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Ao sancionar lei que criminaliza "fake news", presidente Bolsonaro restringe a liberdade de expressão e supervaloriza fenômeno que, na prática, tem pouco alcance eleitoral
Ao sancionar lei que criminaliza “fake news”, presidente Bolsonaro restringe a liberdade de expressão e supervaloriza fenômeno que, na prática, tem pouco alcance eleitoral| Foto:

Nesta quarta-feira (5), o presidente Jair Bolsonaro sancionou a lei nº 11.834/2019. Ela tipifica o crime de denunciação caluniosa com finalidade eleitoral (as populares "fake news") e prevê pena de prisão de dois a oito anos, além de multa, para quem acusar falsamente um candidato a cargo político com o objetivo de afetar a sua candidatura.

De acordo com o texto que entrou em vigor nesta quarta, a pena aumenta em caso de o caluniador agir no anonimato ou com nome falso.

Anteriormente, a legislação eleitoral previa detenção de até seis meses ou pagamento de multa acaso alguém ofendesse a dignidade ou decoro de um candidato ao longo das eleições.

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A pena máxima de até 8 anos, atribuída ao dispositivo, é superior ao tempo mínimo fixado para um homicídio simples (6 anos).

Em virtude do texto, há quem tenha denominado o novo dispositivo de “criminalização das fake news”. Apesar da preocupação com as notícias falsas e com a desinformação no debate público seja legítima, a legislação aprovada não é compatível a uma democracia saudável.

O problema das fake news é superestimado

Quem se preocupa com a possível influência de notícias falsas no processo eleitoral brasileiro tem duas boas estatísticas para sustentar seus posicionamentos.

Segundo o especialista em Big Data Renato Dolci, o Brasil é líder mundial tanto na produção quanto no consumo de conteúdo identificado como fake news. Em 2017, foram cerca de 10 bilhões de cliques neste tipo de conteúdo — mais do que em qualquer portal de notícias brasileiro.

Além do grande volume de desinformação propagada, segundo levantamento do Ipsos, entre 27 nacionalidades pesquisadas, os brasileiros são os que mais “caem” em fake news. 62% dos entrevistados não souberam diferenciar uma notícia verdadeira de uma falsa.

A despeito dos números nada desprezíveis, a influência das fake news tende a ser superestimada. Em um estudo dos pesquisadores das Universidades de Nova York e Stanford, constatou-se que os indivíduos que são convencidos por fake news tendem a ser aqueles já partidários e que, afetados pelo viés de confirmação, usam as notícias falsas apenas para reforçar uma visão ideológica anterior. Logo, o centro (que está sob disputa em termos de votos) é pouco abalado. Dessa forma, o impacto eleitoral das notícias falsas é menor do que se faz parecer. Segundo o levantamento, na eleição de Donald Trump, por exemplo, o impacto eleitoral das fakes news teria sido da ordem de 0,02% dos votos.

Vale ressaltar que é impossível determinar, de maneira inequívoca, qual a influência que as fake news podem exercer em uma eleição. Ainda que houvesse uma quantificação exata do volume de notícias falsas, estimar um efeito líquido nos resultados — e se esse efeito favorece algum candidato — dependeria de uma série de aspectos. Feita essa consideração, a evidência disponível não fornece informações suficientes para fazer inferências e concluir causalidades de que as desinformações propagadas por notícias falsas sejam relevantes a ponto de contaminar todo um processo eleitoral.

Apesar disso, a lei sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro ampliou a legislação existente de calúnia, buscando resguardar autoridades que disputam cargos eletivos, fundamentando-a na busca por tutelar a integridade do processo eleitoral.

Como lidar com as fake news?

Em um mundo ideal, o debate público seria limpo, sem a adulteração de fatos e com todas as informações sendo devidamente verificadas antes de serem compartilhadas. Embora haja notícias que sejam evidente e objetivamente falsas, a realidade é mais complexa: há questões que exigem uma avaliação mais subjetiva. Por exemplo, é comum detratores da reforma trabalhista argumentarem que a legislação não gerou mais empregos. Especialistas, contudo, estimam que levará mais de uma década para que os efeitos dela sejam sentidos integralmente pelo mercado. Com base na nova legislação, afirmar, sem base em estudos com metodologias robustas, que determinado político apoiou a reforma trabalhista, mas que ela não gerou empregos, poderia ensejar um processo por calúnia movido pelo político mencionado contra o autor da publicação?

Neste sentido, a legislação atual pode ter o efeito de coibir a liberdade de imprensa, já que críticas de jornalistas que sejam consideradas caluniosas quando direcionadas à políticos podem, a partir de agora, serem punidas com prisão em regime fechado. O mesmo vale para publicações de cidadãos comuns.

Ampliar a legislação de calúnia é um ataque à democracia

Diversos rankings internacionais avaliam mal a liberdade de expressão no Brasil. Um deles é o ranking de liberdade de imprensa, divulgado pela ONG Repórteres Sem Fronteiras. Nele, o Brasil aparece apenas na 102º posição, o que deixa claras as dificuldades da livre expressão no país.

O Freedom House, estudo elaborado pela revista britânica The Economist, avalia a qualidade das instituições de cada país sob o ponto de vista democrático. Uma das premissas do levantamento é a contrariedade à criminalização de crimes contra a honra, porque ela limita a liberdade de expressão. A criminalização deste tipo de coisa é um instrumento que pode ser utilizado como arma política.

A aclamada obra Como as democracias morrem, dos cientistas políticos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, também é categórica quanto aos riscos de se criminalizar a difamação e a injúria para as instituições democráticas.

Os autores contam que, em 1798, os federalistas norte-americanos aprovaram a chamada “Lei de Sedição”. Ainda que em tese a lei criminalizasse apenas afirmações falsas contra o governo, sua elaboração foi tão vaga que, na prática, ela acabou por criminalizar qualquer crítica ao governo. A lei foi utilizada para atacar jornais e ativistas do Partido Republicano até sua revogação.

O livro alerta para o perigo de governantes propensos a restringir liberdade civis de oponentes ou da mídia e a apoiar leis ou políticas que restrinjam liberdades civis, como expansões de leis de calúnia e difamação ou leis que restrinjam protestos e críticas ao governo ou certas organizações cívicas ou políticas.

Escrevem os autores:

“Uma coisa que distingue autocratas de líderes democráticos contemporâneos é sua intolerância à crítica e a disposição de usar seu poder para punir aqueles que – na oposição, na mídia ou na sociedade civil – venham a criticá-los.”

O Congresso Nacional aprovou e Jair Bolsonaro sancionou o que pode ser o ovo da serpente.

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