“Senti-me desconfortável — talvez a palavra seja envergonhado — na presença de um indivíduo cativo”, relata Edward Osborne Wilson, em seu livro de ensaios Biofilia (1986), a respeito de um suíno nativo da Amazônia domesticado em uma vila do Suriname que visitou em 1961. Este trecho banal de sua vasta obra técnica e popular conta algo a respeito do eminente entomólogo (estudioso de insetos) e mirmecólogo (especialista em formigas) que perdemos aos 92 anos no último mês de 2021.
Wilson foi um dos últimos naturalistas exploradores na nobre tradição de Alexander van Humboldt que juntou sua paixão pela natureza contada em belíssima prosa, adquirida cedo para substituir as poucas amizades de menino solitário do Alabama, a uma produção científica invejável pelo volume, originalidade e coragem. Essa paixão não foi abatida por um acidente de pesca aos sete anos, quando um peixe feriu permanentemente seu olho direito com a barbatana — aos 11 anos, precocemente, já estava decidido a se tornar um entomólogo, o olho esquerdo tinha bom foco nas formigas. Aquele cateto domesticado do Suriname ofendia Wilson porque, quando tornado cativo pelos humanos, perdera uma parte de seu repertório comportamental: “um falante mudo preso a uma clareira artificial, como um mensageiro que fala a mim de um mundo inexplorado”.
Conservacionista e agnóstico, o biólogo aliviava essa tensão entre, por um lado, se ofender pela violação da natureza pelo ser humano e, por outro, entendê-lo como uma das espécies do planeta com o mesmo carinho que tinha por formigas e catetos, com o diálogo. Um de seus últimos projetos foi fazer um apelo às pessoas religiosas pela conservação das espécies do planeta — enquanto alguns de seus colegas se dedicavam a tentar evangelizar o ateísmo, E. O. Wilson via em sua biofilia um ponto em comum com as fés religiosas.
Um corajoso estudioso da natureza humana
Mencionada quase de passagem no livro de ensaios homônimo, a biofilia era um dos conceitos mais sérios de Wilson: sugere que, entre os elementos da natureza humana, poderia estar esta tendência inata a se atrair pelo fenômeno da vida, seus processos, suas paisagens. Foram sugestões assim, cujo zênite esteve na sua fundação da sociobiologia — o estudo do comportamento social humano à luz da teoria da evolução — que atraíram a ira de colegas mais afeitos ao ativismo político.
Edward foi um “cancelado” décadas antes de “cancelamento” passar a ser aplicado a pessoas e não apenas a eventos. Após a publicação do primeiro ensaio sobre o assunto em 1975, os ativistas progressistas acadêmicos tentaram assassinar sua reputação tentando associar a sua sociobiologia à eugenia e ao racismo. A atmosfera intelectual que cria esse tipo de ativista conversa mais com pensadores como Jean Paul Sartre, que chegou a negar que existe uma natureza humana e é citado até hoje por figuras do atual identitarismo.
Em 1978, estudantes inflamados de ideologia derramaram água de um jarro na cabeça de E. O. Wilson quando ele foi palestrar na Associação Americana para o Avanço da Ciência. Um dos presentes, o paleontólogo Stephen Jay Gould (1941-2002), manifestou-se pedindo calma, dizendo que entendia a revolta, mas que a violência não era a resposta. Mas Gould foi um dos principais responsáveis pelo clima de cancelamento que levou a esse desfecho, junto com o geneticista Richard Lewontin (1929-2021). Os dois acadêmicos publicaram ataque após ataque contra Wilson e sua nova ciência da natureza humana. Seu compromisso com o ativismo político fez eco em suas obras: Gould publicou o livro A Falsa Medida do Homem, em que fez ataques injustos à ciência da psicometria e do quociente de inteligência, além disso, Gould tentou modificar a teoria da evolução com exageros que lhe renderam o apelido de “menino que gritou ‘olha o lobo!’”, do filósofo Daniel Dennett; e Lewontin, comunista nascido em berço de ouro (ao contrário de Wilson), deu nome à falácia de Lewontin, assim batizada pelo estatístico A. W. F. Edwards (1935-).
