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Uma análise honesta das prevalências étnicas entre as vítimas da nova doença depende de que se coloque os diversos condicionantes, inclusive as variáveis socioeconômicas eventualmente relacionadas a cor/raça/etnia, sobre a mesa
Uma análise honesta das prevalências étnicas entre as vítimas da nova doença depende de que se coloque os diversos condicionantes, inclusive as variáveis socioeconômicas eventualmente relacionadas a cor/raça/etnia, sobre a mesa| Foto: BigStock

Brancos representam a maioria dos mortos pelo novo coronavírus tanto em termos absolutos quanto considerando-se os percentuais de cada raça/cor na população. Os dados informados pelo Ministério da Saúde em seus boletins epidemiológicos, até a data de 21 de agosto de 2021, apontam que houve 217.418 óbitos de pessoas brancas, em função da nova doença. O número é maior que o somatório das mortes de pretos e de pardos: 210.180. A informação se torna mais significativa ao se considerar que os dados populacionais mais atualizados do IBGE indicam que a população combinada de pretos e pardos é superior à população branca.

Desde os primeiros casos confirmados de Covid-19 no Brasil, tem sido frequentemente divulgado, por meio da imprensa, de canais acadêmicos e de ativistas políticos, que negros dominam a vitimização pela Covid-19, sobretudo no que diz respeito ao número de mortos. Alegações como “novo coronavírus é mais letal em negros” ou “mulheres negras são particularmente afetadas pela Covid-19” são recorrentes no debate público sobre o tema.

Um artigo publicado no portal da Faculdade de Medicina da UFMG, em novembro de 2020, afirma que “Negros morrem mais pela Covid-19 : pretos e pardos também têm mais chance de ser infectados e correm maior risco de hospitalização”. Já a Associação Brasileira de Saúde Coletiva publicou, em julho do ano passado, um texto intitulado “Desigualdade racial: por que negros morrem mais que brancos na pandemia?”.

De fato, fazendo-se uma pesquisa usando os termos negros covid no motor de busca Google, os 10 primeiros links retornados levam a textos que afirmam que negros morrem mais de Covid-19 que brancos. Se mudarmos o comando para brancos covid os resultados são exatamente os mesmos.

Realmente em alguns momentos durante o curso da pandemia, o número de mortes de pardos e pretos foi superior ao número de mortes de brancos. Este não foi, contudo, o padrão dominante ao longo do avanço da contagem de mortos.

Na maior parte da pandemia, os brancos representaram a maioria dos mortos no Brasil, por vezes superando numericamente ao somatório de todas as demais etnias: pretos, indígenas, amarelos (asiáticos) e pardos (mestiços). E este, aliás, é o status atual da distribuição étnica relativa ao número de mortos pela doença.

Mesmo representando uma fatia menor que a ocupada por pardos na população brasileira, os brancos hoje são a maioria percentual e absoluta do número de mortes. Segundo os dados mais atualizados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, do IBGE, brancos representam 42,7% dos habitantes do país. Já segundo o Ministério da Saúde, representam 50,13% (217 418) do total de mortos até a publicação do 77º Boletim Epidemiológico Especial.

Pretos são 9,4% da população, mas 6,0% dos mortos (26 205). Pardos são 46,8% do total de brasileiros, mas 42,42% dos brasileiros vitimados pelo novo coronavírus (183 975). Já os indígenas e amarelos representam 1,1% da população e 1,4% do número de mortes por Covid-19 (6 055).

Diante dos dados, inferências sobre racismo são sustentáveis?

Desde o começo da pandemia, ativistas e influenciadores do debate público têm evocado uma suposta correlação entre os danos causados pela Covid-19 e o racismo contra pretos e pardos.

Já em abril, quando brancos ainda eram a ampla maioria dos mortos, com 59,5% dos mortos pela nova doença no país, a jornalista Flavia Oliveira publicou um artigo intitulado “Crise tem cor e gênero”. Na ausência de números brasileiros que suportassem sua tese, utilizou dados de uma cidade dos Estados Unidos: “Em Chicago (Illinois), afro-americanos compõem um terço da população, mas correspondiam a 72% dos óbitos. É desfecho que espreita o Brasil.”, vaticinou.

Quando, por um momento, o número de pretos e pardos mortos pela nova doença de fato suplantavam o número de brancos, na segunda metade de 2020, Lethicia Pechim escreveu para o portal da Faculdade de Medicina da prestigiosa Universidade Federal de Minas Gerais um artigo que correlaciona diretamente o “racismo institucional” à prevalência étnica no número de mortes por Covid-19 até aquela data.

No texto, intitulado “Negros morrem mais pela Covid-19 : Pretos e pardos também têm mais chance de ser infectados e correm maior risco de hospitalização”, que é a segunda sugestão fornecida pelo Google tanto quando se pesquisa negros covid como quanto se pesquisa brancos covid, a palavra “racismo” aparece nove vezes.

