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Indígenas ianomâmis na cidade de Alto Alegre, em Roraima, foto de 30 de junho de 2020
Indígenas ianomâmis na cidade de Alto Alegre, em Roraima, foto de 30 de junho de 2020| Foto: EFE/Joédson Alves

No início de maio, percorreu o mundo a história do suposto desaparecimento de uma aldeia com 24 indígenas ianomâmis, depois que estes denunciaram que uma indígena de 12 anos teria morrido após ser estuprada por garimpeiros. Os garimpeiros também teriam sequestrado uma criança de três anos, que em algumas versões da história teria morrido afogada após cair de um barco

A denúncia foi feita em abril (25), por Júnior Hekurari, presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Ianomâmi e Ye’kwana (Condisi-YY). Este ‘desaparecimento’ foi o gancho necessário para uma intensa campanha nas redes sociais, de artistas e personalidades que aderiram à causa e repercutiram a hashtag “Cadê os Yanomami?”.

Em uma das publicações a cantora Anitta aproveitou para relembrar o prazo final para a regularização de títulos de eleitor para a votação nas próximas eleições, parte de uma campanha que contou com artistas de Hollywood e foi bancada por organizações internacionais. “Nos próximos anos eu quero um governo que se preocupe com a nossa natureza”, escreveu.

Em reação a isso, o procurador-geral da República, Augusto Aras, declarou que o esclarecimento do caso era uma prioridade e que os autores não ficariam impunes. Durante uma sessão do Supremo Tribunal Federal (STF), a ministra Cármen Lúcia chamou o estupro da menina ianomâmi de “perversidade que não pode permanecer como dados estatísticos, como fatos normais da vida”, e cobrou investigações sobre o caso. O presidente do STF, ministro Luiz Fux, classificou o caso como gravíssimo.

Dias depois, entre 27 e 28 de abril, uma comitiva composta por Polícia Federal (PF), Ministério Público Federal (MPF), e Fundação Nacional do Índio (Funai), com a presença de um intérprete, esteve na comunidade para investigar. Entretanto, após análise, não encontraram indícios de que os crimes aconteceram. Em entrevista à Jovem Pan News, em 12 de maio, o presidente da Funai, Marcelo Xavier, questionou o fato de serem difundidos boatos como esse, principalmente em ano eleitoral.

Mesmo após o “reaparecimento” dos indígenas, dias depois, alguns na companhia de garimpeiros, Hekurari manteve a narrativa e acrescentou que está recebendo ameaças de garimpeiros. A denúncia foi corroborada pela Hutukara Associação Ianomâmi, que afirma que este estupro não é um caso isolado e que a Terra Ianomâmi sofre sua pior ofensiva de garimpeiros em 30 anos.

A Gazeta do Povo conversou com moradores do local e indígenas ianomâmis, e obteve com exclusividade vídeos com o líder da aldeia Aracaçá, Tuxáua Morô, que revela que o incêndio na aldeia não foi realizado pelos garimpeiros, mas pelos próprios indígenas, em um ritual fúnebre tradicional não relacionado às denúncias.

Indígenas de Aracaçá negam as acusações

A comunidade Aracaçá fica dentro da Terra Indígena Yanomami, em local de difícil acesso, próximo à fronteira com a Venezuela. De Boa Vista, até a região dos Waikás, são cerca de 1h15 de voo. Para chegar a Aracaçá são necessários mais 30 minutos de helicóptero, ou cinco horas de barco pelo rio Uraricoera.

Em vídeo gravado na comunidade, por um missionário evangélico não identificado, dias depois do “desaparecimento” da comunidade Aracaçá, aparecem Tuxáua Morô, líder da comunidade e os demais indígenas da aldeia. É perguntado para eles se foram atacados por garimpeiros e eles dizem que não. Um outro missionário que esteve na aldeia, conhecido em Manaus como Evangelista Hilton, conta que os indígenas afirmavam todo o tempo que as denúncias de Hekurari eram mentira.

