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Ao rir da decadência do Império Romano, "O Satiricon", clássico de Petrônio, lança luz sobre a decadência do nosso tempo.
Ao rir da decadência do Império Romano, “O Satiricon”, clássico de Petrônio, lança luz sobre a decadência do nosso tempo.| Foto: Pixabay

Por volta do ano 60 d.C., na era do Imperador Nero, um homem íntimo da corte romana chamado Petrônio escreveu um romance satírico, “O Satiricon”, sobre a corrupção moral na Roma Antiga. O pano de fundo do romance é a transição de Roma, antes uma república agrária, para uma superpotência multicultural globalizada.

O romance sobreviveu apenas como uma série de fragmentos. Mas há capítulos o bastante para que os críticos concordem que o nobre Petrônio, apelidado de “Juiz da Elegância”, era um cínico brilhante. Ele costuma rir das consequências culturais da entrada repentina e problemática de dinheiro e estrangeiros vindos de todos os lugares do Mediterrâneo na outrora tradicional sociedade romana.

O romance conta as aventuras de três jovens gregos preguiçosos, intelectualizados e na maior parte do tempo à toa: Encólpio, Ascilto e Gitão. Eles vagam sem rumo pelo sul da Itália. Eles pedem esmola e se aproveitam dos novos-ricos. Eles riem dos costumes romanos tradicionais. Os três e seus amigos se divertem em meio aos excessos gastronômicos, culturais e sexuais da Era de Nero.

Certos temas do “Satiricon” são eternos e ecoam ainda hoje.

A transição abrupta de uma sociedade de colonos agrícolas para cidades costeiras deu origem a duas Romas. Um mundo era sofisticado e uma rede cosmopolita de comerciantes, conspiradores, investidores, acadêmicos e pessoas íntimas do poder. Os corredores à beira-mar não eram exatamente romanos, e sim mediterrâneos. E eles se viam mais como “cidadãos do mundo” do que apenas como cidadãos romanos.

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No romance, uma riqueza enorme e ser precedentes deu origem a licenciosidades. Aspirantes a cidadãos urbanos bajulam e se aproveitam dos ricos sem filhos na esperança de receberem posses, e não de ganharem seu próprio dinheiro.

Os ricos, por sua vez, exploram os jovens sexual e emocionalmente, oferecendo-lhes falsas promessas de terras como herança.

Petrônio parece rir do próprio mundo em que se regozijava.

As regras tácitas de seu romance contêm pornografia, violência gratuita, promiscuidade sexual, transgeneridade, casamentos adiados, infertilidade, medo do envelhecimento, miséria, desejo de ascensão social, ostentação materialista, adolescência prolongada e trapaças e mentiras como se fossem trabalho.

Os personagens são obcecados por roupas caras, comidas exóticas e adoram citar pretensiosamente nomes de famosos. Eles são os sortudos herdeiros de uma infraestrutura romana dinâmica que abrangeu três continentes. Roma incorporou os litorais do Mediterrâneo por meio da lei, ciência e instituições – tudo sob a supervisão da burocracia romana e do poder avassalador das legiões, muitas das quais formadas por não-romanos.

Nunca na história da Civilização uma geração se tornou tão rica e preguiçosa, tão ansiosa por satisfazer todo apetite possível – e ainda assim tão entediada e infeliz.

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Mas havia ainda uma outra Roma nas sombras. Às vezes os anti-heróis do romance se deparam com geste rústica e antiquada, comerciantes e legionários. Eles são o que hoje chamamos “deploráveis” ou “interesseiros”.

Petrônio sugere que esses durões criaram e mantiveram o enorme Império Romano. Eles são caricaturados como “caipirões”, ao mesmo tempo em que são admirados como pessoas simples e fortes, sem as pretensões e a decadência dos personagens urbanos do romance.

Petrônio é um satirista habilidoso o bastante para pintar uma imagem em branco e preto dos velhos e bons romanos tradicionais em comparação com seus sucessores urbanos corruptos. O argumento dele é mais sutil.

A globalização enriqueceu e uniu os não-romanos, que formaram uma cultura mundial. Foi um feito admirável. Mas tal homogeneização também atenuou os costumes, tradições e valores que geraram o incrível sucesso romano.

O multiculturalismo, urbanismo e cosmopolitismo de “Satiricon” refletiam uma confusão empolgante de línguas, hábitos e estilos de vida em Roma, inspirados na Europa meridional e ocidental, Ásia e África.

Mas o novo império também diluiu um ruralismo nobre e único em Roma. Ele erodiu o nacionalismo e o patriotismo. A riqueza, tamanho e falta de coesão do Império acabou por desprezar a união romana e também o casamento tradicional, a criação dos filhos e a autonomia dos cidadãos.

A educação também era vista como algo ambíguo. No romance, a leitura garante a erudição e a sofisticação e ajuda a ciência a suplantar a superstição. Mas às vezes a educação é ambígua. Os estudantes se transformaram em aproveitadores pretenciosos e preguiçosos. Os professores não passam de gente pedante. Escritores são ordinários e entediantes. Os analistas da elite parecem uns tagarelas sem sentido.

Petrônio parece querer dizer que, fosse qual fosse a Roma de seu tempo, ela provavelmente não poderia se sustentar – mas ao menos seria esplêndido em seu declínio.

Petrônio também argumenta que o progresso material rápido demais dá origem a um retrocesso moral. Seu alerta final talvez seja especialmente complicado para a geração atual de europeus ocidentais e norte-americanos. Apesar de nos vangloriarmos da globalização e da riqueza material e cultural do Ocidental, estamos perdendo nossa alma ao longo deste processo. Casar-se, formar famílias, criar raízes num lugar, trabalhar com as mãos e adiar a gratificação talvez pareça algo entediante e fora de moda. Mas quase dois mil anos mais tarde tudo isso é o que ainda mantém a Civilização viva.

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