Em meados da década de 1930, as famílias alemãs costumavam se reunir em torno de um Volksempfänger, ou o “Receptor do Povo”, nome dado a uma série de aparelhos de rádio de baixo custo, desenvolvidos pelo engenheiro Otto Griessing a pedido do ministro da propaganda, Joseph Goebbels.
Era uma forma de garantir que a mensagem do partido alcançasse o maior público possível, facilitando o acesso ao instrumento de comunicação em massa mais influente disponível à época. Deu certo: o modelo Volksempfänger 301, que custava aproximadamente metade dos concorrentes equivalentes, respondeu por metade das vendas na Alemanha em 1933, e por 75% do total no ano seguinte.
Como qualquer outro aparelho da época, estes dispositivos captavam ondas de rádio de qualquer lugar. Mas vinham com um alerta, um adesivo com um texto: “Ouvir canais estrangeiros é um crime contra a segurança nacional do nosso povo. Por ordem do Führer, esta prática é punida com penas severas de prisão”.
Em outras palavras, antes mesmo do início da Segunda Guerra Mundial, buscar informações confiáveis de fontes fora da Alemanha havia se tornado proibido. Desde 1933, qualquer cidadão do país que fosse identificado ouvindo as Feindsender, ou “estações de rádio inimigas”, estaria sujeito à prisão. Ouvir emissoras alemãs clandestinas, que criticavam o regime, também era barrado, assim como manter em casa aparelhos que permitissem enviar sinais de rádio – uma forma clara de limitar a liberdade de expressão.
Resistência bem sucedida
A localização geográfica da Alemanha facilitava o alcance de ondas de rádio vindas de dezenas de países, especialmente Rússia e Inglaterra. A partir do momento em que o governo de Hitler chegou ao poder, estas nações se tornaram os principais alvos da perseguição policial, mas não apenas: além da Rádio Moscou, também a Rádio Vaticano e a Voz da América, dos Estados Unidos, eram consideradas especialmente perigosas.
Ouvir qualquer tipo de propaganda comunista, ou de notícias sobre a igreja católica, ou buscar as informações dos noticiários da BBC, levavam direto para a cadeia. A emissora britânica, aliás, mantinha até programas em alemão, produzidos por fugitivos da ditadura.
Um dos mais populares, veiculado entre 1940 e 1943, era “Ouça, Alemanha”, uma série de programas em que eram lidas cartas produzidas pelo escritor alemão Thomas Mann, exilado desde 1933. Os textos seriam posteriormente publicados, mas foram escritos precisamente para levar aos conterrâneos mensagens a favor da liberdade. O Prêmio Nobel de Literatura de 1929 gravou ao todo 58 programas a partir de Los Angeles, onde vivia na época.
Durante a guerra, os aliados continuaram enviando mensagens para dentro da Alemanha. Os britânicos se mostraram especialmente bem sucedidos, como aponta a historiadora Stephanie Seul em uma tese produzida dentro da Universidade de Cambridge: o número de alemães que se sentiram à vontade para ouvir a BBC cresceu ao longo do conflito.
“A partir do final de 1942 e início de 1943, após as derrotas desastrosas no Norte de África e em Stalingrado, cada vez mais alemães começaram a ouvir a BBC. O número aumentou ainda mais após a invasão aliada da França. Um relatório da Gestapo de 1941, que chegou à BBC em 1943, estimou a audiência da BBC em cerca de 1 milhão. No outono de 1944, estimava-se que estivesse entre 10 e 15 milhões”, ela relata.
Propaganda eficiente
O que motivou tantos alemães a ouvirem estações de rádio britânicas, a arriscando sua liberdade e as suas vidas? “Por um lado, havia aqueles que se opuseram ao regime desde o início e aproveitaram todas as oportunidades para obter informações não censuradas. Outros foram motivados pela curiosidade porque sentiam cada vez mais que toda a verdade estava a ser ocultada pela sua própria rádio e imprensa”, responde a autora em seu texto.
A forte interferência das transmissões “inimigas”, muitas vezes à custa da audibilidade das rádios domésticas alemãs, também indicava o quão perigoso os nazistas consideravam o conteúdo das transmissões britânicas para o moral das massas alemãs. Prova disso é que a propaganda nazista sempre utilizou o rádio e outras fontes para negar e responder às “mentiras de Londres”, muitas vezes sem revelar a fonte. “A BBC conseguiu assim, pelo menos, quebrar o monopólio do Ministério da Propaganda sobre os ouvidos alemães e forçá-lo a um ‘diálogo’ contínuo”, afirma Seul.
