“O Futuro de Bill Gates”, o novo documentário do empresário e filantropo na Netflix, tem grandes chances de fazer você desligar a TV com raiva.
Especialmente o segundo episódio, “Verdade ou consequência”, o mais longo dos quatro disponíveis. Ele revela que Gates é agora um adepto de um dos projetos progressistas mais perigosos em andamento: a expansão do poder do Estado de censurar, sob a justificativa de conter o populismo, a “desinformação” e o “discurso de ódio”.
A terminologia é praticamente a mesma utilizada por Alexandre de Moraes ao censurar o X. Isso fica claro quando ele aplica termos ideológicos completamente ausentes do ordenamento jurídico brasileiro, como “discurso de ódio eleitoral” — dito no STF quando ele quis justificar seu gabinete da censura instalado no TSE, cuja operação foi revelada por Fábio Serapião e Glenn Greenwald na Folha de S. Paulo.
Seleção cuidadosa das teorias da conspiração mais ridículas
O episódio ilustra várias teorias da conspiração contra Gates: que ele “consumiria bebês para ter imortalidade”; que já estaria morto e teria sido substituído por um clone; que junto a outras celebridades como Hillary Clinton, Lady Gaga e Tom Hanks seria um alienígena reptiliano usando um disfarce humano; que teria produzido vacinas da Covid contendo chips suspeitos etc.
“Desinformações malucas sobre você? Escuto o tempo todo. Já perdi amigos por causa de desinformações contra você”, disse a filha do bilionário, Phoebe Gates, em entrevista com o pai.
“Sou ligado às vacinas”, comenta o empresário, “essa parte é verdadeira”. Gates ri de algumas dessas ideias estapafúrdias, e não diz explicitamente que quer censurá-las. Mas entrevistas várias pessoas que acreditam que a culpa por seu alcance é das redes sociais, e que elas, sim, deveriam censurar.
Em uma cena, Bill Gates está à mesa com uma equipe de análise de dados que monitora cada uma das menções a seu nome junto a teorias da conspiração. Em 2023, informam, ele foi mencionado 9,25 milhões de vezes, com 87,58 bilhões de visualizações alcançadas. Desse total, 46% das menções foram de teor conspiratório, representando um quarto do alcance.
Notoriamente ausentes da análise estão as menções ao contato entre Bill Gates e o financista Jeffrey Epstein, que morreu de forma suspeita na prisão em 2019 — um suposto suicídio num período em que as câmeras simplesmente não funcionaram. Epstein foi condenado por tráfico sexual de menores, atividade que ele fazia em mansões de Manhattan e em sua ilha Little Saint James, parte das Ilhas Virgens.
Também selecionando o ano de 2023, comparei na ferramenta Google Trends pesquisas por “Bill Gates vaccine” e “Bill Gates Epstein”. O interesse no segundo assunto foi quase o dobro nas buscas que o interesse no primeiro (confira aqui). Por que não é mencionado? O documentário reconhece nas entrelinhas que a relação entre Gates e Epstein não é teoria da conspiração?
O New York Times disse em 2019 que “diferentemente de muitos outros, o sr. Gates começou sua relação com o sr. Epstein depois que o último foi condenado por crimes sexuais”. Segundo uma biografia não autorizada escrita por uma editora do mesmo jornal, Anupreeta Das, Gates chamava Epstein de “amigo” (buddy) e teria dito que passar tempo com ele era sempre uma “aventura”. Mas diferentes checadores de fatos nos tranquilizam: não há indício de que Gates tenha visitado a ilha.
Assim como divulgadores de ciência de viés de esquerda acham mais fácil criticar a homeopatia do que o colega acadêmico no departamento ao lado na universidade que insiste na pseudociência econômica do marxismo, o documentário de Bill Gates perde tempo com teorias da conspiração para não tocar em acusações mais sérias a respeito das escolhas de companhia do empresário.
Promoção de ativistas da censura
E por falar em escolhas de companhia: entre outros cruzados contra a “desinformação” entrevistados, o documentário dá muito tempo a duas pessoas, e filma Gates em uma espécie de sala de aula na companhia delas: Alex Stamos, diretor fundador do Observatório da Internet de Stanford, e Renée DiResta, diretora de pesquisa do observatório. A instituição foi fechada este ano por Stanford, universidade em que a filha de Gates estuda saúde pública.
Sejamos claros: Renée DiResta e Alex Stamos são ativistas pela censura. E seu observatório comprovadamente se engajou em censurar pessoas por um sistema de “sinalização” para as Big Tech envolvendo grandes nomes como o Atlantic Council, o Departamento de Segurança Interna (DHS) dos Estados Unidose o FBI. Sabemos disso por causa dos Twitter Files.
