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Bebês de diversas cores posam juntos para foto com seus pais
Programas pedagógicos e campanhas políticas alegam que bebês a partir dos três meses poderiam ter sinais “inconscientes” de racismo. Faz sentido?| Foto: Bigstock / Rawpixel.com

Frank Furedi, articulista da revista britânica Spiked, expressa preocupação que, na onda cultural de obsessão com raça e outros aspectos da identidade coletiva dos indivíduos, agora até bebês podem ser considerados racistas por terem “viés inconsciente” a favor de alguma raça. “Os principais proponentes dessa opinião hoje não são os racistas da velha guarda”, comenta Furedi, “são antirracistas proclamados”.

Para exemplificar a realidade do fenômeno, o colunista cita uma campanha do mês passado do Partido Trabalhista britânico que controla o governo do bairro de Islington, em Londres. A campanha distribuiu um pôster que diz que “aos três meses, os bebês olham mais para faces da raça de seus cuidadores” e que “as crianças nunca são novas demais para conversar sobre raça”. O mesmo partido, que também tem controle da câmara da cidade de Nottingham, implementou por lá um programa para “descolonizar” o jardim de infância, com uma “consultoria de treinamento antirracista”. Programas similares do partido em nível nacional acontecem desde 2008.

Há duas fontes acadêmicas para esse tipo de programa. Uma são estudos que, desde 2005, de fato indicaram essa preferência em bebês a partir de três meses, como um estudo de primeira autoria de Yair Bar-Haim, do Departamento de Psicologia da Universidade de Tel-Aviv, em Israel. Avaliando uma pequena amostra de 36 bebês distribuídos igualmente em três grupos: brancos israelenses, negros etíopes e negros israelenses de origem etíope, Yair e colegas descobriram que os bebês olhavam para faces de adultos da própria raça por mais segundos. Porém, os bebês negros israelenses não apresentavam essa diferença. Outros estudos usaram bebês de outros grupos, como chineses, e até investigaram qual parte da face parece mais indicativa de raça para os bebês (suspeita-se que é o nariz). Há um problema comum de amostras pequenas.

Em sua tese de doutorado de 2012 na Universidade de Harvard, a psicóloga especialista em desenvolvimento infantil Talee Ziv investigou o assunto em bebês com um trimestre de idade e descobriu que a preferência racial parece acontecer somente com faces masculinas, não com as femininas. Isso sugere que o contato da mãe é a razão dessas preferências no tempo do olhar dos bebês para faces.

Testes ridículos para o inconsciente

A outra fonte da alegação de que bebês podem ser racistas é revelada pelo vocabulário desses programas, que falam em “viés inconsciente”. Em vez de enxergar o racismo como uma crença consciente de indivíduos em erro moral que pensam que grupos de fenótipo superficial humano são moralmente superiores ou inferiores a outros, como foi classicamente o caso, há uma colaboração entre pesquisa e ativismo identitário para alterar o significado de racismo para qualquer tipo de disparidade estatística entre esses grupos, até mesmo a disparidade das preferências dos olhos dos bebês. Disparidades também são buscadas no tempo de reação de adultos em ferramentas como o “teste de associação implícita” (IAT, na sigla em inglês), que apresenta características raciais, sexuais ou deficiências e palavras positivas ou negativas, buscando “revelar” alguma coisa a respeito da inconsciência do testado para com essas características.

O IAT, que foi adotado até em cursos de sensibilidade racial dados por departamentos de recursos humanos de diversas empresas americanas, sofreu baques na crise da replicação de resultados de estudos em psicologia. Além disso, está longe de claro se o teste realmente captura qualquer tipo de aversão a certa raça, grupo ou deficiência. A matemática surda americana e blogueira Holly “Math Nerd”, que se apresenta como “anti-identitária” e não revela seu sobrenome, tem experiência com o IAT. “Sinto orgulho de andar pelo mundo tão bem quanto qualquer pessoa ouvinte. Não sou um fardo para ninguém. Pelo motivo de eu ser muito ciente do estereótipo ‘deficiência = fardo’, fui rápida na associação com palavras negativas quando fiz o IAT para deficiência pela primeira vez. A minha primeira nota indicava uma atitude negativa muito forte contra a deficiência, quando a minha verdadeira atitude é o exato oposto. Não apenas eu não tenho emoções negativas em relação à minha surdez, (...) eu não trocaria pela audição perfeita, mesmo se eu pudesse.”

Holly ensina seus leitores a tirarem notas melhores no IAT: “quando faces negras e palavras negativas forem pareadas, seja lento na resposta”. Basta treinar a si mesmo para associar pessoas deficientes, mulheres e negros a palavras positivas, como manda o identitarismo. Ela diz que, durante a graduação, foi obrigada a fazer o teste quatro vezes. Nas últimas vezes, “consegui notas identitárias perfeitas em todas”. “Sim, é ridículo”, conclui Holly. “Agora vão em frente e mantenham os seus empregos. De nada.”