Depois da guerra, a BBC recebeu muitas cartas de alemães, agradecendo o esforço, não só com informações, como também com entretenimento. “O sucesso da BBC reside no fato de ter sempre tentado fazer algo mais do que desmoralizar o seu público: o objetivo era dar esperança num mundo melhor no pós-guerra”, diz a autora.
Cultura de delação
Apesar de toda a popularidade das Feindsender, e do aumento da procura na medida em que a Alemanha se enfraquecia durante o conflito, ouvir rádios estrangeiras se manteve uma prática perigosa. Isso porque não havia formas confiáveis de impedir as emissões de rádio de longa distância, ao custo de comprometer também as transmissões do governo local. Ou seja, a Gestapo, a polícia secreta nazista, não tinha como implementar a proibição diretamente. Encontrou então um outro caminho ainda mais perigoso: incentivando as denúncias.
Com apoio dos agentes, começaram então a surgir os casos de vizinhos que denunciavam os moradores ao lado, simplesmente porque supostamente identificavam que eles estavam ouvindo emissoras proibidas. Era difícil comprovar as denúncias, é claro, mas isso pouco importava. Bastava um morador ser denunciado para que a polícia surgisse, com grande estardalhaço, para prender os supostos inimigos do regime.
Em alguns casos, era possível que um primeiro incidente não resultasse em cadeia: se a pessoa estivesse ouvindo jazz, por exemplo, um estilo musical que os nazistas consideravam “degenerado”, ela seria fichada e monitorada ainda mais de perto. Agora, se incorresse no crime de ouvir música não ariana novamente, aí sim o destino seria uma cela. Mas ouvir notícias ou análises de fora era um crime que só se cometia uma vez.
Como relata uma reportagem recente da revista alemã Der Spiegel, as estratégias para escapar das denúncias eram muitas. “Cobrimos o rádio com travesseiros e enfiamos a cabeça embaixo dele para ouvir a BBC”, relatou, por exemplo, Bernhard Vogel, que tinha dez anos em 1943, quando ouvia transmissões em língua alemã de Londres com sua mãe. Frequentemente, perguntava-se às crianças o que seus pais ouviam. Bernhard Vogel sabia o que responder: “O Deutschlandsender, claro!”, respondia ele, fazendo referência ao termo em alemão para as a rede de rádios locais.
Padrão em ditaduras
A Alemanha nazista não representou exceção. O acesso a informações é tradicionalmente barrado em ditaduras, e regimes de exceção também são pródigos em incentivar o denuncismo. Foi assim na União Soviética, onde, especialmente entre as décadas de 1930 e 1940, as denúncias contra familiares e colegas de trabalho se multiplicaram, até mesmo entre filhos contra pais, como aponta a até hoje mal contada história do garoto Pavlik/Pashka Morozov, um garoto de 13 anos morto em 1932, que foi transformado pelo regime em um herói e um mártir depois de ter denunciado o pai às autoridades, sob circunstâncias que ainda hoje não estão claras.
Na China submetida à Revolução Cultural iniciada em 1966, familiares, amigos e colegas de estudos e de trabalho se viram delatando umas às outras, em uma tentativa desesperada por sobreviver à custa de outras vidas. Os casos se multiplicam e envolvem o nome de, por exemplo, Zhang Hongbing, de 16 anos, que entregou a própria mãe ao deixar um bilhete na porta de um guarda, acusando-a de criticar a revolução cultural. Ela acabaria sendo espancada até a morte.
Mas foi na Alemanha Oriental comunista que a prática da delação ganhou seus ares mais sofisticados e abrangentes. Se a Gestapo nazista utilizava 40 mil profissionais para investigar 80 milhões de pessoas, o equivalente a um agente a cada 2 mil cidadãos, a Stasi, o equivalente comunista criado com a divisão do país em dois, chegou a manter, no final década de 1980, 90 mil agentes e 175 informantes para controlar 17 milhões de habitantes, ou um delator para cada 63 moradores. Neste caso, o hábito de delatar maridos, esposas, filhos, amigos e colegas de trabalho deixou marcas profundas na sociedade local. Depois que parte dos arquivos veio à tona, com a queda do Muro de Berlim, famílias inteiras foram desfeitas.
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