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Pepe Le Gambá: fora do novo filme Space Jam
Pepe Le Gambá: fora do novo filme Space Jam| Foto: Reprodução

Quem nasceu até meados dos anos 1990 deve reconhecer a cena: uma cauda peluda, preta e branca, surge em meio a um campo florido, seguida pela fumaça verde que indica um mau cheiro. E Pepe Le Pew (ou Pepe Le Gambá, a depender a tradução), o gambá francês galanteador, se apresenta ao público. Mais adiante, uma gatinha cochila entre as árvores. O padrão de cores leva Pepe a confundí-la com uma fêmea de sua espécie e a tornar a vida de Penélope, a gata, um inferno. Com ares de bobalhão apaixonado e convencidíssimo do próprio poder de sedução, ele a persegue, agarra e beija - contra todos os seus protestos. E, vez ou outra, acaba com a cara em um poste.

Ainda que não fosse um dos protagonistas, Pepe Le Pew sempre foi um dos membros vitalícios da turma dos Looney Tunes, da Warner Brothers (liderados por Pernalonga, Patolino e cia.). Mesmo assim, teve sua cena excluída do novo “Space Jam: Um Novo Legado”, a continuação do sucesso de 1994, dessa vez com o astro LeBron James no papel principal, no lugar de Michael Jordan. A justificativa para a exclusão? Pepe normaliza o assédio sexual e a cultura do estupro.

A cena em que Pepe aparecia já estava gravada, era curta e até educativa: o gambá seria visto como atendente de um café, onde tentaria flertar com a modelo brasileira Greice Santo. Depois de beijá-la nos braços, teria sua investida respondida com um tapa que (nada mais típico do gênero) faria Pepe girar no banquinho em que estava sentado. Em seguida, o gambá contracenaria com LeBron e Pernalonga, a quem contaria que estava impedido de se aproximar de Penélope por conta de uma ordem de restrição. O astro diria, então, que o gambá não deveria mesmo agarrar ninguém sem permissão.

Se havia alguma dúvida de que os cancelamentos não poupam ninguém - nem os que buscam se adaptar às reivindicações justas dos novos tempos -, aí está a prova. No hall dos desenhos animados cancelados da semana, estiveram também as obras do Dr. Seuss, criador do Grinch e de outras séries literárias famosas nos Estados Unidos, estas acusadas de racismo e de conter “representações culturais estereotipadas”; o mesmo argumento utilizado pela Disney para excluir do catálogo infantil desenhos com o mesmo conteúdo.

Essa não é a primeira vez que desenhos infantis são acusados de influenciar o comportamento do público. As primeiras preocupações, contudo, partiram do lado conservador. Nos anos 1950, o psiquiatra americano Fredric Wertham ficou famoso ao culpar as histórias de super-herói pela delinquência juvenil (tema de seu livro “A Sedução do Inocente”) e deu início ao movimento que culminou na criação de código de regulação pelas próprias editoras, o "Comic Code Authority”. Nos anos 1960, a emergência dos movimentos pelos direitos civis e a Guerra Fria lançariam nos Estados Unidos as sementes do que, trinta anos depois, seria conhecido como “guerra cultural”.

“Os desenhos animados sempre foram um excelente veículo para inocular qualquer tipo de visão de mundo ao público, pois dão ao criador a capacidade de apresentar seu ponto de vista de uma maneira muito plástica, usando recursos de caricatura, hipérboles e distorções várias. Não há necessidade de tocar a realidade, tudo é possível. Se, por exemplo, o objetivo é manipular fatos, essa plasticidade permite acirrar ou suavizar o que quer que seja”, explica a tradutora Márcia Xavier de Brito, que recorda que o Patolino, da Warner, e o Pato Donald, da Disney, já foram “convocados” para a Segunda Guerra. Por outro lado, Walt Disney, declaradamente anti-comunista, pôs suas criações em prol do resgate dos valores judaico-cristãos nesse período.

“Vimos os primeiros sinais de batalha ideológica quando, por exemplo, o sindicato dos artistas norte-americano (United Artists), em 1968, resolveu proibir a exibição pública de 11 desenhos animados, criados por volta dos anos 1930, considerados ofensivos no tratamento estereotipado dos cidadãos negros. Esses desenhos animados são conhecidos como os Censored Eleven. A visão de censurar com pretensões de proteger os espectadores, portanto, não é nova – só está sendo utilizada com mais frequência, na base exponencial do crescimento da ideologização”, explica Márcia.

Para a especialista, um componente religioso histórico ajuda a explicar a gênese dos “cancelamentos” à direita e à esquerda nos Estados Unidos, a terra natal tanto do macarthismo quanto do politicamente correto: o puritanismo.“No imaginário norte-americano vemos repetir o episódio das Bruxas de Salém: um ‘inimigo’ põe em risco a autoridade dos que detém o poder (aqui, no caso do cancelamento de animações que veiculam valores ‘do inimigo judaico-cristão’ são demonizadas, o poder de determinar as normas que regem a vida, o bom e o mau, o belo e o feio, etc. é desafiado por uma padrão mais tradicional) e a população divide-se em omissos e delatores, por medo de ser confundida com os ‘inimigos’ ou sofrer represálias”.