O Observatório da Internet de Stanford promoveu a censura durante as eleições presidenciais de 2020 nos EUA e durante a pandemia, com um projeto específico chamado “Parceria de Integridade das Eleições” (EIP), depois transmutado em “Projeto Viralidade”. Também sabemos que Alex Stamos mentiu em depoimento ao Congresso americano quando alegou que partiu dele próprio a ideia do EIP: estava servindo de testa de ferro para o DHS, para esconder a participação do Estado na censura.
Bill Gates, em um documentário que leva o nome dele na Netflix, dá mais espaço para essas pessoas falarem do que para o competente Jacob Mchangama, autor do livro “Liberdade de expressão: uma história, de Sócrates às redes sociais” (Basic Books, 2022, em trad. livre, sem edição no Brasil). Já tive o prazer de assistir a uma palestra de Mchangama. Em bom português: o cara é bom. Mas o documentário dedica menos de 30 segundos ao que ele tem a dizer. Bill Gates tem lado. E dizer que existem dois lados, um pró-liberdade e outro pró-censura, não é um caso de “polarização” insensata, mas de observação da realidade.
Anthony Fauci, aliás, notório politiqueiro pró-lockdown e pró-censura que passou décadas à frente do Instituto de Alergia e Doenças Infecciosas (NIAID) dos EUA, aparece no documentário para defender intervenções sobre a expressão com o argumento de que duvidar da eficácia de medidas draconianas ou das vacinas contra Covid seria como “gritar ‘fogo!’ em teatro lotado”, uma referência a um já superado argumento ouvido na Suprema Corte americana, que decidiu mais tarde pela máxima liberdade de expressão até neste caso hipotético.
Felizmente, ao menos na República da Irlanda, os planos do ativismo pró-censura foram por enquanto desbaratados: a principal patrona de um projeto de lei draconiano que criminalizava o “discurso de ódio” desistiu dos artigos que previam isso. Enquanto isso, o Brasil segue sendo o laboratório global da censura, e nem mesmo o engavetamento do PL das “fake news” bastou para conter a sanha do cala-boca, que se viu aplaudindo a exceção, o autoritarismo e a pseudointelectualidade de Alexandre de Moraes, que abusou do nome do filósofo liberal John Stuart Mill em seu jusdecreto-lei que censurou o X.
No documentário de Gates, uma maioria de progressistas gasta saliva lamentando a “polarização” e um único intelectual liberal ganha menos de 30 segundos para apresentar uma visão alternativa. Nenhum conservador foi convidado ou ouvido, e Donald Trump é mostrado como um mau exemplo por criticar a cobertura enviesada da CNN contra ele, chamando-a de “fake news”. Onde, nessas decisões, está a parte que ilustra um compromisso sério de atuar contra a polarização? É essa hipocrisia cheia de vaidade a parte mais irritante do documentário.
História da carochinha contra o bicho papão da “desinformação”
A certa altura, outra ativista pró-censura do documentário resume com uma história da carochinha como funcionam as teorias da conspiração que ela quer censurar. A história é assim:
Era uma vez um tempo em que éramos felizes. Até que monstros que podem assumir qualquer forma tomaram o controle do mundo sem que ninguém percebesse. Mas alguns poucos heróis conseguiam ver esses monstros pelo que realmente eram, os expuseram e salvaram o mundo.
São más notícias para o ativismo da esquerda identitária, uma das principais fontes de pressão pela censura. Segundo esse ativismo, éramos felizes até os monstros das “fobias” e “ismos” aparecerem, assumindo qualquer forma, até mesmo de expressões populares inofensivas como “criado mudo”. Esses monstros do preconceito criaram “ismos e fobias estruturais”. Felizmente, alguns poucos heróis visionários, com virtudes que faltam à população preconceituosa, enxergaram esses monstros e estruturas pelo que realmente eram. E os denunciaram, salvando o mundo de tudo aquilo que conservadores e liberais acharem que é bom.
Só que, diferentes dos boatos hilariantes contra Bill Gates e Lady Gaga, essas ideias não ganham o rótulo de “teorias da conspiração”. Quando o viés político está no controle, não importa o que é dito, mas quem diz.
Surpreendentemente, Lady Gaga, que aparece bela e sem escamas visíveis no documentário, oferece algumas das boas opiniões que devem ter sido cortadas do tempo de entrevista de Mchangama: ela conta que, há mais de uma década, circulava um boato de que ela era um homem. Considerando que era o preconceito que potencializava tanto o boato quanto uma necessidade de responder a ele, ela se recusou a responder às perguntas a respeito.
E ela oferece mais sabedoria: “Eu penso que a desinformação é perpetuada por todos nós. Não é algo que podemos botar a culpa nas redes sociais, por não terem políticas melhores”. Essa humildade quase cristã da cantora, de se colocar entre aqueles que já acreditaram e espalharam as temidíssimas fake news, não poderia contrastar mais com a postura arrogante de tutela da expressão pelo Estado dos ativistas pró-censura, entre os quais agora podemos incluir Bill Gates.
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