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Física quântica: quanto maior a confusão entre os leigos, melhor para os aproveitadores | /BigStock
Física quântica: quanto maior a confusão entre os leigos, melhor para os aproveitadores| Foto: /BigStock

A física clássica oferece equações que permitem prever eventos com precisão: por exemplo, traçar a trajetória de um robô até Marte. Já a física quântica traz equações que fornecem probabilidades: qual a chance de um elétron estar, digamos, dentro ou fora de uma caixa. A forma como a probabilidade que aparece nos cálculos se converte numa posição concreta, observável, no elétron efetivamente dentro ou fora da caixa – o chamado “colapso da função de onda” – ainda é um mistério.

Para muitos gurus de autoajuda, no entanto, não há mistério nenhum. Dizem eles que é a vontade humana que causa a transformação: são os pensamentos que você lança no Universo que fazem com que as nuvens de probabilidade que representam átomos das notas de cem reais materializem-se em sua conta bancária.

De onde vem essa ideia exótica? Recuemos alguns séculos. A filosofia estoica, surgida na Grécia Antiga, propunha uma distinção radical entre aquilo que podemos controlar e o que está fora de alcance. A ideia era que a única coisa realmente sob nosso controle são as reações que temos: ninguém escolhe nascer pobre ou rico, nem ficar doente ou ter saúde. Mas pode-se decidir como viver essas situações: nem todo rico é arrogante, nem todo doente entra em desespero.

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Com o passar dos séculos e o avanço da ciência e da tecnologia, no entanto, o velho muro estoico entre controlável e incontrolável perdeu rigidez. Ao mesmo tempo, a vida nas cidades multiplicava as interações humanas, exatamente as situações em que atitude mental (lábia, personalidade, otimismo) parece mais decisiva. Daí a intuição – que, mostram pesquisas, nem sempre correta – de que atitudes positivas facilitam o sucesso.

No século 19, no rastro das novas liberdades e possibilidades trazidas pela tecnologia e pela agitação social, surgiu nos Estados Unidos uma série de movimentos que ficaram conhecidos pelo nome coletivo de “Novo Pensamento”, preconizando que a atitude mental cria a realidade.

Doenças não passariam de distúrbio emocional ou falta de fé; nenhum problema seria insolúvel, nenhum objetivo inalcançável, desde que houvesse um pensamento correto. Aparentemente otimista, o conceito, além de absurdo – não importa se todos os participantes de um concurso vestibular estão focados no resultado e cheios de inteligência emocional, o número de vagas continua a ser menor que o de candidatos – é cruel, ao transformar vítimas das circunstâncias em vítimas de si mesmas.

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Entre os mascates contemporâneos do Novo Pensamento, há aqueles que usam a física moderna como muleta. Mas o que afirmam contradiz a ciência: mesmo se pensamentos pudessem, de algum modo, induzir o colapso da função de onda, o resultado final – no exemplo acima, se o elétron estará dentro ou fora da caixa – segue as probabilidades impessoais dadas na equação quântica, que nada têm a ver com a intencionalidade humana. Os velhos estoicos talvez fossem muito radicais, mas continuam certos em pelo menos um ponto: há coisas que ninguém controla.

*Carlos Orsi é jornalista e escritor, coautor, com o físico Daniel Bezerra, do livro de divulgação científica “Pura Picaretagem”, sobre os abusos da física quântica no universo da autoajuda

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