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Em números absolutos, não há país no mundo com mais homicídios do que o Brasil. Segundo o último Atlas da Violência, divulgado em junho, o número chegou a 62.517 pessoas que tiveram suas vidas tiradas em 2016. Somado à tragédia das mortes propriamente ditas, um outro dado alarmante ajuda a entender como nossa violência não só permanece alta como segue aumentando em muitos estados: a baixíssima taxa de resolução de homicídios por parte das polícias no país, hoje estimada em torno de 5% a 8% nacionalmente, favorece a perpetuação do ciclo criminalidade.

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Isso significa que, de cada cem homicídios no país, no máximo oito são apurados até o final, com uma definição do autor e das circunstâncias do crime. A própria porcentagem, no entanto, é uma estimativa: a tendência é que esses números sejam ainda menores. Quem chegou a 8% no início da década foi o sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz, coordenador do Mapa da Violência, outra importante publicação sobre segurança pública no Brasil. 

Recentemente, Waiselfisz comentou que, com a interiorização do crime para municípios com menos recursos e estrutura investigativa esse número pode ter caído. O Ministério da Justiça, por exemplo, calcula a média nacional de resoluções na faixa de 5%. E o índice é efetivamente menor em muitos estados – em Alagoas, por exemplo, estima-se que as autoridades só cheguem a uma solução para 2% dos crimes. Já a taxa de condenações pode ser até inferior, pois, embora a resolução costume dar argumentos mais sólidos perante a Justiça, nem sempre isso garante que se evite a impunidade. Esses números, porém, são ainda mais difíceis de quantificar. 

Ausência de dados 

As contagens costumam ser meras estimativas porque, como apontam especialistas na área, outro drama cotidiano para quem trabalha com segurança pública no Brasil é a escassez de dados confiáveis a respeito de muitos aspectos da violência – não existe sequer um sistema unificado compilando esses índices. Mesmo nas universidades, os centros especializados em segurança pública acabam se dedicando mais às razões sociais e econômicas da violência a partir dos dados disponíveis, sofrendo com a limitação de números objetivos sobre outros fatores. 

Hoje, as principais estatísticas sobre violência produzidas no país ainda giram em torno do total de mortes, com poucas nuances além disso. O país ainda engatinha em termos de identificação do perfil das vítimas – embora hoje se saiba que os mais afetados sejam homens negros (40,2 mortos a cada 100 mil habitantes, contra 16 no caso dos brancos) –, bem como o reconhecimento dos casos solucionados com mais frequência e a própria mensuração de quantos crimes são efetivamente esclarecidos. A escassez de informações prejudicaria a montagem de estratégias mais eficientes para combater a criminalidade. 

No início deste ano, o Instituto Sou da Paz publicou um estudo intitulado Onde Mora a Impunidade? abordando, entre outras questões, os índices de resolução de homicídios. Os pesquisadores questionaram as 27 unidades da federação a respeito de seus números e apenas seis responderam – Pará (4%), Rio de Janeiro (12%), Espírito Santo (20%), Rondônia (24%), São Paulo (38%) e Mato Grosso do Sul (55,2%). 

Desvio de foco 

“As pessoas querem mais leis, mais penas, mais polícia, mas sequer a legislação atual é cumprida”, comenta o cientista social Robson Sávio Reis Souza, professor da PUC-MG e autor do livro “Quem comanda a segurança pública no Brasil?”. “Independentemente do número de processos que transitam em julgado, ele está muito aquém da necessidade para o crime mais grave, que é o crime contra a vida”. 

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Ao mesmo tempo, grande parte dos recursos tem sido destinada a coibir genericamente o narcotráfico, independentemente do volume de drogas encontrado – e da relação direta do acusado com homicídios, o que acabaria favorecendo aqueles que efetivamente cometem esses crimes. “Há uma priorização de colocar nas unidades prisionais pessoas que cometem crimes contra o patrimônio e estão no circuito das drogas. Hoje entre 30 e 35% dos presos têm a ver com a questão das drogas, a maioria não sendo grandes traficantes, mas microtraficantes e usuários”, comenta Robson Sávio. 

“Além de todos os problemas do fluxo do sistema de justiça, morosidade, legislações caducas que fazem com que os processos sejam mais longos e não prosperem, essa política de segurança pública gera um problema efetivo de superlotação, de não ter sequer onde colocar os eventuais condenados”, entende o cientista social, que integra o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. 

