e encontrar uma forma de vida intelectual que expressasse isso”. Hitz pediu demissão e entrou para uma comunidade religiosa católica numa região agrícola de Ontário, onde passou a viver na pobreza e obediência. Esses anos culminaram com uma volta à docência em St. John e a levaram a escrever Lost in Thought.

O bem multifacetado da vida intelectual

Se o trabalho intelectual é trabalho de verdade, argumenta Hitz, ele tem de servir aos outros gerando um tipo específico de bem comum — neste caso, buscando e ajudando os outros a buscarem a verdade sobre si mesmo e o mundo ao seu redor. Esse tipo de aprendizado assume diferentes formas, mas envolve a degustação do objetivo de investigação por si só, não como meio para outro fim. O aprendizado nos leva à verdade sobre o mundo, mas também revela motivações e desejos que escondemos em nós mesmos. Ele nos prepara para aceitarmos o trabalho e as relações que definem nossas vidas. Neste sentido, Hitz nota que muitas pinturas da Anunciação mostram a Virgem Maria lendo quando o anjo Gabriel lhe aparece. A imagem se baseia na ideia que os Pais Apostólicos faziam de Maria como uma leitora esclarecida das Escrituras, cuja vida intelectual a preparou para aceitar se tornar Mãe de Deus.

Hitz usa o filme O Porco-espinho, de Mona Achache, para falar quatro coisas a respeito da vida intelectual. Ela é uma forma de vida interior da pessoa, um lugar de recolhimento e reflexão. Como tal, ela se afasta do mundo, um lugar de competição e luta por riqueza, poder e prestígio. Ela é uma fonte de dignidade, um lugar para se recuperar o valor próprio quando o mundo o nega. E é um lugar para a comunicação com os demais seres humanos. A vida intelectual é, portanto, uma dádiva multifacetada. Conclui Hitz:

É um refúgio dos aborrecimentos; um lembrete da própria dignidade; uma fonte de ideias e entendimento; um jardim no qual a aspiração humana é cultivada; um buraco na parede dentro do qual é possível se recolher das controvérsias atuais para se ter uma perspectiva mais ampla, para se lembrar da herança humana universal. Tudo isso deixa claro, ao menos, que a vida intelectual é um bem essencial para os seres humanos, mesmo sendo um bem entre tantos outros.

Tal vida intelectual requer ócio: tempo livre, exposição ao mundo natural e vácuo e receptividade mentais. Ela também exige afastamento do mundo onde os bens e os seres humanos foram instrumentalizados – os reinos interior e social da ambição, competição e busca pela emoção.

A vida intelectual requer sacrifício

Isso leva Hitz a uma ideia que raramente vi explorada, se é que vi: a vida intelectual é uma forma de ascese, uma busca pela verdade que requer que se negue os outros desejos capazes de se colocarem no caminho dessa busca. Malcolm X embarcou nessa educação transformadora na prisão. Einstein desenvolveu a Teoria da Relatividade enquanto trabalhava como um funcionário num escritório de patentes. Nosso problema, escreve Hitz, é que queremos ter ideias brilhantes sem os sacrifícios que as geram: “Em vez de encararmos a realidade de frente e optarmos por aceitar os custos de certa busca, fingimos que não precisamos fazer escolha alguma”. Não precisamos ir para a prisão ou trabalhar num emprego sem futuro, mas temos de rejeitar os ídolos do conforto, riqueza e prestígio quando eles atrapalham nossa busca pela verdade.

Hitz propõe que escapemos dessas tentações por meio do autoexame filosófico criado por Santo Agostinho em seu Confissões. Ela se atém à distinção que Santo Agostinho faz entre curiositas e studiositas, duas formas de inquietação que ela traduz como “amor ao espetáculo” e “seriedade”. O amor ao espetáculo salta de um tema a outro, buscando a emoção da experiencia primitiva – a dopamina das lutas de gladiadores, da briga de galos e do ato de roubar uma fruta do vizinho. Por outro lado, a seriedade ultrapassa a superfície das coisas rumo ao que há de mais real. Ela se atém ao que é importante e leva o ser inquieto a organizar sua vida de acordo com essas coisas, em vez de organizá-la de acordo com os ídolos do mundo externo e interno.