Em 8 de maio, Tuxáua Morô e sua esposa Cláudia estiveram em Boa Vista a convite de integrantes do Movimento Garimpo Legal, para que esclarecessem os fatos à imprensa local. Em vídeo, gravado por Jailson Mesquita, integrante do movimento, Morô conta que é falsa a acusação de Júnior Hekurari de que uma menina indígena de 12 anos havia sido estuprada e morta durante um ataque de garimpeiros à aldeia Aracaçá, e que, na sequência uma menina de três anos teria desaparecido ao cair de um barco quando a tia da moça estuprada tentou salvá-la.

Quanto ao incêndio na aldeia, Morô explica que foi causado por sua esposa em decorrência do suicídio de seu filho. “Ela estava zangada, por isso acendeu um isqueiro", diz. Por este motivo, a comunidade seguiu para outro local nas proximidades.

Segundo o antropólogo Diogo Oliveira, doutorando em antropologia social pela Universidade Federal de Santa Catarina, e pesquisador do tema suicídio indígena, diversas etnias têm por hábito queimar as moradias, desfazer aldeias e se mudar de locais onde acontecem mortes, sobretudo quando se tratam de situações traumáticas, o que também acontece conforme cada cultura.

"Os indígenas têm lógicas culturais particulares em relação ao suicídio, associadas com as suas visões de mundo específicas, como a noção de espiritualidade e religião, nem sempre sendo vista como algo negativo”, diz.

Segundo ele, em algumas circunstâncias, a desestruturação da sociedade pode aumentar o número de mortes autoprovocadas, como em casos de uso abusivo de bebidas alcoólicas, perda de terras, conflitos familiares e intergeracionais, afetando principalmente jovens e adolescentes.

Jailson Mesquita afirma que a denúncia no MPF foi realizada pelo pessoal ligado ao garimpo, para que tudo fosse esclarecido, e não por Junior Hekurari, que somente comentou sobre o caso nas redes sociais.

“Quem denunciou o caso no MP, pedindo apuração imediata, fomos nós. Hekurari só comentou nas redes sociais. E fomos também na comunidade e encontramos os indígenas desaparecidos. Detalhe: como estavam sumidos se a gente encontrou? Lá nenhum deles sabia sobre caso de estupro de menina ou criança jogada em rio”, afirma.

Mesquita diz que não é a primeira vez que utilizam mentira para desmerecer o garimpo. Ele conta que Hekurari também foi o autor da denúncia, feita em 2021, de que dois meninos yanomami, de quatro e de sete anos, morreram afogados após serem sugados por uma draga de garimpeiros. Após investigações também não foi constatado que a draga dos garimpeiros causou a morte das crianças.

“No final das contas a PF concluiu que a morte das crianças foi por afogamento, e não por causa da draga. Tecnicamente é impossível uma draga sugar uma criança pois a ponta da mangueira tem cerca de 30 cm. Como suga uma criança muito acima do rio? É subestimar a inteligência dos outros!”, afirma.

Para Mesquita, não faz sentido a acusação de que os garimpeiros estejam atacando os Yanomami, "pois o que mais os garimpeiros querem é ter uma convivência pacífica entre eles". Ele explica que a maioria dos garimpeiros têm baixa escolaridade e se eles forem procurar uma profissão honesta fora do garimpo o salário, provavelmente, será baixo. Por isso, a relação entre garimpeiros e indígenas seria de ajuda mútua.

“A PF, a Funai e o MPF foram até a aldeia e disseram que não há indícios de que aconteceu. Não acredito que iriam mentir para fazer apologia para o garimpo”, diz Mesquita.

Acusações de autopromoção e oportunismo

Mesmo com a declaração das autoridades de que não foi encontrado indício de estupro ou sequestro na aldeia, Hekurari sustentou as acusações e acrescentou que os indígenas teriam sido subornados e coagidos pelos garimpeiros com barras de ouro em troca de silêncio.

Um indígena yanomami, que pediu para não ser identificado por ter recebido ameaças, diz que Hekurari conta estas histórias por oportunismo, para se autopromover. Este indígena conversou com seus “parentes” yanomami de Aracaçá, logo após as primeiras denúncias virem a público, e eles confirmaram que as acusações de Hekurari não procedem.

“Eles disseram: aqui tem garimpeiros, sim. Mas os garimpeiros ficam no canto deles trabalhando e a gente na nossa localidade”, afirma.

Garimpeiros prometem processar Hekurari

Como resposta às denúncias de Junior Hekurari, garimpeiros do Movimento Garimpo é Legal, que negam as acusações, dizem pretender processá-lo por calúnia após o fim das investigações.

