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Campo de concentração de Auschwitz
Campo de concentração de Auschwitz: milhões de judeus morreram nos campos de concentração nazistas| Foto: BigStock

Ainda estão recentes na memória da humanidade os campos de concentração onde morreram milhões de judeus na Alemanha nazista ou outros milhões de “inimigos do povo” na União Soviética. Deveriam ter ficado definitivamente no passado, mas eles estão mais vivos do que nunca.

Neste exato momento, o governo chinês encarcera e tortura minorias, presas sem qualquer acusação formal. Os uigures, muçulmanos de origem turca da região de Xinjiang, são perseguidos por causa de sua religião. O objetivo chinês é promover uma limpeza étnica e uma homogeneidade forçada, com uma língua e cultura únicas. Outra ditadura comunista, a Coreia do Norte joga opositores políticos em campos de concentração que nada devem em crueldade ao que se praticava em Auschwitz.

Mas nem todos os campos de concentração são como aqueles que levaram a cabo o Holocausto judeu, que funcionavam como campos de extermínio. Há ainda aqueles de internamento, de trânsito e os de trabalho forçado. Conhecê-los é muito importante, afinal, até países considerados livres podem ceder às tentações autoritárias em “situações de emergência”.

O novo tratamento de civis em guerras

Na obra 'One Long Night: A Global History of Concentration Camps', a jornalista norte-americana Andrea Pitzer faz uma recuperação histórica do surgimento e desenvolvimento dos campos de concentração. A despeito de ter havido encarceramentos em massa, exílio e trabalho forçado a populações inteiras no passado, ela localiza a gênese desse fenômeno no final do Século XIX.

“Se as prisões são para suspeitos condenados por crimes após um julgamento, um campo de concentração mantém aqueles que, na maioria das vezes, não tiveram qualquer julgamento. [Eles] abrigam civis, ao invés de combatentes [e os] detentos são tipicamente detidos por sua identidade racial, cultural, religiosa ou política, não por causa de qualquer delito”, explica Pitzer.

De acordo com a jornalista, seu precursor foi o emprego de táticas brutais na Guerra Civil americana. Especialmente as ações do general William Sherman (1820-1891) e sua Marcha ao Mar. Ele ordenou que suas tropas considerassem qualquer homem com menos de 50 anos “como prisioneiros de guerra, não como cidadãos prisioneiros”. Além disso, não houve qualquer pretensão de respeito às propriedades de civis.

A despeito disso, Sherman ainda seguia o Código Lieber de 1863. Apesar de proibir certos crimes de guerra, como tortura e envenenamento, ele deixava brechas para punição de “civis desleais” e “simpatizantes da rebelião”, mesmo que não a ajudassem.

Foi inspirado em Sherman que outro general, agora em Cuba, levou essa doutrina às suas últimas consequências. Dessa vez, todavia, o intuito não era punir uma população, mas supostamente protegê-la.

A Guerra de Independência Cubana e a reconcentración

Após tentativas frustradas de suprimir o movimento pela independência de Cuba, o governo espanhol apontou Valeriano Weyler como governador-geral da sua colônia. Conhecido por tomar medidas severas, o general Weyler recebeu o apelido de “Carnicero”. Mesmo assim, a ele foi dada autonomia irrestrita para implementar suas ideias.

Seu plano era acabar com a guerra em dois anos. Sua estratégia, a destruição total. O exército espanhol constatou que os insurgentes recebiam apoio dos povoados interioranos, onde batalhavam por guerrilha. Por causa disso, Weyler ordenou que todos os habitantes de áreas rurais apresentassem-se às autoridades militares nas cidades.

Essa política, batizada de reconcentración, também ditou que qualquer um capturado fora das cidades sem autorização seria executado. Dessa forma, as tropas espanholas poderiam isolar os rebeldes nos campos e manter os demais em cidades fortificadas e cercadas de arame farpado, mas que não tinham nem estrutura, nem recursos para acomodá-los.

Os insurgentes, por sua vez, expulsavam cidadãos de suas casas no campo e queimavam plantações inteiras. Os espanhóis retribuíam destruindo tudo ao seu alcance, eliminando fontes de sustento dos inimigos. Nesse sentido, ambos os lados tomaram nota das lições da Guerra Civil Americana.

Por conta disso, a fome se generalizou nos campos de reconcentración. Os reconcentrados, sem ter onde morar, viviam nas ruas, expostos a furtos e infecções. Além disso, houve surtos de varíola e febre amarela. Eventualmente, a pressão internacional por causa do desastre humanitário fez com que o general fosse demitido do cargo.