A falácia consiste em uma interpretação forçada de dados genéticos para se afirmar que não existem raças na espécie humana — algo que Lewontin fez transparentemente para marcar território “antirracista” dentro da ciência. A solução biológica de Lewontin contra o racismo é tão sensata quanto seria a alegação de que não existem orientações sexuais como solução para a homofobia. Apesar das alegações dos progressistas que tentam vencer por tráfico de influência, a questão de haver ou não raças na nossa espécies segue em aberto na biologia.
Como é de se esperar, houve muitos erros na pesquisa inicial da sociobiologia. Principalmente por causa da campanha política dos progressistas acadêmicos, ela é praticamente falecida. Porém, como um cateto livre da Amazônia, ela se reproduziu e gerou a psicologia evolucionista, que hoje floresce muito bem na obra de cientistas como David Buss, apesar dos ataques políticos e cancelamentos — já que não pode ser derrotada pelos progressistas identitários pela via das evidências. E. O. Wilson foi vingado.
Um teimoso afável
Dentro da biologia, Wilson comprou briga com a ortodoxia que vê no gene a unidade da seleção natural, cujo representante mais famoso é Richard Dawkins. Na última década de vida, foi coautor de artigos que insistiam que a teoria vigente para explicar o altruísmo das formigas e outras espécies sociais — há formigas na Amazônia que pulam no fogo pelas irmãs, e outras cujo único propósito de vida é guardar néctar no abdômen para alimentá-las — está errada.
A teoria vigente é conhecida como seleção de parentesco ou aptidão inclusiva, seu principal proponente foi W. D. Hamilton (1936-2000). Hamilton propôs uma regra segundo a qual uma ação custosa será realizada por um organismo se esse custo for inferior ao benefício (medido pela fecundidade) multiplicado pelo coeficiente de parentesco. Enquanto irmãos humanos têm 50% de parentesco, o modo reprodutivo das formigas eleva esse coeficiente para 75%. Logo, comportamentos como pular no fogo pelos irmãos são mais esperados (biologicamente falando) entre formigas que entre humanos, e a razão para isso está no alto grau de compartilhamento de genes entre as formigas heroínas e suas protegidas.
Possivelmente por causa de sua personalidade de biólogo de campo — comparativamente, Dawkins diz que sempre gostou mais das teorias que do campo —, Wilson não se convenceu. Sua ideia alternativa é que, assim como as células do nosso sistema imunológico se sacrificam pelo organismo todos os dias no nosso corpo, as formigas altruístas são como células de um superorganismo que é o formigueiro como um todo. Assim, ele pensava que o comportamento “altruísta” de animais sociais se explica mais pela seleção de grupos do que pela centralização dos genes como alvo da seleção natural. O debate, na biologia, continua.
Outra questão em que a crítica ao pensamento de Wilson é legítima é a sua tentativa de reduzir o campo da ética à ciência, algo que ainda é tentado por cientificistas como Sam Harris. O erro pode ser explicado pela sacralização que Wilson fazia da natureza, que o motivava a estudá-la com esmero e superestimar o quanto esse estudo poderia informar outras áreas do pensamento, e, mais uma vez, por sua tendência a ser um cientista mão-na-massa e exímio contador de histórias biológicas mais que um adepto de teorias abstratas.
Apesar disso, em ética, o observador de insetos não deixou a desejar — abundam relatos de saudosos ex-colegas e ex-alunos que o descrevem como um homem generoso, disposto ao diálogo, que desconhecia protocolos humanos de hierarquia e falava de igual para igual com estudantes. Deixa saudades E. O. Wilson, Darwin do século XX.
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