O texto menciona entrevistas com os especialistas Unaí Tupinambás e Elis Borde, professores da UFMG e Joilda Nery, professora da Universidade Federal da Bahia. Os três sustentam razões “estruturais” para o predomínio de pretos e pardos entre as vítimas.

Segundo Tupinambás, “Durante a pandemia, a desigualdade foi escancarada. A mortalidade da população negra é muito mais alta, não só no Brasil, mas também na Europa e nos Estados Unidos. Claro que nós temos que considerar aqueles determinantes sociais da doença, que são muito importantes para a evolução de qualquer doença. A população negra e periférica tem condições de saúde muito mais precárias (...) A prevalência dessas condições é muito maior na população negra e periférica, que não tem condições de acesso à saúde e à boa alimentação. Já tem o risco inerente da condição prévia de saúde e esses determinantes sociais impactam muito negativamente na evolução da Covid-19”.

Já a professora Borde alegou que “contar com atenção à saúde acessível e de qualidade, o que, infelizmente, nem sempre está disponível para a população negra em função do racismo institucional, que se expressa por meio de práticas, atitudes, normas e também formas organizativas discriminatórias e excludentes, que criam barreiras ao cuidado com a saúde e também são associados a baixos resultados terapêuticos”

Como sustentar a correlação entre racismo e prevalência de mortes por Covid-19 num momento em que pretos e pardos, mesmo sendo a maioria da população, representam a minoria dos mortos? E em que brancos, mesmo sendo a minoria da população, representam a maioria dos mortos?

Será que não se está fazendo o trabalho de investigação de causa e consequência pela contramão, esperando e pinçando os momentos em que a demografia étnica dos mortos parece desfavorável aos negros para só aí formular correlações que suportem narrativas preconcebidas?

Não será por este motivo que os artigos midiáticos e acadêmicos sobre prevalência de mortos de acordo com a etnia tendem a não aparecer nos locais e momentos em que brancos são a maioria percentual dos mortos, mesmo que estes sejam os cenários mais frequentes? Não será por este motivo que a maioria dos artigos indicados pelo Google sobre o assunto foram publicados no curto período em que pretos e pardos lideravam a macabra corrida no Brasil?

O subtítulo do artigo publicado pela UFMG também destaca o número de infectados e internados e alega que eles são majoritariamente pretos ou pardos. À época da publicação do artigo, novembro de 2020, o Boletim Epidemiológico Especial mais atualizado indicava que pretos e pardos somados representavam 180.342 dos internados, contra 163.982 brancos. Entretanto, atualmente brancos são 680.600 do total de pessoas que já foram internadas ao longo de toda a pandemia, em função da doença. Pretos e pardos juntos somam 610.320.

Quais outras variáveis, que não o racismo, poderiam ser consideradas?

As etnias não se distribuem homogeneamente na população brasileira. Há estados que são majoritariamente brancos, outros majoritariamente pretos e pardos, há estados com grande presença indígena ou asiática, outros com baixa presença destes grupos étnicos. As etnias também se diferem quanto à idade: a expectativa de vida de brancos é mais alta do que a de pretos e pardos, de modo que entre a população idosa a proporção de brancos é mais expressiva.

Os efeitos da pandemia também não se distribuem homogeneamente. É sabido que idosos são mais susceptíveis à internação e morte que jovens. Do ponto de vista geográfico, ao longo do tempo a doença atingiu de forma mais intensa a uns estados e depois a outros. É previsível que a variação de prevalência étnica tenha respondido a estes condicionantes. Em momentos em que estados com maior predominância populacional de pretos e pardos foram mais fortemente atingidos pela pandemia, é esperado que tenha ocorrido um incremento no número nacional de pretos e pardos mortos pelo novo vírus.

Uma análise honesta das prevalências étnicas entre as vítimas da nova doença depende de que se coloque os diversos condicionantes, inclusive as variáveis socioeconômicas eventualmente relacionadas a cor/raça/etnia, sobre a mesa.

Base de cálculo

Todos os percentuais apresentados neste texto consideram apenas os casos notificados ao Ministério da Saúde em que foi indicada a condição da vítima quanto à variável raça/cor. Foram consultados os boletins epidemiológicos especiais de número 10, 38, 43 e 77, publicados pela Secretaria de Vigilância em Saúde, do Ministério da Saúde.

Atualmente 178.125 das mortes notificadas ao Ministério da Saúde apresentam ignorado ou sem informação no campo relativo à raça/cor, não podendo ser utilizados, portanto, em qualquer análise sobre prevalência étnica das vítimas do novo coronavírus.

*Daniel Reynaldo é graduado em Ciências Biológicas pela UFRJ e editor do site "Quem?Números". Tem especial interesse em dados estatísticos relacionados a argumentos que dominam o debate público sobre questões identitárias.

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