Como é no exterior 

De acordo com o mais recente estudo do Escritório das Nações Unidas para Drogas e Crime (UNODC, na sigla em inglês), a média de resolução de homicídios nas Américas é a pior entre os continentes com dados disponíveis. Nesta parte do mundo, apenas 24 criminosos são condenados a cada cem casos de homicídio – o número é o dobro (48) na Ásia, e salta para 81 na Europa. A América Latina é especialmente responsável pelos dados: embora tenha apenas 8% da população mundial, ela responde por um terço dos homicídios contabilizados no mundo, grande parte dos quais fica sem solução. 

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Entre os países desenvolvidos, além das políticas mais eficientes de segurança pública e mais recursos para a investigação, o próprio número reduzido de infrações favorece as polícias, que já partem de uma base muito menor para atuar. Na Noruega, por exemplo, a resolução de homicídios bateu em 97% em 2016 – mas o país, líder no ranking do IDH, registrou apenas trinta crimes desse tipo naquele ano. Desse total, portanto, apenas um ficou sem solução. 

Os números permanecem elevados no Reino Unido (cerca de 90%), na França (em torno de 80%) e na Austrália (próximo de 75%). Nos Estados Unidos, que ostentam números acima da média de homicídios entre países desenvolvidos, a taxa de resolução é menor, mas ainda assim supera a média das Américas – segundo o FBI, em 2016 foram solucionados 59,4% dos casos com vítimas fatais ao redor do país. A polícia federal norte-americana também apresenta dados anuais padronizados sobre os índices de resolução para outros crimes como estupro, roubo e furto. 

A situação brasileira, por outro lado, é muito semelhante à do México, um país também afetado pelo crime organizado e com a violência relacionada ao narcotráfico aparecendo nas principais cidades. As autoridades mexicanas só conseguem punir 5% dos casos de homicídio. Um levantamento feito pela ONG Animal Político calculou que, no ritmo atual – e sem novos casos – seriam necessários mais 124 anos para apurar os crimes ainda impunes no país. 

Unificação e colaboração 

Um caso bem-sucedido em termos de segurança pública na América Latina é o Chile, que se mantém como o segundo país com a menor taxa de homicídios em todo o continente – atrás apenas do Canadá. Os chilenos também ostentam uma taxa de resolução em torno de 75%. A UNODC destaca o país andino como exemplo de nação que, apesar de ter várias agências de segurança pública civis e militares (numa divisão similar à brasileira), soube unificar os seus sistemas para empregar melhor as políticas de combate ao crime. 

“Com base em definições padronizadas, o Chile conseguiu coordenar de forma efetiva suas várias agências, através de trocas de informação e discussão para produzir dados comparáveis internacionalmente”, descreve a agência da ONU. Essa compilação fica a cargo da Subsecretaria de Prevenção do Delito, vinculada ao Ministério do Interior e da Segurança Pública. Ela também é responsável pela transparência e acesso à informação: os números podem ser acessados pelos cidadãos na internet, tanto em dados absolutos quanto por proporção, em registros detalhados e separados por regiões e cidades, período, tipo de crime e até mesmo o perfil dos criminosos. As séries históricas disponibilizadas online começam em 2005. 

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O investimento em inteligência e a colaboração entre as diferentes corporações é um caminho defendido também dentro do Brasil. No Mato Grosso do Sul, o estado com a maior taxa de resolução no levantamento feito este ano pelo Instituto Sou da Paz, parte do sucesso é atribuída à criação do Grupo de Operações e Investigações (GOI), que atua para preservar a cena do crime e coletar informações com mais eficiência do que em outros estados. Embora vinculado à Polícia Civil, o GOI colabora com a PM, com quem está em constante troca de informações – já que são os policiais militares os responsáveis pelo patrulhamento ostensivo e costumam ter mais conhecimento do cotidiano da área investigada. 

Uma aproximação semelhante entre as polícias também ocorre em São Paulo desde o início do século, com a Delegacia de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), modelo depois imitado – nem sempre com o mesmo sucesso – em todo o país. Através de iniciativas assim, a Polícia Civil tenta colocar mais agentes nas ruas e realizar ações ostensivas. Embora não tenha o mesmo índice de resolução dos sul-mato-grossenses, São Paulo está entre aqueles com a melhor taxa de apuração no país – e registra a menor quantidade de homicídios no Brasil, em constante queda, contrariando a tendência nacional de aumento nesse tipo de crime. 

“Nós temos duas polícias que na verdade são mais do que duas”, aponta Robson Sávio. “A todo momento temos algumas medidas, depois voltamos ao estágio de deterioração. O Rio é emblemático, passa por isso o tempo todo, como se fosse um vai e vem. Nós só vemos medidas incrementais”, argumenta o pesquisador. “O que nós precisamos é uma polícia de ciclo completo, envolvida com o patrulhamento, a investigação e a perícia”.

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