“Estimativas atuais giram em torno de 150 mil mortes — aproximadamente dez por cento da população pré-guerra. Os números são mais do que suficientes para afirmar, assim como o historiador John Lawrence Tone analisou, que, quando fora recrutado de volta, “Weyler havia quase destruído o movimento de independência cubano, junto com uma grande parte da população””, conta Pitzer.

África do Sul

Do outro lado do Atlântico, a Inglaterra passou por uma experiência similar. A descoberta de ouro nas suas colônias sul-africanas reacendeu o interesse inglês nos territórios ocupados pelos povos bôeres. O problema é que eles haviam declarado independência 20 anos antes, após a Primeira Guerra Bôer.

Os britânicos nunca reconheceram a perda dos territórios, mas também não se importaram em garantir a dominância militar até então. Agora, entretanto, ingleses inundavam a República de Transvaal e o Estado Livre de Orange, as recém-criadas nações.

Mediante uma ordem negada de retirada das tropas britânicas de suas fronteiras, os bôeres declararam guerra, e deu-se início à Segunda Guerra Bôer.

Originalmente, campos foram criados para abrigar bôeres que se rendessem voluntariamente. Entretanto, sob o comando de Lord Kitchener, as táticas de terra arrasada intensificaram-se. Isso fez com que famílias, cujas terras foram queimadas, fossem enviadas forçadamente a eles.

De forma semelhante, nativos também foram obrigados a se abrigar nos campos. Muitas vezes, inclusive, eram sujeitos a trabalho forçado para pagar suas despesas. No total, segundo o historiador Fransjohan Pretorius, 28 mil brancos e 20 mil negros morreram nos campos de concentração ingleses. A situação neles, assim como em Cuba, era precária. Isso abriu as portas para epidemias de sarampo e febre tifoide e fome generalizada.

Apenas com muita insistência no parlamento britânico e, notadamente, com os relatos pessoais de Emily Hobhouse foram tomadas medidas para a melhora das condições nos campos. Segundo Pitzer, até o fim da guerra, em 1902, “autoridades britânicas conseguiram cortar a taxa de mortalidade nos campos significativamente”.

Mas a grande inovação dos campos de concentração ingleses mantiveram-se para a história. Eles foram os primeiros a separar populações inteiras baseadas em sua etnia ou origem, fossem bôeres ou nativos.

Os campos de internamento esquecidos da Primeira Guerra Mundial

A segunda geração de campos de concentração nasceu sob circunstâncias diferentes. No despertar da Primeira Guerra Mundial, ordens de apresentação à polícia para estrangeiros de nações inimigas logo se tornaram ordens de detenção.

Pela preocupação com espionagem e como retaliação, um grande experimento social foi feito na Grande Guerra. Segundo o historiador Matthew Stibbe, a Alemanha manteve presos mais de 111 mil britânicos, franceses e russos até o fim do conflito. A França, por sua vez, aprisionou 60 mil alemães e austro-húngaros; a Bulgária, mais de 14 mil sérvios e croatas; e a Romênia encarcerou 6 mil civis. Todos eles, não-combatentes e, em sua maioria, inocentes.

As condições nesses campos de internamento não eram brutais como os da primeira geração. “A despeito da ausência de abuso evidente na maioria dos campos, a combinação de monotonicidade, data de soltura desconhecida, racionamentos de comida cada vez maiores, falta de privacidade, privação sexual e o desamparo dos prisioneiros para mudar sua própria situação promoveram profundas doenças mentais dentre os detentos”, afirma Pitzer em seu livro.

Em alguns casos, houve sim, trabalho forçado, como para trabalhadores ucranianos na província de Alberta, no Canadá.

A ubiquidade dos campos de internamento durante a Primeira Guerra Mundial acostumou os civis à ideia, então não promoviam indignação. Talvez isso explique, em parte, a apatia dos alemães em relação às políticas nazistas da Segunda Guerra Mundial — especialmente considerando que o extermínio dos judeus se aprofundou ao final da guerra.

Os campos de concentração como parte da sociedade

Do outro lado da Europa, a Rússia também aderiu aos campos, de forma cruel. Ao contrário do mito "Lênin Paz e Amor”, foi justamente o líder da Revolução Bolchevique que aprovou o seu uso. “Em novembro de 1923, […] Vladimir Lênin oficializou, junto com [Leon] Trotsky, [Felix] Dzerjinsky e Joseph Stalin, a criação do Campo para Propósitos Especiais de Solovetsky como o centro desse sistema [de campos soviéticos]. Lênin estaria morto em dois meses, mas a criação de um campo nas Ilhas Solovetsky … representou um dos decretos mais importantes do seu governo.” (pág. 121)

Com ele, inaugurou-se um regime político que teve os campos de concentração integrados às suas instituições desde a concepção. Eles deixaram de ser apenas uma parte da guerra e tornaram-se o aspecto principal do regime soviético. Para lá, qualquer opositor político seria levado, torturado e, muitas vezes, morto. A definição de “opositor” ou "contra-revolucionário", é claro, foi tão inclusiva quanto as autoridades julgassem necessário.

