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Um vídeo mostrando centenas de prisioneiros algemados e de olhos vendados sendo embarcados em um trem foi postado no YouTube. As imagens feitas por drones foram filmadas na província chinesa de Xinjiang. O vídeo oferece uma rara visão dos centros de “reeducação” administrados pela China, para onde estão sendo transportados um grande número de muçulmanos uigures
Um vídeo mostrando centenas de prisioneiros algemados e de olhos vendados sendo embarcados em um trem foi postado no YouTube. As imagens feitas por drones foram filmadas na província chinesa de Xinjiang. O vídeo oferece uma rara visão dos centros de “reeducação” administrados pela China, para onde estão sendo transportados um grande número de muçulmanos uigures| Foto: Reprodução

Não teve destaque na TV brasileira, mas apareceram filmagens feitas por um drone que mostravam pessoas de cabeça raspada enfileiradas para entrar em vagões. A BBC as divulgou e pôs o embaixador chinês contra a parede. Com toda probabilidade, os prisioneiros são os uigures, a minoria étnica da China, falante de uma língua turca e fé islâmica. São o povo que tem o menor chapéu do mundo, e o Partido Comunista Chinês deu-se, anos atrás, ao trabalho de proibir o uso do menor chapéu do mundo, o taipak. Mas isso é o de menos. Denúncias apontam que as uigures são esterilizadas a força e obrigadas a abortar, homens e mulheres vão para campos de trabalhos forçados, e 13 toneladas de cabelo humano foram apreendidas em um navio chinês.

Deportação em massa por critérios étnicos, toneladas de cabelo humano acumulado… De imediato, pensamos logo nos judeus sob o Holocausto. Com a ironia macabra de que os uigures, sob uma ditadura comunista, são aproveitados pelo capitalismo global. O cabelo não era para manufatura, era para vender a preço de banana com produtos de beleza.

Aqui, sempre há aqueles que querem crer na irrepetibilidade do nazismo. É uma posição preguiçosa e covarde: não quer aceitar que os crimes mais abomináveis sejam cometidos à luz do dia sem que sejam diuturnamente denunciados. Mas Auschwitz saía em jornal?

Um pouco de cronologia

Não saía. Vejamos antes um pouco de cronologia. Os nazistas nunca tiveram um plano bem definido para os judeus. Isto eles tinham para os russos: a raça eslava era considerada inferior à germânica e superior à judaica, e o seu país tomava a área que os nazistas julgavam ser o coração do mundo. Assim, Hitler pretendia invadir a Rússia, destruir as belezas arquitetônicas e reduzir os eslavos à condição escrava. Eles viveriam em miséria, em casebres com teto de palha, e sua educação consistiria somente numa linguagem de sinais e aprendizado de regras de trânsito. O aborto seria estimulado, e até aceitariam ajuda de judeus para promovê-lo. Para aumentar a população germânica, a poligamia estaria liberada para homens que passassem por um processo seletivo eugênico, e os casamentos estéreis seriam dissolvidos por força do Estado. Tudo para otimizar a produção de germânicos e substituir os eslavos por eles.

Os planos maléficos de Hitler para os eslavos ficaram escondidos por anos. Antes disso, a Alemanha nazista estava sendo bombardeada por sanções econômicas, e enfrentava sério desabastecimento. Quem resolveu o problema foi o Camarada Stálin. Em 23 de agosto de 1939, a União Soviética e a Alemanha Nazista assinam um pacto conhecido como Molotov-Ribbentrop, em que acertam a não-agressão e os tratados comerciais. Graças a Stálin, o problema do desabastecimento foi sanado, e somente depois dele Hitler começaria as deportações em massa de judeus. Na verdade, até há um precedente soviético de despachar judeus pro fim do mundo, com a criação de um oblast perto do Japão.

As deportações alemãs começaram no fim de 1939. Os nazistas punha judeus em vagões e os despachavam para a Polônia. O cidadão comum e os judeus não sabiam qual era o destino dos trens, e eram levados a crer que os nazistas construíam belas cidades novas no Leste ocupado. Não se sabe quando execuções em massa de judeus começaram, mas eram feitas com pelotões de fuzilamento. Himmler assistiu a uma no fim de agosto de 1942. Depois disso, quase desmaia e tem uma crise de nervos. Diz ele em seu diário: “Olhei com atenção particularmente para uma família de umas oito pessoas. (…) Uma senhora idosa, de cabelos brancos, segurava nos braços uma criança de um ano: cantarolava para ela e fazia-lhe cócegas; a criança ria, satisfeita. Seus pais a contemplavam com os olhos úmidos. O pai segurava a mão de um menino de uns 10 anos e falava-lhe carinhosamente. O menino esforçava-se para conter as lágrimas. O pai apontou para o céu, afagou-lhe a cabeça, parecendo explicar-lhe alguma coisa. Mas, nesse momento, um homem das SS postado junto à vala gritou qualquer coisa ao seu companheiro. Este separou umas vinte pessoas e ordenou-lhes que fossem para detrás do monte de terra. A família de que falo fazia parte desse grupo. Ainda me lembro de uma jovem esbelta, de cabelos escuros, que, ao passar por mim, apontou para si mesma e disse: ‘Vinte e três anos’. Contornei o monte de terra e descobri a imensa sepultura. As vítimas jaziam tão comprimidas umas contra as outras que a gente só lhes via as cabeças, e de quase todas essas cabeças o sangue escorria sobre os ombros; algumas vítimas ainda se mexiam. Algumas levantavam os braços e viravam a cabeça para mostrar que ainda estavam vivas. Olhei para o homem que atirava. Era da SS.” Os nazistas aprenderam com essa comovente vivência: criaram assépticas câmaras de gás. As informações que uso estão em Hitler, de Joachim Fest, que é fácil de achar.