Na quinta-feira da semana retrasada (dia 12), o grupo organizou manifestação em frente à Assembleia Legislativa de Roraima, que naquele momento recebia uma comitiva de parlamentares, liderada pelo senador Humberto Costa (PT-PE), presidente da Comissão de Direitos Humanos do Senado, que seguiu até o estado para investigar as acusações feitas pelos indígenas.

O coordenador geral do Movimento Garimpo é Legal, Rodrigo Martins de Mello, conhecido como Rodrigo Cataratas, esteve no dia 29 de abril no MPF solicitar que fossem investigadas as acusações de Junior Hekurari de que garimpeiros coagiram os indígenas da comunidade Aracaçá, com 5 gramas de ouro, para que negassem o que teria ocorrido na aldeia.

“Tomei conhecimento de que eu estaria perseguindo e ameaçando o indígena Junior Hekurari. Esse cidadão é aquele que falsamente denunciou a morte de uma criança indígena e agora alega que está sofrendo ameaças de garimpeiros”.

“Junior Hekurari não me conhece, como ele próprio afirma. Do mesmo modo eu não o conheço, mas percebo que este rapaz tem se esforçado tanto quanto outras pessoas para colocar-me como o algoz de suas denúncias”, diz.

A história de Haximu

Para antropólogo, consultor e intermediador de conflitos étnicos Edward Luz, o surgimento destas denúncias contra garimpeiros, há pouco menos de um mês das comemorações de 30 anos da criação da Terra Indígena Ianomâmi —- maior território étnico do mundo, com área equivalente a três Bélgicas, e população de apenas cerca 35 mil indígenas -- não é coincidência, devido às atuais propostas de legalização de mineração em terra indígena votadas no Congresso e a votação do marco Temporal no STF.

Segundo Luz, o aparato socioambiental indigenista aprendeu a utilizar esta estratégia com eficiência: “Sempre que um projeto de lei ou uma proposta não interessam ao movimento, eventos como esse surgem, recaindo contra o Estado brasileiro a acusação de ineficácia e ineficiência”

“As recorrentes denúncias de invasão e violência garimpeira contra ianomâmis é a mais acabada prova da ineficiência de um modelo de interação de relações interétnicas, permeadas pelo estado, que parece ter sido construída para não dar certo. Este modelo foi criado para ser um caos e as relações de ianomâmis só funcionarem com o aparato das ONGs”, diz.

Para Luz, antes mesmo de haver o resultado das investigações, a imprensa já levantava paralelos sobre outros casos de violência entre os ianomâmis, como o Massacre de Haximu.

Haximu foi uma suposta chacina de ianomâmis por garimpeiros, ocorrida em 1993, no estado de Roraima. Foi o primeiro e único crime julgado no Brasil como genocídio e até hoje tem implicações. Na quinta-feira (5), a PF prendeu em Roraima o garimpeiro Eliézio Monteiro Neri, foragido da Justiça, condenado por participação no massacre.

A história de Haximu foi intensamente criticada pelo jornalista Janer Cristaldo (1947-2014), que dedicou anos a analisar o caso e disse acreditar que este era o maior blefe já registrado na imprensa nacional e internacional até então, provocando lesões irremediáveis na imagem do Brasil no exterior. Para ele, os jornalistas estavam mais preocupados com vírgulas e acentos, se o termo tinha acento circunflexo ou não, do que com os fatos e provas.

Em seu livro "Ianoblefe", Cristaldo apresenta os diversos indícios de que tal genocídio nunca aconteceu: como número de mortos inconsistente. começou com 19 mortos, depois 40, depois 73, depois 89, depois 120, e por fim 16 — sendo uma ossada encontrada no local, com data da morte desconhecida, a única prova de que alguém morreu. Além disso, nem ao menos no Brasil o evento teria acontecido.

Ele relembra o caso do suposto massacre ianomâmi ocorrido na Venezuela, em setembro de 2012, denunciado pela Survival International, principal organização indigenista mundial. Na ocasião, após ser esclarecido que 80 indígenas não foram assassinados e sua aldeia queimada, a Survival veio a público informar que seu papel não é questionar as organizações indígenas que passaram a informação, mas divulgar internacionalmente. O argumento “índios não mentem”, diz Luz, foi o mesmo utilizado no caso Haximu.

