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O presidente Jair Bolsonaro sancionou o projeto de lei que cria o programa Auxílio Brasil.
O presidente Jair Bolsonaro sancionou o projeto de lei que cria o programa Auxílio Brasil.| Foto: SECOM/Governo Federal

“Acredito que o melhor programa social é um emprego”. A frase atribuída ao presidente norte-americano Ronald Reagan faz sucesso na direita política de todo o Ocidente. Está em canecas, camisetas e sempre é ressuscitada no debate público quando programas assistenciais de distribuição de renda voltam aos holofotes. Entre os defensores mais entusiasmados do liberalismo econômico, é comum encontrar quem a utilize para justificar o rechaço a qualquer iniciativa governamental que, em última análise, consista em dar dinheiro aos mais pobres, como se fosse uma traição ao ditado popular - tomado como dogma em alguns ambientes - de que “é melhor ensinar a pescar, do que dar o peixe”. No entanto, na história de governos reconhecidamente liberais, e até mesmo na obra de expoentes intelectuais desse meio, encontram-se relevantes evidências de que políticas públicas como o Auxílio Brasil, que passou a ser pago no mês passado aos brasileiros de baixa renda, não são necessariamente uma incoerência para governantes comprometidos com a redução do estado.

Criado para substituir o Auxílio Emergencial e o Bolsa Família, o Auxílio Brasil é apresentado pelo governo federal como o principal programa para redução da pobreza no país, alcançando mais pessoas do que seus antecessores, pagando um valor maior e sem data para acabar.

No passado, o Bolsa Família foi atacado por críticos da gestão petista pelo fato de não ter uma “porta de saída”, entre outros problemas. O ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, em 2016, chegou a dizer em entrevista ao jornal O Globo que o programa era “compra de voto institucionalizada”. Uma década antes, pouco tempo depois do programa ser lançado, o PSDB publicou em seu site institucional manifestações de vários de seus parlamentares referindo-se ao Bolsa Família, por exemplo, como “esmola governamental” e “assistencialismo simplista”.

Entretanto, nem o próprio Lula escapou dessa contradição. Na campanha de 1989, ele criticou a distribuição de cestas básicas pelo governo da época, afirmando que aquela prática consistia numa “peça de troca em época de eleição”. No caso de Bolsonaro, na condição de deputado federal, em várias ocasiões ele emitiu palavras nada elogiosas ao Bolsa Família, apelidando-o até de “bolsa-farelo”.

Programas assistenciais em governos liberais 

Talvez não seja possível determinar com precisão os motivos que levaram à mudança de opinião do presidente sobre iniciativas governamentais de distribuição de renda, mas é certo que Bolsonaro pode encontrar na história significativos exemplos de líderes à direita do espectro político que não abriram mão de programas assistenciais, mesmo tendo o liberalismo como norte econômico.

O próprio Ronald Reagan, quando governou os Estados Unidos na década de 80, apesar dos consideráveis cortes de gastos para deixar a máquina estatal mais enxuta, manteve intactos o seguro social e o Medicare, espécie de seguro de saúde gerido pelo governo. Já sua contemporânea britânica, Margaret Thatcher, cuja imagem é igualmente usada como ícone do liberalismo pop, chegou a reduzir o valor investido em todos os benefícios sociais, mas nunca encerrou aqueles que considerava fundamentais.

Na biografia autorizada que escreveu sobre a líder britânica, o jornalista Charles Moore afirma que os críticos da primeira-ministra exageram nas acusações de que a “Dama de Ferro” não tinha sensibilidade social, em parte, por causa de seus admiradores, muitos deles mais radicais do que a própria Thatcher em questões econômicas.