Regimes comunistas instaurados mundo afora importaram as práticas de perseguição, encarceramento e extermínio dos gulags soviéticos. Mas, especialmente na China, isso enraizou-se na sociedade chinesa e foi elevado a novos extremos.

“[Foi] na China que um estado genuinamente revolucionário e um sistema baseado em trabalho forçado e propaganda conseguiu apequenar o modelo soviético e os outros modelos comunistas combinados. Apenas na China os novos campos de concentração superaram o Gulag, usando detenção de civis e a ideologia comunista por gerações para remodelar a sociedade para mais de um quinto da população global”, escreve Pitzer.

Da China maoísta à "capitalista"

O enorme poder concentrado nas mãos de Mao Tse-tung e sua ambição de tornar a China uma potência falharam miseravelmente. Como se a morte de dezenas de milhões causada pelo Grande Salto Adiante não fosse suficiente, Mao ainda promoveu a Grande Revolução Cultural Proletária.

Esse plano visava reestruturar a própria mentalidade do povo chinês, ou seja, criar um Novo Homem Comunista. Isso seria atingido mediante técnicas de propaganda ideológica, humilhação, perseguição e tortura de contra-revolucionários, como as seções de luta e a autocrítica.

Campos de concentração, agora, serviam o propósito da homogeneização do pensamento. A China comunista tinha uma nova religião, o maoísmo, e a filosofia de “remoldar por meio do trabalho”, chamada de Laogai, foi posta em prática para os dissidentes.

Após a morte de Mao, muitos esperavam a desintegração desse sistema. A abertura comercial chinesa, a despeito de sua timidez, tirou milhões da miséria e ainda tira milhares diariamente. Todavia, o curso dos anos mostraria que o governo chinês não abandonaria as velhas práticas.

A ideia da formação de um “novo homem” e a cultura dos campos de concentração foram facilmente adaptadas para perseguir minorias. Os uigures são o mais recente capítulo disso. Segundo Adrian Zenz, da Fundação Memorial das Vítimas do Comunismo, essa já é a maior ocorrência de encarceramento de uma minoria etno-religiosa desde o Terceiro Reich.

Além disso, há denúncias sobre esses campos de detenção e trabalho forçado na região de Xinjiang desde 2017. Portanto, o assunto não é novidade. Embora os uigures recebam maior atenção, minorias cazaques, huis, quirguizes, uzbeques e tajiques também são perseguidas sob a justificativa de combate ao terrorismo. As Nações Unidas estimam que entre um e dois milhões de detentos estejam nesses campos, vivendo em condições que violam os direitos humanos.

Por causa disso, a Anistia Internacional publicou um relatório, em 2021, que é o resultado de quase dois anos de pesquisa documental e entrevistas de ex-detentos descrevendo as condições nos campos. Entretanto, segundo a organização:

O governo da China vem tomando medidas extremas para evitar que informações corretas sobre a situação em Xinjiang sejam documentadas, e encontrar informação confiável sobre a vida dentro dos campos de internamento é particularmente difícil.

Infelizmente, isso não deveria ser uma surpresa, já que não há liberdade de expressão no país. Segundo o Repórteres Sem Fronteiras (RSF), a China ocupa uma das últimas posições do Índice de Liberdade de Imprensa de 2020.

A RSF relata que “os meios de comunicação chineses públicos e privados estão sob controle estrito do Partido Comunista, enquanto o governo multiplica os obstáculos ao trabalho de campo de correspondentes estrangeiros”.

A despeito disso, sabe-se o suficiente sobre a situação em Xinjiang para condená-la. “Nos campos de internamento, todos os detentos foram sujeitos a campanhas de doutrinação incessante, assim como tortura física e psicológica e outros tipos de maus tratos. Desde o momento que entraram no campo, a vida dos detentos foi extraordinariamente arregimentada. Detentos que não cumprissem a conduta prescrita pelas autoridades foram repreendidos e punidos fisicamente com regularidade”, afirma Pitzer.

O desejo de apagar qualquer menção ao Islamismo da consciência pública chinesa representa o pior da herança maoísta e sua Revolução Cultural.

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