A seriedade também nos ajuda a evitarmos a corrupção do aprendizado com objetivos políticos. O problema é que a política das palestras e seminários cria facilmente um conjunto de opiniões que se consideram virtuosas e que servem mais como sinais de prestígios e redes de proteção da realidade social humilhante do que como meio de transformar essa realidade. Escreve Hitz:

O impacto da dedicação da vida intelectual à justiça social é perverso. Quando somos tentados a gerar consequências justas de cima para baixo, interrompemos a comunhão do leitor com os autores e, assim, suprimimos a comunidade igualitária do aprendizado que, por exemplo, [o sociólogo] W.E.B. Du Bois encontrou por meio da leitura e estudo. Pior, a busca pela justiça é reduzida a um conjunto de regras para o uso da linguagem ou para as opiniões que podem ser expressas. As palavras corretas da promoção da justiça se tornam instrumentos para censores, protegendo a hierarquia que, no fim, não é tão diferente da hierarquia que levou à revolução. A justiça social se torna não apenas trivializada como também vazia de conteúdo, usada com objetivos contrários aos objetivos que ela prega.

Por outro lado, o questionamento real motivado pela seriedade faz com que passemos pelas palavras vazias rumo à realidade humano imersa no sofrimento. Hitz diz não ter um argumento para a seriedade como agente de transformação, mas ela tem um exemplo: a ativista católica Dorothy Day, cuja vida de compaixão e protesto foi impulsionada pela leitura voraz, uma vida interior profunda e “a tentativa constante de viver o que ela lia”. A própria Day dizia que o sentido da sua vida era “ser digna da visão moral da Igreja e de alguns de meus escritores preferidos”. Ela via o perigo da busca pelo espetáculo e prestígio no trabalho junto aos pobres e pela paz, mas lutava contra isso sempre em busca por compreender o que é mais importante – isto é, com a virtude da seriedade. Seu aprendizado era a fonte de seu ativismo e guardião de sua autenticidade.

Conhecimento, questionamento e verdade

Hitz também diz que sua visão da educação como um exame profundo e colaborativo não tem “praticamente nada a ver com o que se chama comumente de ‘conhecimento’ — a absorção de opiniões corretas”, que até mais do que o prestígio e a justiça social é a moeda corrente da academia. Isso significa que a educação verdadeira não tem a ver com guiar os alunos à resposta certa nem com apresentá-los às principais opiniões de determinado campo de pesquisa. Isso também significa que a tática mais comum de luta ideológica na universidade, a diversidade de opiniões entre os docentes, é igualmente equivocada. O debate não é uma “violência intelectual” o bastante para romper as racionalizações quanto ao que acreditamos, argumenta Hitz. A profusão de vozes no debate acadêmico jamais será tão eficiente quanto a discussão séria das questões humanas fundamentais. Portanto, conclui ela, “a promoção da diversidade de opiniões é quase tão superficial e desumanizadora quanto as formas de doutrinação que ela pretende substituir”.

Isso é verdade, em certo sentido. Mas despreza o papel que a verdade exerce na investigação humanista. Se essa busca é a busca pela verdade, devemos esperar encontrar a verdade ao longo do caminho, mesmo que a encontremos parcialmente. Se nos deparamos com um caco da verdade, não devemos contar isso àqueles que guiamos? Sugerir aos alunos que a verdade é parte fundamental da investigação intelectual ajuda nessa investigação, e não a prejudica. Os alunos podem rejeitar a verdade ou levar o professor a ter uma visão mais sutil de uma questão que ele considerava respondida, mas o questionamento deles é mais rico por causa dessa verdade.

O que devemos fazer com as verdades que encontramos em nossa busca? Que tipo de mentalidade pode nos ajudar a entendermos como essas verdades se encaixam? Relatos clássicos da busca pela verdade, como o A Ideia de uma Universidade, de John Henry Newman, sugerem a unificação da teologia e filosofia nas artes. Em outras palavras, o aprendizado requer uma doutrina ampla capaz de justificar nossa busca e nos ajudar a entender o que encontramos. Essa doutrina costumava ser o Cristianismo, e em alguns lugares ainda é. Na maioria das universidades, contudo, é algum outro tipo de humanismo secular — como define Anthony Kronman — ou progressismo. Algumas dessas doutrinas são melhores do que as outras na busca pela investigação humanista? Ou será que alguns dos problemas da academia contemporânea mostram que algumas doutrinas acabam por prejudicar essa busca?

Deixando de lado essas questões, Lost in Thought é a maior defesa das humanidades em anos. A investigação intelectual é um bem humano importante e negligenciado, e deveria ser reconhecido como tal. As ciências humanas importam porque a vida humana importa. Uma vez bem vivida, a vida intelectual é uma vida asceta que pede renúncia e sacrifício. Mais do que tudo, a seriedade exige que continuemos buscando as verdades da existência humana, nos alinhando com elas. Por fim, a obra de Hitz não é apenas uma reflexão bela, mas também desafiadora. Se ela tem razão, muitas coisas no mundo acadêmico terão de mudar, a começar por nós mesmos.

Nathaniel Peters é editor-colaborador do Public Discourse e diretor do Morningside Institute.

© 2020 The Public Discourse. Publicado com permissão. Original em inglês
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