Reféns do tempo

Ao que tudo indica, Pepe Le Pew, Dr. Seuss e os avisos que precedem as animações retiradas do catálogo infantil do serviço de streaming da Disney (“Peter Pan”, por exemplo, sai por conta da representação tida como grosseira dos povos nativos) são apenas a ponta do iceberg de um movimento que não conhece limites.

Já há quem considere que o beijo de “A Bela Adormecida” e “Branca de Neve” mereçam ser enquadrados como assédio sexual, dada a condição inconsciente das princesas (o romance pregresso de Aurora e Phillip, bem como de Branca e o príncipe ‘Encantado’, pouco importa - nem a maldição que lhes condenaria à morte se não fosse pelo beijo “assediador”). Da mesma escola, nascem as considerações acerca da “síndrome de Estocolmo” da qual a protagonista de “A Bela e a Fera” teria sido vítima: a centralidade da redenção pelo amor além das aparências dá lugar à submissão a um raptor cruel. Tudo para extirpar a cultura do estupro.

A rejeição extrema ao passado, de modo que lhe recusar o direito de conter as idiossincrasias humanas, também encontra raízes em um movimento histórico. Foi o iluminismo francês quem primeiro postulou que, movida estritamente por uma razão indefectível, a exemplo da ciência e da tecnologia, a moral também deveria evoluir.

"A cultura é entendida como um conjunto de representações que uma sociedade tem e com o qual ela se identifica. E é próprio da democracia a disputa ética, política e pelo imaginário. É onde representamos o que aspiramos para a vida, os modelos que queremos para os nossos filhos", explica Diego Klautau, doutor em Ciências da Religião pela PUC-SP.

"Parte da lógica dos cancelamentos no âmbito da cultura é resultado da crença iluminista em uma moral que vai se aperfeiçoando com o tempo e, para isso, requer que abandonemos por completo os modelos do passado".

"Contudo, para grupos que não cedem ao mito do progresso, segundo o qual tudo o que está no passado merece ser reavaliado e nada tem de sagrado, há uma natureza humana atemporal, com elementos universais que podem estar presentes em produtos culturais", completa o especialista.

Klautau explica que o próprio J. R. R. Tolkien, um católico tradicionalista ferrenho, acusava Walt Disney de “vulgarizar” os contos de fada, extraindo-lhes questões profundas como a própria natureza do Bem e do Mal e subjugando-os aos modismos da época - precisamente, o desejo explícito de educar crianças de acordo com os valores ocidentais. “Este ponto acaba por dar razão ao Tolkien, que acusava Disney de ter perdido a mão da universalidade. Quando você tenta seguir a moda, fica à mercê dos ventos do tempo”.

A guerra da imaginação

Salvo por quem aprova, contra todas as leis do bom-senso, a reprodução do comportamento de Pepe Le Pew na vida real, é difícil imaginar quem discorde que não há nada de razoável em agarrar alguém à força. Da mesma forma, já se sabe que há muito mais a ser representado da cultura africana do que os homens descalços usando saias feitas de grama no clássico “If I Ran The Zoo”, de Theodore Seuss. Há filmes com representações mais fidedignas e plurais dos nativos americanos (vide “Pocahontas”, de 1995) desde Peter Pan, bem como dos povos orientais retratados em “Aristogatas” (como “Mulan”, 1998). Por que, então, se importar em salvar os clássicos do revisionismo descompensado?

"A própria estrutura do mito é polissêmica: pode ter vários significados. “Suas imagens objetivas e seus significados não precisam ter uma ligação direta, pode haver uma interpretação moral”, explica Klautau. “A imagem de Pepe dando em cima da gatinha que não quer nada é objetiva. Mas como a gente vai tratar essa imagem? Posso entender como brincadeira machista porque homem fica bêbado e faz isso mesmo; posso entender que é uma apologia ao estupro que não comporta sequer uma piada. Ou posso tratar como uma denúncia cômica do que não se deve fazer; que fica engraçado porque é ridículo. O problema de encaixar o produto em uma chave interpretativa mata seu valor cultural".

No limite, acusar Pepe de promover o assédio é equiparável a dizer, como na época do Comic Code Authority, que super-heróis incentivam a violência. "O próprio Platão dizia que as crianças aprendem com mitos; mas considera que há elementos de predisposição e, principalmente, que o maior determinante é o repertório com o qual a imaginação da criança será alimentada", diz Klautau.

Nas multiplataformas dos tempos modernos, sobram espaços para novas histórias, com toda a representatividade, as nuances e os olhares adquiridos pela história. O progresso saudável, contudo, deve vir atrelado à capacidade de separar o joio do trigo também no passado. “Uma sociedade inculta tende a ser anacrônica e não consegue ler alguns hábitos sociais ou costumes como fruto de determinada época (vide nosso pobre Monteiro Lobato e sua Tia Nastácia), daí a necessidade de ter tudo ‘traduzido’, explicadinho ‘nos mííínimos detalhes’ como dizia uma personagem de humor”, explica Márcia Xavier Brito.

“Nessa explicação perdemos a sátira, a ironia, o humor, a inteligência e a capacidade de emitir nossos próprios juízos (paradoxalmente, dizemos fomentar o espírito crítico!). Entregamos ao ‘facilitador’ o poder de pensar (e valorar) por nós. Para preservar a liberdade, entregamos a nossa liberdade de julgar, de rir, de ironizar – ou seja, de ser humanos”.

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