Mas é um mistério ainda a decisão do destino dos judeus. Em 1941, levantava-se a possibilidade de despachá-los para Madagascar. Não há nenhum documento mandando exterminá-los, e a defesa de Hitler, post mortem, em Nurembergue, alegaria que não há provas de sua culpa.

Em 1941, Hitler invade a União Soviética. Ainda em 1943, Stálin tenta negociar uma paz e retomar a antiga amizade, mas falha. Só lhe resta, portanto, aliar-se ao Ocidente e esperar que algum historiador amestrado – no caso, Hobsbawm – lhe doure a pílula.

Nem mesmo os judeus alemães sabiam dos campos de extermínio. Estes surgiram em 42 e duraram até 45, e só quando o Exército Vermelho conquistou a Polônia o Ocidente pôde ver as toneladas de cabelo humano cuidadosamente dispostas pelos assassinos alemãs.

O que se sabia por aqui?

Durante toda a Guerra, o Brasil viveu sob o Estado Novo de Getúlio Vargas, a mais autoritária ditadura de nossa história republicana, única a acabar com todos os partidos políticos, francamente inspirada nos fascistas europeus e em Perón, que daria guarida a nazistas em fuga depois da guerra.

A imprensa brasileira era pesadamente censurada, e críticas ao regime que contava com as simpatias de Vargas não eram permitidas. A coisa mudou só depois de Vargas se juntar aos Aliados contra Hitler – e isso com ajuda de pressão popular, bombardeios por submarinos alemães e uma usina siderúrgica. Assim, a despeito do seu Líder golpista, o povo brasileiro pode se orgulhar de ser o único da América Latina a lutar contra o nazifascismo. Esta adesão aconteceu em agosto de 1942, mesmo mês em que Himmler escreveu as linhas acima. A partir de então, notícias negativas em relação à Alemanha estavam liberadas.

A Alemanha e o Brasil tinham uma coisa em comum: viviam sob regimes autoritários sem liberdade de imprensa. Logo, para descobrir a dimensão do Holocausto, só ganhando uma guerra. O que chegava aqui eram notícias de judeus desesperados em fuga, procurando algum país que o aceitasse. Mas o Brasil só veio a saber em 1988 o que o seu próprio governo fazia, com o trabalho da historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro intitulado O antissemitismo na Era Vargas. O resumo da ópera é o seguinte: um ex-integralista da facção mais minoritária, e de menor relevância, foi alçado às alturas por Vargas. Era Gustavo Dodt Barroso, arianista e racista. As maiores vertentes do integralismo não eram racistas, muito menos arianista. Era mais fácil encontrar católico (como o humano Hélder Câmara) do que racista. O integralismo era um balaio de gato. Há até um jornal do integralismo negro, chamado A voz da raça, em que Hitler era elogiado por cuidar bem da sua raça, devendo ser imitado pelos negros, os quais deveriam emular Zumbi, que era transformado num Führer de ébano. (Risério trata destes em Os movimentos negros e a utopia brasileira.) Vargas, ao decretar o Estado Novo, rompe com os integralistas, e passa a persegui-los. Por alguma razão, porém, esse Gustavo Barroso passou a apitar no Itamaraty. Outro nome integralista que teve boas relações com Vargas era Rosalina Coelho Lisboa, também racista.

Sob a batuta de Gustavo Barroso, foram expedidas circulares secretas no Itamaraty mandando negar todo tipo de visto a judeus. Judeus vieram para cá ou através de esquemas ilegais, ou de relações pessoais – no que se inclui a desobediência de Aracy Guimarães Rosa, que ignorava as circulares e dava visto a qualquer judeu que quisesse entrar no Brasil. Mas era mesmo muito aleatório. Tucci Carneiro entrevistou uma família que não conseguiu trazer a mãe para o Brasil, nem mesmo se valendo da influência do primo Albert Einstein.

De volta aos uigures

Aconteceu com judeus, e não saía em jornal antes do fim da guerra. O caso dos uigures é sem dúvida muito pior, porque são gente sem rosto e sem expressão cultural relevante no Ocidente. Nenhum uigur tem um primo Einstein para apelar. Ademais, é mais fácil fugir do coração da Europa  para países ocidentais do que fugir da China, uma ditadura totalitária consolidada há décadas, fronteiriça com outras ditaduras, e que tem um poderoso esquema digital de vigilância.

Então é perfeitamente possível que haja uma nova Auschwitz. A questão é: será que sairá em jornal um dia? Ou será que o genocídio terá êxito, e a ditadura comunista viverá o suficiente para que nos esqueçamos todos?

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