A Máfia Verde

Segundo o escritor Lorenzo Carrasco, jornalista, ex-correspondente da revista Executive Intelligence Review (EIR) e atualmente editor da revista Solidariedade Ibero-Americana e autor do livro "Máfia Verde", a reserva ianomâmi é criação da oligarquia inglesa, que em 1969 criou a Survival International, tendo o objetivo principal de suas campanhas a criação do “Parque Ianomâmi”. Segundo Carrasco, o motivo para este interesse na região são as imensas riquezas minerais que existem ali.

Outra organização importante neste processo foi a Rainforest da Noruega, responsável por financiar diversas ONGs menores no Brasil, numa estratégia de nacionalização do discurso pró Ianomâmi. O interesse é tanto que o rei da Noruega, Harald V, esteve pessoalmente em Terra Yanomami, em 2013, onde foi recebido pelo líder ianomâmi Davi Kopenawa. A Rainforest é uma das financiadoras da Hukutara, instituição presidida por Kopenawa.

Por décadas a Survival pressionou as autoridades brasileiras, financiando campanhas, até que em 15 de novembro de 1991, o ex-presidente Fernando Collor de Melo cedeu à pressão e satisfez as pressões da casa de Windsor. Assinou o decreto conferindo a cerca de seis mil ianomâmis uma área de 90 mil quilômetros quadrados, o equivalente a duas vezes o estado do Rio de Janeiro.

Segundo Luz, até o termo "Ianomâmi" foi inventado por antropólogos estrangeiros — como o americano Napoleon Chagnon, o inglês Robin Hanbury-Tenison e o italiano Ernesto Migliazza — e não existia entre os indígenas até meados da década de 70. Ali, diz ele, existiam diversas tribos com denominações étnicas distintas que viviam, e ainda vivem, em intensas guerras tribais.

Ele cita o livro "A farsa Ianomami", do coronel do Exército e ex-Secretário de Segurança de Roraima Carlos Alberto Lima Menna Barreto, que argumenta que o termo nunca foi encontrado por exploradores e estudiosos que já estiveram na região.

"Vigora no Brasil uma enorme economia do ‘cuidadismo’. Somos um dos únicos países do mundo em que existe um setor que vive exclusivamente de cuidar do índio. Neste modelo, criado para um caos e as relações de ianomâmis só funcionarem com o aparato das ONGs, não existe possibilidade de se falar de autonomia. Sempre que se sustenta a fala de autonomia diz-se que vão comprar os índios”, diz.

O que dizem os envolvidos

Junior Hekurari afirma que recebeu as denúncias de indígenas que estavam na cidade e receberam informações de indígenas da aldeia. Assim, ele informou aos órgãos responsáveis através de um ofício e solicitou investigação.

“Esse possível estupro não se trata de um caso isolado, pois somos sabedores que diversas crianças espalhadas pelo território são filhos e filhas de garimpeiros que aliciam as jovens”, diz.

Hekurari afirma que não existiu a possibilidade de remover o corpo da menina — supostamente estuprada e morta — para o IML, pois, conforme costume e tradições, os ianomâmis queimam os corpos. Assim, se houve esta morte, certamente o corpo foi queimado no ritual.

Sobre o caso das crianças indígenas mortas por uma draga de garimpeiros, Herukurari diz que recebeu a informação de indígenas e solicitou o apoio do corpo de bombeiros para resgate e do MPF para investigação.

“As associações responsáveis iniciaram as denúncias e a deputada Joenia [Wapichana] levou para o congresso. Porém, segundo a PF que sobrevoou o local, as crianças não foram sugadas pela draga. Mas como ter certeza se não houve perícia? Então fica uma questão em aberto para nós ianomâmis, mesmo que já tenha sido arquivado o processo”, diz.

O MPF informou que não se manifesta sobre procedimentos em andamento, o fazendo apenas ao fim dos trabalhos preparatórios, momento no qual apresenta as medidas cabíveis no caso concreto.

Em coletiva de imprensa realizada no dia 06 de maio, a PF informou que, mesmo estando comprovado que as denúncias não condizem com os fatos concretos e reais, as investigações continuarão em andamento.

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