Não é preciso, contudo, ir até décadas passadas para encontrar exemplos de direitistas defensores de programas sociais. Donald Trump, antes de assumir a presidência dos Estados Unidos, criticou as inciativas assistenciais mantidas por seu país. Na condição de governante, optou por manter o Food Stamp – espécie de Bolsa Família americano -, inclusive para os imigrantes. Esse, aliás, não é o único programa social para os norte-americanos menos favorecidos. A maior economia liberal do mundo oferece aos seus cidadãos mais carentes uma variedade relativamente numerosa de subsídios estatais, cobrindo as despesas, por exemplo, de famílias pobres, desempregados e gestantes.

Milton Friedman apoiaria o Auxílio Brasil? 

Milton Friedman recebendo a Medalha Presidencial da Liberdade das mãos de Ronald Reagan e sua esposa, Nancy Reagan, em 1988.
Milton Friedman recebendo a Medalha Presidencial da Liberdade das mãos de Ronald Reagan e sua esposa, Nancy Reagan, em 1988.| Wikimedia Commons

O economista Milton Friedman, falecido em 2006, foi um dos fundadores Escola de Chicago - corrente de pensamento que influencia economistas liberais de todo o mundo até hoje - e é frequentemente considerado um dos maiores nomes do liberalismo no último século. Ainda assim, Friedman foi um defensor da distribuição de dinheiro aos mais pobres pelo governo. Segundo o economista José Pio Martins, nos anos 40 foi ele quem primeiro propôs o chamado imposto de renda negativo, segundo o qual aqueles que estivessem abaixo de determinado nível de renda, em vez de pagar imposto, deveriam receber certa quantia do governo.

Para Martins, é um equívoco vincular liberalismo econômico com rechaço aos programas assistenciais. “Esse papel social é inerente ao governo, sobretudo quando a estrutura estatal toma mais de um terço da renda nacional. E não só é aceito pelos economistas liberais, mas defendido como necessário”.

Ajuda aos pobres não é monopólio da esquerda 

Se o liberalismo econômico pode ser tomado como uma das principais influências da atual direita, o mesmo pode ser dito sobre o papel exercido pelo cristianismo nesse espectro político. Apesar disso, historicamente a ajuda aos necessitados é uma característica cristã que, nas últimas décadas, a esquerda tem explorado politicamente de forma mais intensa, quase como se fosse uma exclusividade sua.

“O combate à pobreza não é monopólio da esquerda”, diz o doutor em História Rafael de Mesquita Diehl, pesquisador da relação entre cristianismo e direitos humanos. Para ele não há incoerência entre ajuda assistencial aos mais pobres e o liberalismo econômico, mas faz a ressalva de que há diferenças conceituais importantes na forma de entender a propriedade privada no liberalismo e na doutrina das igrejas cristãs mais antigas, em especial na tradição católica.

“Para os grandes teólogos da Igreja Católica, dar os bens essenciais ao sustento do pobre não era ato de caridade, mas de justiça, já que Deus criou o mundo com recursos para usufruto de todos”. Diehl explica que esse princípio é chamado na Doutrina Social da Igreja de ‘Destinação Universal dos Bens’ e, de certa forma, influenciou a Constituição brasileira, ganhando nela o nome de ‘Função Social da Propriedade’.

Apesar da ajuda aos necessitados ser uma prática que antecede o cristianismo, as igrejas cristãs foram fundamentais na institucionalização da prática assistencial, indo além da caridade pessoal, diz Diehl. Ainda assim, as políticas governamentais de distribuição de renda, nos moldes de hoje, são mais recentes, surgindo no século XX, no período que inclui as duas grandes guerras mundiais, quando houve a necessidade de reconstruir os países europeus afetados pelos conflitos. “Na defesa dessas políticas, destacaram-se mais a centro-esquerda com os sociais-democratas e a democracia cristã, mas hoje praticamente todas as correntes políticas trabalham com a ideia de algum tipo de auxílio social aos mais pobres, seja por oportunismo ou pela imperiosa necessidade desse tipo de recurso em locais onde o desenvolvimento e crescimento social se daria apenas a longo prazo”.

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