 

Bebê antirracista

A literatura infantil tem sido alvo de disputas da guerra cultural. O acadêmico Ibram X. Kendi, diretor do Centro de Pesquisa Antirracista da Universidade de Boston, lançou em 2020 o livro infantil “Bebê Antirracista” (tradução livre para “Antiracist Baby”). “Bebês aprendem a ser racistas ou antirracistas — não existe neutralidade”, decreta o livro com ilustração colorida de página dupla de um bebê escrevendo “raça” com blocos de letras. O livrinho dá nove conselhos sobre o que um bebê antirracista deve fazer. O terceiro conselho é “apontar que o problema é política, não pessoas”. Com rima, o conselho é explicado: “Algumas pessoas ganham mais, enquanto outras ganham menos... porque as políticas nem sempre garantem igual acesso [aos pequenos]”. O sétimo conselho ao bebê antirracista é que ele “confesse quando está sendo racista”. “Nada perturba mais o racismo do que quando confessamos as ideias racistas que às vezes expressamos.”

Kendi introduz algumas das ideias contra o racismo que têm sido lugar-comum desde a era pós-Apartheid, como a de que “todos somos humanos”. Mas é nos detalhes que a linha acadêmica que ele segue, a “teoria crítica da raça”, se revela. Por exemplo, ele ataca a ideia de que devemos tratar a cor como irrelevante, que é resumida por americanos com o termo “color blind” (cego à cor). Isso seria “negar o que está diante dos seus olhos”. O bebê antirracista deve “usar suas palavras para falar de raça”. Outra parte relevadora é o sexto conselho: “ponha abaixo a pilha de blocos culturais”, acompanhado de um desenho de um bebê derrubando blocos.

Os esforços do autor de seguir os próprios conselhos a “bebês” se revelam nas redes sociais. Comentando sobre o caráter da então nomeada pelo presidente Trump para a Suprema Corte Amy Coney Barrett, em setembro de 2020, em vez de ser “cego à cor” das duas crianças de origem haitiana que ela adotou Ibram Kendi declarou no Twitter que “alguns colonizadores brancos ‘adotaram’ crianças negras. Eles ‘civilizaram’ essas crianças ‘selvagens’ nos modos ‘superiores’ das pessoas brancas, enquanto as usam como acessórios em suas imagens vitalícias de negação, enquanto cortam os pais biológicos dessas crianças fora da foto da humanidade”.

A Netflix, depois de sofrer pressão interna de funcionários alinhados com o identitarismo ofendidos por obras publicadas pelo serviço com exclusividade, em particular os especiais de comédia de Dave Chappelle (que acusaram de “transfobia” até com protesto presencial fora da sede da empresa), e depois de perder 200 mil assinantes no primeiro trimestre deste ano, demitiu 2% de seus funcionários (cerca de 150 pessoas) e cancelou uma animação que adaptaria o livro infantil de Kendi. A concorrência de novos serviços de streaming como Star+, Disney+ e Paramount+, além do encerramento das medidas de confinamento da pandemia, explicam grande parte das perdas da Netflix e suas decisões em reação a elas. Porém, a participação do fator cultural nas decisões é sugerida por uma atualização no estatuto interno do serviço de streaming, que passou a dizer que, se funcionários estiverem descontentes com a liberdade de expressão e a amplitude do conteúdo, a Netflix não é para eles.

Morgan Freeman tem razão?

Para brasileiros, está quase virando tradição a circulação de um trecho de uma entrevista do premiado ator Morgan Freeman no dia da consciência negra, especialmente entre críticos da data ou críticos dos ativistas do identitarismo de raça. Na entrevista ao programa de televisão americano 60 Minutes em 2005, Freeman lamenta a existência de um “mês da história negra” e diz que o problema do racismo é a ênfase na identidade racial (presente, por exemplo, no hábito que as pessoas têm de apresentá-lo como um ator negro). Além disso, ele aconselha que “paremos de falar nisso”. Simpatizantes da mensagem identitária de pensadores como Kendi são hostis a essa mensagem, e apontam que não falar de racismo não resolve o problema do racismo. Porém, como dito, Freeman parecia estar falando da ênfase na identidade racial, que estudos replicados da psicologia sugerem que realmente pode agravar o racismo em vez de ser a solução que esses ativistas pensam que é.

Na constelação de ativismos preocupados com identidades geralmente não escolhidas, a historiadora britânica Helen Pluckrose e o matemático americano James Lindsay propõem que seja traçada uma diferença entre aqueles que seguem a tradição dos direitos civis, que é liberal e busca remover restrições indevidas que pessoas sofrem às suas liberdades por serem negras, mulheres, LGBT etc., impostas a elas por preconceito e discriminação injusta; e os movimentos que fazem política identitária ou identitarismo, que bebem de outras fontes intelectuais do radicalismo acadêmico e pregam, na verdade, tratamento diferenciado e revanchismo, além de ressignificações unilaterais em palavras como “racismo”.

O identitarismo também tende ao que o filósofo conservador Roger Scruton chama de “oikofobia”, uma aversão irracional pelo próprio lar, ou seja, pela própria cultura ou país, que identitários veem como especialmente viciado e imoral comparado a outras regiões do planeta ou a um ideal utópico que só existe em sua cabeça — daí a descrição da acadêmica identitária Bell Hooks do Ocidente como um “patriarcado supremacista branco heteronormativo”, que contrasta com o fato de que dificilmente há região mais tolerante no mundo para mulheres, negros e LGBT. O ativismo por liberdades civis está associado a figuras como Martin Luther King, e o identitarismo, a figuras como Malcolm X, em sua fase mais separatista e belicosa, agravadas por elucubrações de escolas de pensamento associadas ao marxismo, teoria crítica e pós-modernismo.

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